REl - 0600329-27.2020.6.21.0047 - Voto Relator(a) - Sessão: 03/08/2021 às 14:00

VOTO

O recurso é adequado, tempestivo e comporta conhecimento

No mérito, as contas de campanha eleitoral de JOÃO JORGE LOPES BRASIL foram desaprovadas, na origem, diante do reconhecimento das seguintes falhas, conforme sintetizadas na sentença: “a) não comprovação dos gastos feitos com recursos do FEFC, consubstanciado na não apresentação de nota fiscal, recibo ou outro documento comprobatório e b) recebimento de verbas oriundas do FEFC, destinadas originariamente à candidata Andreia Fabiane Nunes Cassanego Gonsalvez, no valor de R$ 1.000,00 (mil reais)”.

Passo à análise individualizada de cada apontamento.

 

1. Da não comprovação dos gastos realizados com recursos do FEFC.

Sobre a primeira irregularidade, o examinador técnico, em primeiro grau, identificou a ausência de documentos comprobatórios da despesa realizada com recursos advindos do FEFC, no valor de R$ 450,00, realizada em 09.12.2020, referindo que, “cumpre ao prestador comprovar a despesa com documentos fiscais e o pagamento com cheque nominal cruzado ou comprovante de transferência bancária, conforme art. 38 da Resolução TSE 23.607/2019, sob pena de recolhimento ao Tesouro Nacional dos valores não comprovados” (ID 23512983, fl. 3).

Pretendendo o suprimento da irregularidade, o prestador de contas apresentou, com as razões recursais, a cópia do cheque n. 000003, em favor de Marcos Felipe Dias Brasil, emitido em 04.11.2020, não cruzado, e devolvido pelo Banco sacado em razão da insuficiência de fundos para compensação (ID 23513583).

Evidentemente, o documento apresentado não supre a ausência do instrumento contratual e/ou da nota fiscal relativa à despesa, bem como não demonstra a efetiva destinação da verba pública supostamente empregada em campanha, a qual os extratos eletrônicos registram ter sido revertida em favor de Marlene de Fátima Carbolin Dias (https://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/candidato/2020/2030402020/88633/210000674456/extratos), contrariando os arts. 38, 53, inc. II, al. “c”, e 60 da Resolução TSE n. 23.607/19:

Art. 38. Os gastos eleitorais de natureza financeira, ressalvados os de pequeno vulto previstos no art. 39 e o disposto no § 4º do art. 8º, ambos desta Resolução, só podem ser efetuados por meio de:

I - cheque nominal cruzado;

(…).

Art. 53. Ressalvado o disposto no art. 62 desta Resolução, a prestação de contas, ainda que não haja movimentação de recursos financeiros ou estimáveis em dinheiro, deve ser composta:

[…].

II - pelos seguintes documentos, na forma prevista no § 1º deste artigo:

[…].

c) documentos fiscais que comprovem a regularidade dos gastos eleitorais realizados com recursos do Fundo Partidário e com recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), na forma do art. 60 desta Resolução;

(…).

Art. 60. A comprovação dos gastos eleitorais deve ser feita por meio de documento fiscal idôneo emitido em nome dos candidatos e partidos políticos, sem emendas ou rasuras, devendo conter a data de emissão, a descrição detalhada, o valor da operação e a identificação do emitente e do destinatário ou dos contraentes pelo nome ou razão social, CPF ou CNPJ e endereço.

§ 1º Além do documento fiscal idôneo, a que se refere o caput, a Justiça Eleitoral poderá admitir, para fins de comprovação de gastos, qualquer meio idôneo de prova, inclusive outros documentos, tais como:

I - contrato;

II - comprovante de entrega de material ou da prestação efetiva do serviço;

III - comprovante bancário de pagamento; ou

IV - Guia de Recolhimento do FGTS e de Informações da Previdência Social (GFIP).

 

Dessa forma, resta irretocável a conclusão do magistrado a quo no sentido da insuficiente comprovação da despesa eleitoral quitada com recursos públicos:

(…) tem-se que não foi possível a comprovação de R$ 450,00, debitados da conta do FEFC em nome do candidato. Aqui, faz-se alusão à conduta do prestador que não possibilitou esse registro por parte do contador, bem como problemas na emissão de nota fiscal. Tanto o é, que não foi localizada essa despesa no demonstrativo de despesas pagas, à fl. 50.

 

Registro que o montante em tela está abrangido pela irregularidade seguinte, pois englobado na doação financeira recebida com recursos do FEFC, a qual, antecipo, motiva o recolhimento integral da quantia ao Tesouro Nacional. Desse modo, como procedido pela sentença recorrida, restrinjo a análise do tema para o tópico subsequente, por ser mais amplo, evitando possível duplicidade condenatória sobre as mesmas quantias.

 

2. Da utilização de verbas do FEFC destinadas a campanhas femininas.

Por conseguinte, a segunda falha apontada consiste no recebimento de recursos, na monta de R$ 1.000,00, doados pela candidata ao cargo de vereadora Andreia Fabiane Nunes Cassanego Gonsalvez e provenientes do FEFC, porque não teria havido comprovação de utilização da verba para a candidatura feminina, o que contraria o disposto nos parágrafos 6º e 7º do artigo 17 da Resolução TSE n. 23.607/19, verbis:

Art. 17. O Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) será disponibilizado pelo Tesouro Nacional ao Tribunal Superior Eleitoral e distribuído aos diretórios nacionais dos partidos políticos na forma disciplinada pelo Tribunal Superior Eleitoral (Lei nº 9.504/1997, art. 16-C, § 2º).

