REl - 0601004-44.2020.6.21.0029 - Voto Relator(a) - Sessão: 07/07/2021 às 14:00

VOTO

O recurso é adequado, tempestivo e comporta conhecimento.

No mérito, versa a presente Ação de Investigação Judicial Eleitoral sobre suposta prática de abuso do poder político ou de autoridade e de uso indevido dos meios de comunicação social por parte da candidata DAIANI MARIA. Segundo constou na exordial (ID 39714533), a referida candidata à vereadora, nas eleições de 2020, teria utilizado cargo público comissionado (Secretaria de Saúde de Cruzeiro do Sul), com fins eleitorais, no intuito de desequilibrar o pleito com infringência às normas eleitorais.

No ponto, o Juízo da 029ª Zona Eleitoral de Lajeado julgou improcedente (ID 39716033) a ação, nos seguintes termos:

A AIJE, conforme doutrina, possui indicativos/requisitos materiais para sua propositura, precisamente a existência de prática de uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade (ou político) e, a utilização indevida de veículos de comunicação ou meios de comunicação social, tudo em benefício de candidato, coligação ou de partido político.

O art. 14, § 9º, da CF/88 apontou a necessidade da edição de lei complementar para a tutela da regularidade e legitimidade do pleito eleitoral, sendo editada a Lei Complementar 64/1990.

O art. 22 da LC 64/90 prevê a AIJE para investigar o uso indevido, desvio de poder econômico ou de autoridade e a utilização indevida dos meios de comunicação, prevendo, como pena, a declaração da inelegibilidade do representado e dos que tenha contribuído para o ato, além da cassação do registro ou diploma dos diretamente beneficiados.

No dizer de Rodrigo Lopez Zilio (Direito Eleitoral, pág. 650) a AIJE é "meio processual adequado para combater os atos de abuso eleitoral lato sensu. ... que tenha interferência na normalidade do pleito ...", devendo ser considerado para a procedência da AIJE não a potencialidade de alterar a eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que caracterizam o ato (art. 22, XVI, da LC 64/90).

Bem analisados os autos, nada de grave e ilícito houve na ação da representada Daiani que pudesse caracterizar a gravidade nas imputações da inicial.

Em primeiro lugar, não vejo condutas vedadas pela representada nos termos do art. 73, I, II e III, da Lei 9504/97.

Como dito em outras ocasiões que julguei AIJES, os arts. 73, 74, 75 e 77 da Lei eleitoral buscam manter a igualdade entre os players e a normalidade da eleição. E somente com a quebra clara e comprovada dessa igualdade e normalidade incide as penalidades.

Em relação à conduta de Daiani, o art. 73, I e III, da Lei 9504/97 traz em seu núcleo a conduta de ceder ou usar em benefício de candidato, partido ou coligação, de bens móveis e imóveis de entes públicos, bem como uso de servidores públicos na campanha. No caso, a representada, que se desincompatibilizou do cargo público no prazo legal, postou mensagens de campanha, vídeos e fotos em órgão público municipal. O uso de bem público para postagens não se trata de ato irregular, muito menos fotografias com colegas de trabalho à época em que exercia a atividade pública e replicada posteriormente durante a campanha. Como dito por Zilio (op. cit. pág. 715) a cessão e uso de bem público por si só não é vedado, tendo de haver o benefício do candidato e prejuízo dos demais players, o que não vejo no caso em tela. Em verdade, mesmo que a candidata fosse servidora, houve a desincompatibilização no momento correto, podendo fazer uso de mensagens exaltando seu trabalho e em locais públicos, bem como replicando fotos antigas com colegas de trabalho. E como dito na resposta, e comprovado, os adversários do partido ora representante também fizeram uso de imagens coletadas em bens públicos durante a campanha.

Como dito pela agente do Ministério Público Eleitoral, não há como separar a candidata da ex servidora, podendo fazer uso, assim, da imagem pública construída. E, repiso, candidatos adversários fizeram igual exaltação, inclusive do partido representante.

