REl - 0600599-11.2020.6.21.0028 - Voto Vista - Sessão: 22/07/2021 às 14:00

voto-vista

Des. Eleitoral Silvio Ronaldo Santos de Moraes:

Trago a julgamento o voto-vista nos autos do recurso interposto por MARLENE GOULART MATIAS VANCINI contra a sentença do Juízo da 28ª Zona Eleitoral de Lagoa Vermelha/RS, o qual desaprovou suas contas devido ao recebimento de doação de R$ 300,00 realizada por beneficiário do Auxílio Emergencial do Governo Federal. Entendeu o magistrado a quo que o valor se caracteriza como receita de origem não identificada por existência de indícios de ausência de capacidade financeira do doador, Francisco Vancini, razão pela qual determinou o recolhimento da quantia ao Tesouro Nacional.

Na sessão de 16.7.2021, o ilustre Desembargador Eleitoral Gerson Fischmann, após judiciosa análise dos elementos constantes nos autos, votou pela manutenção da condenação ao recolhimento da doação ao erário, apontando que “há provas de coabitação com o doador e veemente indício de que a candidata conhecia sua situação de incapacidade financeira, especialmente quanto ao fato de que ele recebeu o Auxílio Emergencial, a demonstrar o vínculo entre ambos”, aspecto em relação ao qual adiro integralmente às conclusões lançadas pelo douto Relator.

A divergência parcial que ouso manifestar se refere tão somente à aprovação das contas com ressalvas, pois, com as devidas vênias a posicionamento diverso, entendo inaplicáveis os postulados da razoabilidade e da proporcionalidade ao caso concreto, ainda que a quantia em questão seja diminuta (R$ 300,00) e represente 6,03% da arrecadação total de campanha (R$ 4.975,00).

Isso porque a jurisprudência do TSE não admite a incidência dos aludidos princípios nos processos de prestação de contas quando, a despeito da irrelevância percentual ou nominal dos valores envolvidos, se constatarem indícios de má-fé do prestador e houver o comprometimento da fiscalização exercida pela Justiça Eleitoral, conforme ilustram, a contrario sensu, os seguintes julgados:

ELEIÇÕES 2018. AGRAVO INTERNO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRESTAÇÃO DE CONTAS DE CAMPANHA. DEPUTADO FEDERAL. DESAPROVAÇÃO NA ORIGEM. ART. 28, § 4º, I E II, DA LEI Nº 9.504/97. DESCUMPRIMENTO. POSSIBILIDADE DE INSERÇÃO DAS INFORMAÇÕES NA PRESTAÇÃO DE CONTAS FINAL. OMISSÕES CONTÁBEIS NAS PRESTAÇÕES DE CONTAS PARCIAIS. FALHAS MERAMENTE FORMAIS. IRREGULARIDADE REMANESCENTE DIMINUTA. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE. NECESSIDADE DE DETERMINAR O REGULAR PROCESSAMENTO DO RECURSO ESPECIAL. AGRAVO PROVIDO. (…). 5. Irregularidades remanescentes correspondentes a 7,72% do total de recursos arrecadados na campanha, o que permite a aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, em caráter excepcional, em razão do diminuto percentual verificado, da ausência de indícios de má-fé do prestador das contas e da ausência de prejuízo à sua análise. 6. Diante da ausência de contraditório na origem referente ao recurso especial interposto, uma vez que houve a apresentação de contrarrazões tão somente ao agravo para subida e ao agravo regimental subsequente, há a necessidade de determinar seu regular processamento. Peculiaridades do caso concreto. 7. Agravo interno provido para admitir o regular processamento do recurso especial interposto.

(TSE - AI: 06065518520186260000 SÃO PAULO - SP, Relator: Min. Edson Fachin, Data de Julgamento: 05.5.2020, Data de Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Tomo 125, Data: 25.6.2020.) (Grifei.)

 

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. PRESTAÇÃO DE CONTAS. PARTIDO POLÍTICO. EXERCÍCIO FINANCEIRO DE 2013. DESAPROVAÇÃO. COMPROMETIMENTO DA CONFIABILIDADE DO AJUSTE CONTÁBIL. FALHAS GRAVES. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. INAPLICABILIDADE. NEGATIVA DE SEGUIMENTO. 1. O ajuste contábil objeto do recurso é referente ao exercício financeiro de 2013, motivo pelo qual se submete à regra do art. 37, § 3º, da Lei 9.096/95, com texto anterior ao da Lei 13.165/2015. Precedentes. 2. A aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade em processo de contas condiciona-se a três requisitos: a) falhas que não comprometam a higidez do balanço; b) percentual irrelevante de valores irregulares em relação ao total da campanha; c) ausência de má-fé da parte. Precedentes. (…). 6. Agravo regimental desprovido.