(…).

§ 6º A verba oriunda da reserva de recursos do Fundo Especial de Financiamento das Campanhas (FEFC) destinada ao custeio das candidaturas femininas deve ser aplicada pela candidata no interesse de sua campanha ou de outras campanhas femininas, sendo ilícito o seu emprego, no todo ou em parte, exclusivamente para financiar candidaturas masculinas.

§ 7º O disposto no § 6º deste artigo não impede: o pagamento de despesas comuns com candidatos do gênero masculino; a transferência ao órgão partidário de verbas destinadas ao custeio da sua cota-parte em despesas coletivas; outros usos regulares dos recursos provenientes da cota de gênero; desde que, em todos os casos, haja benefício para campanhas femininas.

 

O candidato recorrente aduz que os valores recebidos foram empregados em benefício comum de ambos os concorrentes, na forma autorizada pelo art. 17, § 7º, da Resolução TSE n. 23.607/19, tecendo as seguintes colocações (ID 23513433, fl. 7):

(…). Nessa perspectiva, a candidata Andreia, ao transferir o valor de R$1.000,00 (um mil reais) para o Candidato a Vereador João Jorge Lopes Brasil, baseou-se na ressalva constante no § 7º do artigo 17 da Resolução TSE nº 23.607/2019, ou seja, os valores poderiam ser repassados desde que houvesse benefício as campanhas femininas. Acontece que, este benefício de fato ocorreu, tendo em vista que, no momento em que a senhora Andreia transferiu os valores, ela estava apoiando o seu companheiro de partido almejando que este atingisse um público alvo e assim, aumentasse seu número de eleitores, e ambos possuíssem condições de ser elegerem no pleito eleitoral de 2020.

 

Ora, o apoiamento de companheiro de partido, cujo sucesso, de algum modo, poderia beneficiar a candidata, não traduz a aplicação das quantias no interesse direto da candidatura feminina, na forma exigida pela legislação.

Como se extrai da dicção normativa, não está vedada a transferência dos aludidos valores entre os candidatos, mas são impostas condicionantes: que o montante seja utilizado para o pagamento de despesas comuns e que seja resguardado o objetivo da norma, ou seja, o benefício para campanhas femininas, sendo ilícito o seu uso, total ou parcial, exclusivamente para o financiamento da candidatura masculina.

Nesse sentido, colaciono os seguintes julgados:

PRESTAÇÃO DE CONTAS. CANDIDATO. DEPUTADO FEDERAL. ARRECADAÇÃO E DISPÊNDIO RELATIVOS ÀS ELEIÇÕES 2018. NÃO CONHECIDA DOCUMENTAÇÃO APRESENTADA DE FORMA EXTEMPORÂNEA. MÉRITO. IRREGULARIDADES NA UTILIZAÇÃO DE RECURSOS DESTINADOS A CANDIDATURAS FEMININAS. FUNDO ESPECIAL DE FINANCIAMENTO DE CAMPANHA (FEFC). PERCENTUAL EXPRESSIVO. RECOLHIMENTO AO TESOURO NACIONAL. DESAPROVAÇÃO.

1. Não conhecidos os documentos apresentados intempestivamente. O candidato já teve conhecimento e oportunidade para sanar ou esclarecer a irregularidade apontada, e não o fez de forma tempestiva, restando precluso o prazo para o cumprimento das diligências tendentes à complementação dos dados ou para saneamento das falhas, na forma determinada pelo § 1º do art. 72 da Resolução TSE n. 23.553/17.

2. Irregularidade atinente à utilização de recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) destinados às campanhas femininas, repassados por candidata ao cargo de senadora. A ausência de documentos comprobatórios da aplicação de valores do FEFC recebidos para o incentivo das campanhas femininas, implica em ofensa ao art. 19, §§ 5º e 7º, da Resolução TSE n. 23.553/17.

3. Não há ilicitude na transferência dos valores entre os candidatos, vez que a candidata está autorizada a realizar doações dos recursos recebidos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) para candidatos do gênero masculino, desde que sejam utilizados para as despesas comuns e seja resguardado o objetivo da norma de incentivo à campanha feminina. Circunstância não comprovada na hipótese, uma vez que o candidato deixou de apresentar cópias de notas fiscais e impressos publicitários capazes de atestar que os valores foram empregados para aquisição de material comum de campanha e assim afastar a irregularidade. Falha que enseja o dever de recolhimento da quantia irregular ao Tesouro Nacional, conforme dispõe o art. 82, § 1º, da Resolução TSE n. 23.553/17.

4. Desaprovação.

(TRE/RS, PC n. 0602683-40.2018.6.21.0000, Relator: Des. Eleitoral André Luiz Planella Villarinho, julgado em 18.12.2020) Grifei.