Já o art. 73, II, da Lei Eleitoral exige o uso de materiais e serviços custeados pelo ente público, v. g., impressos feitos em gráfica do ente público e custeado pelo Estado (sentido lato). Nada há nos autos que indique tal prática pela candidata.

Não houve, assim, o uso do aparato público para a campanha e eleição da representada. Nenhuma prova nesse sentido há nos autos.

Ainda, reforçando, não há conduta vedada prevista no inciso III do art. 73 da Lei Eleitoral vez que não há comprovação de cessão de servidores para os atos de campanha da candidata. As fotografias acostadas o foram de épocas anteriores ao pleito e não configura ato ilícito. Se servidor atuou de forma espontânea na campanha, se o foi em horário  de trabalho, contra ele deverá se voltar o partido representante.

Mais, nada indica o uso indevido do meios de comunicação e sociais pela candidata. Conforme já decidiu o TSE (REspe nº 4709-68/RN – j. 10.05.2012), em resumo feito, o 'uso indevido dos meios de comunicação e sociais se configura quando há massiva exposição de um candidato nos meios de comunicação em detrimento de outros', fato que não vejo nos autos já que houve postagens normais da candidata.

Muito menos há abuso de poder de autoridade ou político. Não há comprovação da influência, pressão ou uso da máquina pública na eleição, não bastando a vitória da representada para comprovar o comprometimento do pleito.

Por fim, o fato de a candidata ter usado de propaganda irregular durante o pleito já foi apurado e punido nas representações eleitorais propostas contra ela. 

Trazendo a colação a obra de ZILIO (op. cit.), para resumir o que disse acima : 'Em síntese, a gravidade das circunstâncias dos ilícitos praticados consiste na diretriz para a configuração da potencialidade lesiva do ato abusivo, permanecendo ainda hígidos os critérios já adotados usualmente pelo TSE, sendo relevante perquirir como circunstâncias do fato, v.g., o momento em que o ilícito foi praticado – na medida em que a maior proximidade da eleição traz maior lesividade ao ato, porque a possibilidade de reversão do prejuízo é consideravelmente menor -, o meio pelo qual o ilícito foi praticado (v.g., a repercussão diversa dos meios de comunicação social), a hipossuficiência econômica do eleitor – que tende ao voto de gratidão -, a condição cultural do eleitor – que importa em maior dificuldade de compreensão dos fatos expostos, com a ausência de um juízo crítico mínimo.' O mesmo Zilio (op. cit. pág. 651) registra que configura abuso do poder político: 'como qualquer ato, doloso ou culposo, de inobservância das regras de legalidade, com consequências jurídicas negativas na esfera do direito. O que a lei proscreve e taxa de ilícito é o abuso de poder, ou seja, é a utilização excessiva – seja quantitativa ou qualitativamente – do poder, já que, consagrado o Estado Democrático de Direito, possível o uso de parcela do poder, desde que observado o fim público e não obtida vantagem ilícita.” Segue o mesmo autor conceituando o abuso de poder de autoridade: “Abuso de poder de autoridade é todo ato emanado de pessoa que exerce cargo, emprego ou função que excede os limites da legalidade ou da competência. O ato de abuso de poder de autoridade pressupõe o exercício de parcela de poder, não podendo se cogitar da incidência desta espécie de abuso quando o ato é praticado por pessoa desvinculada da administração pública (lato sensu). O exemplo mais característico de abuso de poder de autoridade encontra-se nas condutas vedadas previstas nos artigos 73 e 77 da Lei nº 9.504/97.'

De efeito, não há gravidade suficiente nas condutas e prova suficiente de que houve interferência na legitimidade ou normalidade das eleições conforme requer o art. 22, XVI, da LC 64/90.

Assim, não ferem os atos analisados o art. 73 e seus incisos e art. 74 da Lei Eleitoral. 

Por fim, deve-se manter hígido um dos princípios basilares do Direito Eleitoral, o da soberania popular, precisamente o da mantença da vontade do eleitor depositada na urna (Daini foi eleita com 5,24% dos votos, 395, a mais votada). A regra é a manutenção da vontade da maioria dos eleitores, sendo a exceção o afastamento dos vencedores, como o queria o representante.