(Recurso Especial Eleitoral n. 6139, Acórdão, Relator Min. Jorge Mussi, Publicação: DJE - Diário da justiça eletrônica, Tomo 228, Data: 27.11.2019, Página 26.) (Grifei.)

 

Por esse trilhar, conforme anteriormente mencionado, há contundentes indicativos de que a prestadora se apartou dos deveres de transparência e colaboração no fornecimento de informações à Justiça Eleitoral, a obstar que a sua conduta, no curso do processo, seja tomada em seu benefício.

Ora, como bem salientou o eminente Relator, o recibo eleitoral de doação (ID 38975183), a procuração firmada pela prestadora (ID 38971783) e o requerimento de registro de candidatura (RCand 0600128-91) demonstram que candidata e doador residem no mesmo endereço.

Das peculiaridades fáticas do caso, destaca-se, além da coabitação, que candidata e doador detêm o mesmo sobrenome, sendo, presumivelmente, parentes.

Outrossim, na declaração de bens entregue com o pedido de registro de candidatura (RCand n. 0600128-91), disponível no sítio eletrônico “Divulgação de Candidaturas e Contas Eleitorais” do TSE (https://divulgacandcontas.tse.jus.br/), verifica-se que a candidata relacionou o bem “Empresa CNPJ n. 37.214.481/0001-48”, que, em consulta ao serviço público de informações sobre situação cadastral da Receita Federal (http://servicos.receita.fazenda.gov.br/Servicos/cnpjreva/Cnpjreva_Comprovante.asp), consta sob o nome empresarial “FRANCISCO VANCINI 68778961068”, de acordo com o seguinte extrato:

 

 

Ora, há um manifesto vínculo familiar e patrimonial entre a candidata e o doador, que permitiria à prestadora a suficiente elucidação da questão atinente à capacidade financeira de Francisco Vancini. Contudo, como bem apontou o juízo sentenciante, “após devidamente intimada, a candidata permaneceu silente, sem apresentação de qualquer defesa, documentos ou esclarecimentos”.

Assim, tem-se que a prestadora não cumpriu a contento o seu dever de informação e transparência na prestação das contas, deixando, deliberadamente, de apresentar esclarecimentos requeridos pelo juízo de origem acerca da situação financeira do doador, ou mesmo referir a relação mantida entre ambos.

Com isso, resta subtraída da sociedade aquilo que a doutrina de José Jairo Gomes aponta como “a realidade da campanha”, como fator de transparência e legitimidade ao pleito, conforme explica o próprio autor:

Deveras, é direito impostergável dos integrantes da comunhão política saber quem financiou a campanha de seus mandatários e de que maneira esse financiamento se deu. Nessa seara, impõe-se a transparência absoluta, pois em jogo encontra-se o legítimo exercício de mandatos e consequentemente do poder estatal. Sem isso, não é possível o exercício pleno da cidadania, já que se subtrairiam do cidadão informações essenciais para a formação de sua consciência político-moral, relevantes sobretudo para que ele aprecie a estatura ético-moral de seus representantes e até mesmo para exercer o sacrossanto direito de sufrágio. (In.: Direito Eleitoral. 14. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Atlas, 2018, p. 493)

 

Outrossim, a insuficiência dos esclarecimentos sobre a origem dos recursos em questão abre espaço, em tese, para a ocultação de eventual fonte vedada de receitas ou de transgressão aos limites de gastos legalmente impostos aos candidatos, afetando, sobremaneira, o controle sobre a origem dos recursos e o destino das despesas de campanha exercido pela Justiça Eleitoral.

Nessa medida, a irregularidade em tela e as demais circunstâncias do caso, em especial o evidente vínculo entre a beneficiária e o doador, demonstrado inequivocamente pelos sobrenomes e pelo domicílio comum, conduzem ao inexorável caminho da desaprovação das contas.