 

PRESTAÇÃO DE CONTAS. CANDIDATO. DEPUTADO ESTADUAL. ARRECADAÇÃO E DISPÊNDIO DE RECURSOS RELATIVOS ÀS ELEIÇÕES GERAIS DE 2018. PARECER TÉCNICO PELA DESAPROVAÇÃO. OMISSÃO DE DESPESAS ELEITORAIS. UTILIZAÇÃO IRREGULAR DE RECURSOS DO FUNDO ESPECIAL DE FINANCIAMENTO DE CAMPANHA (FEFC) DESTINADOS ÀS CAMPANHAS FEMININAS. DÍVIDAS DE CAMPANHA NÃO ASSUMIDAS PELA AGREMIAÇÃO. IRREGULARIDADES GRAVES. VALOR SIGNIFICATIVO. AFASTADA APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE. DESAPROVAÇÃO.

1. Apurada falta de correspondência entre os registros contábeis declarados pelo prestador de contas e os resultados encontrados nos procedimentos técnicos de exame, representando falha grave que malfere a transparência que deve revestir o balanço contábil. No caso, o valor da receita correspondente ao gasto omitido é considerado como recurso de origem não identificada, ensejando o dever de recolhimento ao Tesouro Nacional, nos termos do art. 34, da Resolução TSE n. 23.553/17.

2. Constatado que o prestador recebeu recursos do FEFC, provenientes do repasse da conta bancária de candidata ao Senado, no mesmo pleito. A candidata pode realizar doações dos recursos recebidos do FEFC para candidatos homens, desde que sejam utilizados para despesas comuns e seja assegurada a aplicação no interesse da campanha feminina, conforme previsto no art. 19, §§ 5º e 6º, da Resolução TSE n. 23.553/17. Não comprovado o cumprimento da forma exigida pela legislação. Determinada a devolução dos valores ao Tesouro Nacional.

3. As despesas de campanha dos candidatos, não adimplidas até o prazo de apresentação das contas, exigem a assunção da dívida pelo partido, nos termos do art. 35 da Resolução TSE n. 23.553/17. No ponto, a norma regente prevê tão somente a rejeição das contas como consequência jurídica da presente falha, sem referência a outras espécies de cominações. Inviável aplicação extensiva da legislação aplicável à espécie.

4. As irregularidades são graves e envolvem aproximadamente 69% do total de receitas captadas na campanha, sendo inviável a aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

5. Desaprovação.

(TRE/RS, PRESTAÇÃO DE CONTAS n. 0602376-86.2018.6.21.0000. RELATOR: DES. JOÃO BATISTA PINTO SILVEIRA; julgado em 24.6.2019) Grifei.

 

Portanto, para afastar a irregularidade, cumpriria ao beneficiário da doação apresentar documentos que justificassem o repasse nos termos legais, tais como notas fiscais e exemplares de material de propaganda eleitoral, capazes de demonstrar que os valores foram empregados em proveito comum de ambas as campanhas, especialmente da candidatura feminina, ônus do qual não se desincumbiu nestes autos.

Aliás, consoante explicitado na falha anteriormente examinada, sequer houve a comprovação integral e idônea de uso dos recursos em sua própria candidatura, por meio de instrumento contratual e/ou da nota fiscal relativa à despesa no valor de R$ 450,00.

Diante disso, colho excerto da bem-lançada sentença, que adoto como razões de decidir:

O que ocorre nos autos, contudo, é nítido desvio de finalidade, concretizado na transferência de valor a fim de custear, sem qualquer vantagem ou contrapartida à doadora, campanha eleitoral do candidato João Jorge, quando, em verdade, tais valores deveriam ser geridos exclusivamente pela candidata doadora, buscando alavancar sua própria candidatura.

Não há a alegada ambiguidade na norma, conforme alegado pelo candidato. Em qualquer hipótese de transferência ou doação de valores destinados à campanhas femininas, deve haver benefício à candidata em questão. Garantir que seu adversário angarie mais votos não beneficia ninguém, a não ser o beneficiário da doação.

 

Ademais, a aplicação irregular de recursos do FEFC destinados às candidaturas femininas constitui falha de natureza grave, apta a justificar a desaprovação da contabilidade, e impõe o dever de recolhimento do valor irregular ao Tesouro Nacional, conforme o art. 79, § 1º, da Resolução TSE n. 23.607/19:

Art. 79. (...).

§ 1º Verificada a ausência de comprovação da utilização dos recursos do Fundo Partidário e/ou do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) ou a sua utilização indevida, a decisão que julgar as contas determinará a devolução do valor correspondente ao Tesouro Nacional no prazo de 5 (cinco) dias após o trânsito em julgado, sob pena de remessa dos autos à representação estadual ou municipal da Advocacia-Geral da União, para fins de cobrança.

 

Concernente a esse último aspecto, o recorrente argumenta que devolveu a quantia de R$ 1.000,00 ao Tesouro Nacional “para ficar com sua situação eleitoral regular”, conforme comprovante de quitação de Guia de Recolhimento da União, com data de 1º.02.2021, que acosta com o recurso (IDs 23513483 e 23513533).

A providência, embora louvável, representa o cumprimento voluntário e antecipado da condenação imposta na sentença recorrida quanto à restituição ao erário dos recursos públicos utilizados indevidamente, não tendo o condão de afastar a caracterização da própria irregularidade.

Destarte, refere acertadamente a Procuradoria Regional Eleitoral que “a pretensão do recorrente de ver afastado o juízo de desaprovação das contas, sob alegação de haver recolhido o respectivo montante ao erário, militaria no sentido de esvaziar o sentido da norma sancionadora e da própria finalidade da atividade fiscalizatória da Justiça Eleitoral”.

 

Dos consectários legais.

As irregularidades constatadas consolidam-se em R$ 1.000,00, que representam 51,62 % das receitas, financeiras e estimáveis, arrecadadas pelo candidato na campanha de 2020 (R$ 1.937,00).

Como se vê, o conjunto das falhas está aquém do parâmetro de R$ 1.064,10, em relação ao qual a jurisprudência deste Tribunal tem admitido a aplicação do critério do valor nominal diminuto, de modo a afastar o juízo de desaprovação das contas (TRE-RS; PC n. 0600698-02.2019.6.21.0000, Relator: Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores, julgado em 14.07.2020, e REl n. 0600399-70.2020.6.21.0103, Relator: Des. Eleitoral Gerson Fischmann, julgado em 20.05.2021).

Ocorre que o presente caso guarda uma singularidade no que se refere à natureza e à gravidade das irregularidades, qual seja, a malversação dos recursos públicos do FEFC com destinação legalmente vinculada ao custeio das candidaturas femininas.

Quanto ao tema, prescreve o art. 17, §§ 4º a 6º, da Resolução TSE n. 23.607/19, que os partidos políticos hão de destinar recursos do FEFC em favor de suas candidatas, em patamar não inferior a 30%, o qual deverá aumentar proporcionalmente caso a porcentagem de candidaturas femininas ultrapasse o mínimo legal, sendo ilícito o emprego desse montante, no todo ou em parte, exclusivamente para financiar candidaturas masculinas.

Como se percebe, a norma visa a garantir a efetividade da ação afirmativa de incentivo à participação das mulheres no cenário político nacional, de modo a que as candidatas recebam suficiente aporte financeiro para suas campanhas, medida imprescindível para que tenham reais oportunidades na disputa por cargos eletivos.

In casu, o montante de R$ 1.000,00 não se mostra insignificante diante do fomento que poderia ser alcançado em benefício da candidatura feminina, considerada as quantias individuais de recursos geralmente empregadas nas eleições para as Câmaras Municipais de cidades do interior, que raras vezes ultrapassam uma casa de milhar em suas arrecadações totais.

Assim, este processo, renovou-me a inquietação que já houvera manifestado no julgamento da PC n. 0602520-60.2018.6.21.0000, em 08.07.2020, relativa à campanha eleitoral de 2018, em que restei vencido no ponto em que afastei a aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade em face de conduta dirigida a sonegar repasse de valores oriundos de fundos públicos, praticada em detrimento do percentual mínimo de recursos que devem ser destinados às campanhas femininas, frustrando a real efetividade da política de quotas.

Nessa linha, o TSE tem decidido que a aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade em prestação de contas deve ocorrer de forma restrita, sendo viável a sua aplicação quando presentes os seguintes requisitos cumulativos: i) irrelevância dos valores; ii) ausência de comprovada má-fé do prestador; e iii) não se tratar de irregularidades graves, que comprometam a confiabilidade e lisura das contas (AI n. 29010, Relator Min. Og Fernandes, DJE de Data 03/10/2019).

Nesse sentido, a aplicação dos postulados da razoabilidade e da proporcionalidade não se restringe a uma constatação meramente matemática, mas cumpre observar também o viés qualitativo da irregularidade, isto é, sua natureza e as repercussões de sua inobservância, a revelaram a gravidade do apontamento.

Por pertinente ao tema, cabe invocar o art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, pelo qual o julgador não deve decidir “com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”, bem como o art. 22, § 2º, do mesmo Diploma, que estabelece critérios norteadores na aplicação de normas penalizadores de natureza pública, prescrevendo que “na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente”.

Nessa senda, entendo que a política de ação afirmativa em tela, que visa balancear a histórica e culturalmente arraigada desigualdade material entre os gêneros, apesar dos avanços atingidos, ainda representa um valor e um direito em construções jurídicas e sociais, estando longe de alcançar o devido respeito consensual no debate político nacional.

Dessa forma, mitigar a reprovação ao descumprimento das normas afetas ao fomento da participação feminina na política, de forma que o resultado por seu descumprimento restrinja-se à restituição de valores ao erário, por fundamentos puramente aritméticos, representa verdadeiro retrocesso do ponto de vista da evolução das conquistas na seara dos direitos fundamentais.

A partir dessas premissas, entendo que a infringência aos instrumentos legais vocacionados ao aperfeiçoamento material da condição de igualdade entre os gêneros na seara da participação política configura irregularidade insanável e de gravidade ínsita, a obstar a aplicação do critério do valor nominal diminuto ou dos postulados da razoabilidade e proporcionalidade, uma vez que atenta contra a norma de direito fundamental insculpida no art. 5º, inc. I, da Constituição Federal, consagradora da igualdade entre homens e mulheres.

Permito-me, aqui, retomar os três nortes levei em conta para fundamentar a proposição de meu voto na referida PC n. 0602520-60.2018.6.21.0000.