Trata-se de entendimento já acolhido por este Tribunal no julgamento do processo RE n.  0600115-40.2020.6.21.0078, da minha relatoria, na sessão de 20.4.2021, com circunstâncias fáticas bastante semelhantes, em que a Corte, por unanimidade, afastou o critério do valor nominal diminuto e manteve a sentença de desaprovação das contas, consoante se extrai da respectiva ementa:

RECURSO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. VEREADOR. ELEIÇÕES 2020. DESAPROVAÇÃO. RESOLUÇÃO TSE N. 23.607/19. DOAÇÃO DE CAMPANHA. CAPACIDADE ECONÔMICA DO DOADOR NÃO COMPROVADA. INSCRIÇÃO EM PROGRAMA SOCIAL DO GOVERNO. BENEFICIÁRIO DE AUXÍLIO EMERGENCIAL. PANDEMIA DE CORONAVÍRUS. EXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE AFINIDADE COM O CANDIDATO. APTIDÃO FINANCEIRA NÃO DEMONSTRADA. CARACTERIZADO O RECURSO COMO DE ORIGEM NÃO IDENTIFICADA. RECOLHIMENTO AO TESOURO NACIONAL. INAPLICABILIDADE DOS PRINCÍPIOS DE RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. INDÍCIOS DE MÁ-FÉ. ENCAMINHAMENTO DA DECISÃO AO MINISTÉRIO PÚBLICO E À CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. APURAÇÃO DE EVENTUAL FRAUDE. DESPROVIMENTO.

1. Insurgência contra sentença que desaprovou a contabilidade de candidato relativa às eleições municipais de 2020, com fundamento na ausência de comprovação da capacidade econômica de doador inscrito em programa social do Governo Federal, e, por consequência, condenou o candidato a recolher ao Tesouro Nacional o valor equivalente à doação auferida, sob o entendimento de estar caracterizado o aporte de recursos de origem não identificada.

2. O órgão técnico de análise, mediante integração do SPCE e da base de dados do CADÚNICO, apurou o recebimento direto de doação financeira realizada por pessoa física inscrita em programas sociais do Governo Federal, beneficiária do auxílio emergencial. Disponibilização ainda, pela mesma doadora, de automóvel para uso em campanha, conforme Termo de Cessão de Bem Móvel acostado aos autos.

3. Verificado que tanto a doadora quanto o candidato declaram residir no mesmo endereço, evidenciando a existência de relação de afinidade ou, quando menos, de familiares coabitantes, a permitir o seguro entendimento do engajamento econômico na campanha, inviabilizando a hipótese de que o candidato desconhecia a condição econômica e a qualidade de beneficiária do auxílio emergencial da doadora. Dessa forma, as declarações na prestação de contas carecem de sinceridade e estão divorciadas da boa-fé, da moralidade e da probidade. Tais princípios informam o direito eleitoral e requerem que com eles esteja comprometido o candidato a cargo eletivo, em nome da dignidade do mandato público que visa obter.

4. Os valores advindos da doadora, entre contribuições financeiras e cessão de bens estimáveis em dinheiro, representam cerca de 90,16% da arrecadação de campanha. Houvessem as contribuições recebidas sido declaradas como advindas de patrimônio do candidato, estaria configurado o excesso de gastos com recursos próprios.

5. O prestador não cumpriu a contento o seu dever de informação e transparência na apresentação das contas, deixando de prestar esclarecimentos idôneos acerca da situação financeira da doadora, aptos a ilidir a presunção de hipossuficiência econômica gerada pela inscrição no programa de auxílio emergencial da pandemia de coronavírus. Havendo fundada dúvida, não solvida pelo candidato, sobre a aptidão financeira da doadora e, consequentemente, sobre a origem dos recursos recebidos em doação, impõe-se a caracterização da verba como recursos de origem não identificada e o dever de recolhimento do valor correspondente ao Tesouro Nacional, nos termos do art. 32, caput e § 1º, inc. I, da Resolução TSE n. 23.607/19.

6. Apesar de a irregularidade em debate ostentar um valor absoluto reduzido, inclusive inferior ao parâmetro de R$ 1.064,10 (ou mil UFIR) que a disciplina normativa das contas considera módico, a jurisprudência do TSE não admite a aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade nos processos de prestação de contas quando, a despeito da irrelevância percentual ou nominal dos valores envolvidos, forem constatados indícios de má-fé do prestador das contas e houver o comprometimento da fiscalização exercida pela Justiça Eleitoral.

7. Provimento negado. Recolhimento do montante de R$ 1.000,00 ao Tesouro Nacional.

(Grifei.)

 

Com esses fundamentos, VOTO pelo desprovimento do recurso interposto por MARLENE GOULART MATIAS VANCINI, mantendo integralmente a sentença que desaprovou as suas contas de campanha e determinou o recolhimento do montante de R$ 300,00 ao Tesouro Nacional.

Registro, ainda, que inarredáveis da solução ao caso os encaminhamentos propugnados pelo ilustre Relator para apuração de eventual fraude relacionada ao recebimento do auxílio emergencial, os quais acompanho em seus exatos termos.