O primeiro deles repousa em não perdermos de vista a ADI n. 5617, que desnudou o conhecido fato de que a escassez de recursos financeiros nas campanhas femininas era uma das razões para a pouca efetividade da política de cotas, haja vista que, não obstante, já assegurado, ao tempo do julgamento, a quota de 30% de candidaturas femininas (art. 10, § 3º, da Lei n. 9.504/97), careciam estas de suporte financeiro para dar corpo a suas campanhas eleitorais.

Assim, em março de 2018, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a referida ação direta para, conferindo interpretação conforme à Constituição ao art. 9º da Lei 13.165/15, equiparar o patamar legal mínimo de candidaturas femininas, isto é, ao menos 30% de mulheres, ao mínimo de recursos do Fundo Partidário a lhes serem destinados, que deve ser observado com igual percentual de 30% do montante do Fundo alocado a cada partido, para as eleições majoritárias e proporcionais, e estabelecer que havendo percentual mais elevado de candidaturas femininas, o mínimo de recursos globais do partido destinados a campanhas lhe seja alocado na mesma proporção (ADI n. 5617, Relator: Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 15/03/2018).

A digressão que ora faço é para enfatizar que o Eminente Relator, Ministro Edson Fachin, não apenas se limitou a declarar a inconstitucionalidade da norma, como também estabeleceu os parâmetros mínimos de distribuição igualitária dos recursos entre as candidaturas de cada sexo. Em ou outro viés, o Supremo Tribunal Federal garantiu que as mulheres não mais fossem privadas dessa distribuição de recursos, em um patamar mais equânime entre as candidaturas de cada sexo, fazendo com que se tornasse mais efetiva a política de cotas e assegurou as mulheres melhores condições nas disputas dos pleitos eleitorais.

Do aludido acórdão da Corte Excelsa, destaco os seguintes trechos do voto do relator, Ministro Edson Fachin, no qual bem se evidencia que o fomento da participação feminina na política deve ser considerado como um objetivo de Estado e diretriz de funcionamento dos partidos políticos, enquanto expressão dos postulados fundamentais da igualdade e do regime democrático:

É preciso reconhecer que ao lado do direito a votar e ser votado, como parte substancial do conteúdo democrático, a completude é alcançada quando são levados a efeito os meios à realização da igualdade. Só assim a democracia se mostra inteira. Caso contrário, a letra Constitucional apenas alimentará o indesejado simbolismo das intenções que nunca se concretizam no plano das realidades. A participação das mulheres nos espaços políticos é um imperativo do Estado e produz impactos significativos para o funcionamento do campo político, uma vez que ampliação da participação pública feminina permite equacionar as medidas destinadas ao atendimento das demandas sociais das mulheres.

Há ainda muito a se fazer. Não se pode deixar de reconhecer que a presença reduzida de mulheres na vida política brasileira ‘colabora para a reprodução de concepções convencionais do ‘feminino’, que vinculam as mulheres à esfera privada e/ ou dão sentido a sua atuação na esfera pública a partir do seu papel convencional na vida doméstica’ e ‘coloca água no moinho da reprodução de posições subordinadas para as mulheres e da naturalização das desigualdades de gênero’ (MOTA, Fernanda Ferreira; BIROLI, Flávia. O gênero na política: a construção do “feminino” nas eleições presidenciais de 2010”. cadernos pagu (43), julho dezembro de 2014, p. 227).

Daí porque a atuação dos partidos políticos não pode, sob pena de ofensa às suas obrigações transformativas, deixar de se dedicar também à promoção e à difusão da participação política das mulheres.

 

O segundo aspecto que destaco é resposta à consulta endereçada no mesmo mês de março de 2018, a partir da decisão proferida na já citada ADI n. 5617, formulada por algumas Senadoras da República e Deputadas Federais, que, sob a Relatoria da Ministra Rosa Weber, foi conhecida em face das seguintes indagações endereçadas ao TSE: a) se a decisão proferida na ADI 5617 aplicava-se para a distribuição do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, previstos nos arts. 16-C e 16-D, da Lei das Eleições; b) se havendo percentual mais elevado do que 30% de candidaturas femininas, o mínimo de recursos globais deve ser na mesma proporção; c) se também se aplicava a interpretação à distribuição do tempo de propaganda eleitoral no rádio e na televisão, devendo-se, por conseguinte, equiparar o mínimo de recursos do Fundo Especial e tempo de propaganda, ao patamar legal de 30% de candidaturas femininas, nos termos do art. 10, § 3º, da Lei n. 9.504/97; e d) se havendo percentual mais elevado do que 30% de candidaturas femininas, o mínimo de tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão deve seguir a mesma proporção.

Essa consulta contou com a adesão de diversas entidades que peticionaram em apoio, a exemplo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Associação Brasileira de Advogadas (ABRA) e Grupo Mulheres do Brasil, bem como obteve parecer favorável do Ministério Público Federal à resposta afirmativa em todos os quesitos formulados.

No julgado, o TSE respondeu positivamente a todas as indagações, entendendo que os fundamentos constitucionais externados na ADI n. 5617, acerca da igualdade entre homens e mulheres, transcendem o decidido naquela hipótese, sendo, assim, aplicável “a mesma diretriz hermenêutica, ‘ubi eadem ratio ibi idem jus’, vale dizer, onde houver o mesmo fundamento, haverá o mesmo direito”.

Dessa forma, a Corte Superior Eleitoral concluiu que “Aplica-se, no ponto, a mesma ratio decidendi adotada pela Suprema Corte na ADI 5617, com prevalência aos direitos à dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, da CF) e à igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF)”. Nas palavras da Ministra Rosa Weber, “seguramente, não há outro caminho para a correção de histórica disparidade entre as representações feminina e masculina no parlamento” (Consulta n. 060025218, Acórdão, Relatora Min. Rosa Weber, DJE, Tomo 163, Data 15/08/2018).

Há que reconhecer que a decisão do STF na ADI 5617 e resposta dada na Consulta n. 0600252-18.2018.6.00.0000, significam relevantes marcos para a mudança do até então desolador quadro de não efetivo incentivo à participação das mulheres na política e reafirmam que os mecanismos legais para tal objetivo se atrelam à densificação e eficácia dos princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade, que fundamentam a própria noção de Estado Democrático de Direito.

No voto da eminente relatora, Ministra Rosa Weber, calha ressaltar a seguinte passagem que exorta à Justiça Eleitoral o papel de fomentadora e de rígida fiscalizadora dos princípios fundamentais em destaque:

A efetividade da garantia do percentual mínimo de candidaturas por gênero, estabelecida no art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/97 – singelo passo à modificação do quadro de sub-representação feminina no campo político –, conclama a participação ativa da Justiça Eleitoral, presente largo campo de amadurecimento da democracia brasileira a percorrer visando à implementação de ações afirmativas que priorizem e impulsionem a voz feminina na política brasileira, como sói acontecer nos países com maior índice de desenvolvimento humano (IDH), detentores de considerável representação feminina, consoante estudos realizados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e compilados pela União Interparlamentar (Inter-Parliamentary Union).

Este Tribunal Superior tem buscado impulsionar a participação feminina no cenário político, seja por medidas administrativas – como a veiculação em emissoras de rádio e televisão de campanhas em defesa da valorização e da igualdade de gênero e a promoção de painéis em Seminários sobre Reforma Política, de iniciativa da Escola Judiciária Eleitoral (EJE/TSE) –, seja no exercício da jurisdição, via decisões sinalizadoras de posicionamento rigoroso quanto ao cumprimento das normas que disciplinam ações afirmativas sobre o tema.

 

Por terceiro, pontuo o lapidar julgamento neste Tribunal, do processo REl n. 17-64.2018.6.21.0114, relacionado à prestação de contas de exercício financeiro, da relatoria do eminente Des. Eleitoral Gerson Fischmann, que enfrentou tema referente ao “descumprimento da norma que prevê a destinação de recursos do fundo partidário para a criação e difusão de programas visando a participação política das mulheres’, com arguição incidental de inconstitucionalidade dos arts. 55-A e 55-C da Lei dos Partidos Políticos, cuja ementa reproduzo:

RECURSO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. PARTIDO POLÍTICO. DIRETÓRIO MUNICIPAL. EXERCÍCIO FINANCEIRO 2017. DESAPROVAÇÃO. PRELIMINAR DE ARGUIÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE DOS ARTS. 55-A, 55-C E 55-D DA LEI DOS PARTIDOS POLÍTICOS ACOLHIDA. AFASTADA A APLICAÇÃO DOS REFERIDOS DISPOSITIVOS NO CASO CONCRETO. MÉRITO. FONTES VEDADAS. DESCUMPRIMENTO DA NORMA QUE PREVÊ A DESTINAÇÃO DE RECURSOS DO FUNDO PARTIDÁRIO PARA A CRIAÇÃO E DIFUSÃO DE PROGRAMAS VISANDO A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DAS MULHERES. REDUÇÃO DO VALOR A SER RECOLHIDO AO TESOURO NACIONAL. AFASTADA A MULTA. PARCIAL PROVIMENTO.

1. Prefacial de arguição de inconstitucionalidade dos arts. 55-A, 55-C e 55-D, incluídos na Lei n. 9.096/95 pela Lei n. 13.831/19. 1.1. O art. 55-D, o qual refere-se à anistia das devoluções, cobranças ou transferências ao erário feitas em anos anteriores por servidores públicos ocupantes de cargos com poder de autoridades, desde que filiados a partidos políticos, já foi declarado inconstitucional por esta Corte. Verificada a ocorrência de vício de inconstitucionalidade formal e material, porquanto não apresentada estimativa de impacto orçamentário, além da violação dos princípios da prestação de contas, da moralidade administrativa e da integridade legislativa. 1.2. Os arts. 55-A e 55-C determinam que as agremiações que descumpriram, nos exercícios anteriores a 2019, a obrigação de aplicar o percentual mínimo de 5% dos recursos do Fundo Partidário na criação e manutenção de programas promovendo e difundindo a participação política das mulheres, mas que tenham utilizado tal verba no financiamento de candidaturas femininas até as eleições de 2018, não poderão ter suas contas rejeitadas ou sofrer qualquer outra penalidade. Os referidos dispositivos estabelecem, ainda, que a não observância da regra até o exercício de 2018 não enseja a desaprovação das contas. 1.2.1. Disposições que limitam a atuação do Poder Judiciário Eleitoral no julgamento das contas partidárias, em contrariedade ao inc. III do art. 17 da Constituição Federal, que prevê o dever de os partidos políticos prestarem contas à Justiça Eleitoral. Ao dispensar as agremiações de pagamento da multa e vedar ao órgão julgador a possibilidade de desaprovação das contas, o legislador interferiu na atuação do Poder Judiciário Eleitoral, a quem compete decidir pela regularidade, ou não, da movimentação financeira apresentada pelos partidos políticos, impedindo a apreciação integral das contas. 1.2.2. A autonomia partidária deve estar alinhada aos princípios e às regras tendentes a aperfeiçoar o regime democrático, que tem por base o pluralismo político e a diversidade de representação, especialmente no que concerne à proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana, mormente quando focados na promoção da igualdade de gênero, uma vez que mais da metade da população brasileira é constituída por mulheres. Para a agremiação partidária que descumpre o dispositivo, o § 5º do art. 44 da Lei n. 9.096/95 prevê que o saldo da verba oriunda do Fundo Partidário deverá ser transferido para conta bancária específica e utilizado para a finalidade legalmente estabelecida, dentro do exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5%, sujeitando-se o partido à desaprovação das contas, devolução da quantia ao Tesouro Nacional e ao pagamento da multa de até 20% sobre o valor, na forma do art. 37 da Lei n. 9.096/95. 1.2.3. Os arts. 55-A e 55-C da Lei n. 9.096/95 representam afronta ao princípio da igualdade insculpido na Constituição Federal, assim como ao princípio da vedação do retrocesso social, por caracterizarem manifesta restrição a direito fundamental, em virtude do tratamento desigual ao beneficiar os partidos políticos que descumpriram o comando legal de destinação de recursos do Fundo Partidário ao fomento à participação política das mulheres. 1.3. Acolhimento do incidente de inconstitucionalidade, afastando, no caso concreto, a aplicação dos arts. 55-A e 55-C da Lei n. 9.096/95, por violação à Constituição Federal, afronta aos princípios da igualdade, da inafastabilidade do Judiciário e da vedação do retrocesso, e desrespeito ao inc. III do art. 17 da Constituição Federal, bem como a aplicação do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, devido à ausência de previsão de estimativa de impacto orçamentário e financeiro da renúncia de receita, desatenção ao art. 113 do ADCT, inobservância do devido processo legislativo e violação ao art. 14 da Lei Complementar n. 101/00 e aos arts. 69 e 163 da Constituição Federal, além de descumprimento do princípio da anualidade ou anterioridade eleitoral insculpido no art. 16 da Constituição Federal.

2. Mérito. 2.1. Recursos provenientes de fontes vedadas. Determinada, de ofício, a elaboração de novo cálculo das contribuições provenientes de pessoas físicas durante o exercício, considerando que a Lei n. 13.488 entrou em vigor no dia 06.10.2017, revogando a vedação absoluta de doações provenientes de autoridades públicas ao incluir o inc. V ao art. 31 da Lei n. 9.096/95, que ressalva aquelas advindas de filiados ao partido político. Redução do valor a ser recolhido ao Tesouro Nacional. 2.2. Descumprimento da determinação estabelecida no art. 44, inc. V, da Lei n. 9.096/95, na redação vigente ao tempo do exercício financeiro objeto das presentes contas, 2017, a qual deve ser analisada em conjunto com o § 5° do mesmo artigo. A norma é clara e expressa ao determinar que os órgãos partidários devem destinar, em cada esfera, no mínimo, 5% dos recursos do Fundo Partidário recebidos no exercício financeiro para a criação ou manutenção de programas que favoreçam a participação política das mulheres.

3. Irregularidades que representam 5,78% da receita auferida, possibilitando a aprovação com ressalvas da contabilidade, hipótese que não prevê a fixação de pena de multa. Determinados o recolhimento do valor de R$ 340,00 ao erário e a destinação de 12,5% dos recursos recebidos do Fundo Partidário na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, no exercício subsequente ao do trânsito em julgado da presente decisão, na forma do art. 44, § 5º, da Lei n. 9.096/95, na redação vigente no exercício 2017, conferida pela Lei n. 13.165/15.

4. Acolhido o incidente de inconstitucionalidade suscitado pela Procuradoria Regional Eleitoral. Parcial provimento ao recurso.

 

Como se percebe, afastou-se o "ativismo legislativo" que visava não só frustrar a almejada política de cotas e anistiar os órgãos partidários de adimplirem com a obrigação dos repasses até então não efetuados, bem como impedir que as contas fossem julgadas desaprovadas, mercê dos substanciosos fundamentos constitucionais e infraconstitucionais ali lançados.

No abalizado voto em comento, igualmente, acolheu-se a vinculação dos investimentos mínimos na participação feminina na política com a efetividade dos direitos fundamentais, consoante passagem que transcrevo:

É certo que a autonomia partidária deve estar alinhada aos princípios e regras tendentes a aperfeiçoar o regime democrático – que tem por base o pluralismo político e se alicerça na diversidade de representação – especialmente no que pertine à proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana, mormente quando focados na promoção da igualdade de gênero em um quadro generalizado de sub-representação feminina na política verificado nada obstante mais da metade da população brasileira seja constituída por mulheres.

 

Este julgamento segue na mesma linha, porque além de adotar interpretação que melhor represente o conteúdo dos direitos fundamentais, modula adequadamente sua aplicação, conformando-se com a orientação traçada pelo Supremo Tribunal Federal na ADIN 5617, com as diretrizes da Consulta da Relatoria da Ministra Rosa Weber, a par de manter a coerência e estabilidade com a decisão proferida na prestação de contas objeto do RE 17-64.2018.6.21.0114.

Portanto, a efetividade da ação afirmativa de incentivo à participação das mulheres no cenário político nacional reclama a garantia de que as candidatas sejam, de fato, diretamente beneficiadas com as dotações de recursos públicos destinadas ao financiamento de suas campanhas, assegurando-lhes meios e estrutura material para que tenham reais oportunidades na disputa por cargos eletivos.

Desse modo, as regras que determinam a distribuição proporcional dos recursos públicas às candidaturas de cada gênero devem ser compreendidas como essenciais à eficácia e à efetividade da própria quota de gênero, sem a qual a pretendida igualdade não passará de uma mera enunciação normativa.

Nesse aspecto, a Justiça Eleitoral deve adotar uma postura diretiva e rigorosa na implementação e fiscalização das ações afirmativas que visam a garantia do incremento participação da mulher na política como forma de conferir efetividade aos direitos fundamentais que conformam o Estado e o regime democrático, em especial a igualdade, a representatividade e a não discriminação.

Com tais consideração, concluo que a utilização de verba pública destinada ao fomento de candidaturas femininas para finalidades diversas ou sem comprovação não comporta mitigação ou relativização percentual, devendo ser considerada como uma forma de discriminação, de quebra de oportunidades entre homens e mulheres e de retrocesso de política afirmativa de direitos fundamentais, ao menos até o atingimento de padrões minimamente aceitáveis de equivalência feminina no poder.

Isso posto, relembro que é já conhecido o reclamo de que os Tribunais Eleitorais mudam a sua jurisprudência a cada nova eleição e ao sabor das alterações de sua composição, dado o curto espaço de tempo de duração dos mandatos de seus integrantes.

Sustenta-se, não sem razão, que a estabilidade das decisões empresta segurança jurídica e orienta os jurisdicionados nas condutas a serem adotadas para agirem em conformidade à norma.

Contudo, é preciso perceber que, por vezes, a manutenção da jurisprudência pode levar a indesejável distorção na aplicação da lei, na medida em que se acaba por chancelar ao jurisdicionado que se torne inadimplente porque acobertado em seu agir pelo beneplácito da orientação do Tribunal.

Assim, demonstrado que, na hipótese, o candidato usou em sua campanha verba pública compulsoriamente afetada em sua destinação ao incremento da participação feminina na política, da qual empregou 55% em seu exclusivo benefício e, quanto aos demais 45%, sequer logrou comprovar por meio idôneos os gastos em que dispendidos os recursos, entendo que é impositiva a manutenção da sentença que desaprovou as contas, em razão da natureza e da gravidade das irregularidades constatadas, circunstâncias que, conforme exposto, não contemplam espaço para aprovação com ressalvas.

Fica mantida, igualmente, nos exatos termos da sentença, a determinação de recolhimento da quantia irregular, no montante de R$ 1.000,00, ao erário, na forma do art. 79, § 1º, da Resolução TSE n. 23.607/19, devendo ser conferido e considerado o comprovante de pagamento juntado ao ID 23513533 por ocasião da fase executiva da condenação.

Finalmente, anoto, obter dictum, que eventual discussão sobre a configuração de bis in idem no caso de condenação da candidata doadora, no processo próprio de contas, em razão da ilicitude da doação efetiva, deve ser tratada nas pertinentes fases de cumprimento de sentença, diante da imposição pela lei de responsabilidade solidária entre o candidato e a candidata doadora (art. 275 do CC).

Por elucidativa, transcrevo passagem do voto-vista do eminente Des. Eleitoral Gerson Fischmann, no julgamento da PC n. 0602683-40.2018.6.21.0000, em 18.12.2020, anteriormente referida, que sintetiza com maestria a questão:

Na fase do cumprimento de sentença, o candidato poderá alegar, por meio da impugnação, qualquer das hipóteses previstas no art. 525, § 1º, do CPC para eximir-se da obrigação de recolhimento dos valores ao Tesouro Nacional. Dentre elas está o pagamento, desde que superveniente à sentença. Além disso, extingue-se a execução quando o executado obtiver, por qualquer outro meio, a extinção total da dívida, o que certamente inclui a satisfação da obrigação por outro devedor solidário demandado separadamente (inc. III do art. 924 do CPC).

 

Diante do exposto, VOTO pelo desprovimento do recurso, para confirmar integralmente a sentença que julgou desaprovadas as contas de JOÃO JORGE LOPES BRASIL, relativas ao pleito de 2020, mantendo a determinação de recolhimento do valor de R$ 1.000,00 ao Tesouro Nacional e consignando que eventual cumprimento antecipado da obrigação deve ser considerado na fase executiva, nos termos da fundamentação.