 

Antes de examinar a moldura fática do caso posto, teço considerações teóricas sobre os critérios utilizados pela doutrina e jurisprudência à aferição do abuso de poder, seja ele econômico ou midiático.

A Constituição Federal, em seu art. 14, § 9º, prescreve que lei complementar estabelecerá casos de inelegibilidade, visando à proteção da normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

A atuação com desvio das finalidades legais, de forma a comprometer a legitimidade do pleito, seja em favor do próprio agente ou de terceiro, caracteriza o exercício abusivo do poder previsto no art. 22 da Lei Complementar n. 64/90:

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político;

 

O abuso de poder, conforme a doutrina eleitoralista, é instituto de textura aberta, não sendo definido por condutas taxativas, mas pela sua finalidade de impedir comportamentos que extrapolem o exercício regular e legítimo da capacidade econômica e de posições públicas dos candidatos, capazes de causar indevido desequilíbrio ao pleito.

Em um primeiro momento, como nos ensina Rodrigo López Zilio (Direito Eleitoral, 6ª ed. 2018, p. 650), a jurisprudência do TSE exigia que o ato abusivo tivesse relação direta com a alteração do resultado final do pleito, por meio de um cálculo aritmético (abuso vs. diferença de votos entre os candidatos). Era o que, nas palavras do Min. Sepúlveda Pertence, se denominava prova diabolicamente impossível de ser obtida (RESPE n. 19.553, de 21.03.2002).

Após, evoluiu-se à necessidade de demonstração da potencialidade de influenciar o pleito, desvinculando a configuração de abuso do resultado matemático das urnas.

E, após alteração legislativa e jurisprudencial, a caracterização da violação ao bem jurídico protegido atualmente está vinculada à gravidade da conduta, capaz de alterar a normalidade e macular a legitimidade do pleito, sem a necessidade da demonstração de que, ausente a conduta abusiva, o resultado das urnas seria diferente.

É o que dispõe o art. 22, inc. XVI, da Lei Complementar n. 64/90:

Art. 22.

[...]

XVI - para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam.

 

Em relação ao conceito do abuso de poder econômico, Frederico Franco Alvim assenta que (Abuso de Poder nas Competições Eleitorais, 2019, p. 209):

Em última análise, a ideia do abuso de poder econômico remete à utilização de todo e qualquer mecanismo de convencimento baseado no emprego de bens econômicos com o objetivo de proporcionar vantagens para influenciar eleitores, mediante a cooptação das preferências individuais e/ou a quebra do equilíbrio de oportunidades ou das regras econômicas do fair-play eleitoral, elementos que, como é cediço, devem informar, tanto no palco como nos bastidores, o espetáculo democrático no qual se desenrola a pugna pela ponteira da condução política.

 

Já o abuso de poder midiático, na dicção também de Frederico Alvim, obra citada, p. 249, significa:

Em nossa visão, a modalidade de abuso relativa ao manejo irregular da comunicação de massas corresponde ao uso incisivo de aparelhos de comunicação coletiva como instrumentos para a realização de uma condução dirigista do eleitorado, com o propósito mais ou menos disfarçado de promover ou descredenciar alternativas políticas em medida suficiente a comprometer a plena lisura da competição eleitoral.

 

No que refere ao reconhecimento do abuso do poder econômico, o TSE considera que é necessário o emprego desproporcional e excessivo de recursos patrimoniais, públicos ou privados, em benefício eleitoral do candidato, que seja capaz de comprometer a legitimidade do pleito e a paridade de armas (REspe n. 941-81, Rel. Maria Thereza de Assis Moura, j. em 15.12.2015). Já quanto ao abuso de poder midiático, para sua configuração, é imprescindível o desequilíbrio de forças decorrente da exposição massiva de um candidato nos meios de comunicação em detrimento de outros, de modo apto a comprometer a normalidade e a legitimidade do pleito (REspe no 4709-68/RN, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 10.05.2012). Esse desequilíbrio pode ser causado tanto por meio de exposição excessiva pelo enaltecimento das qualidades e feitos do candidato, como por meio de notícias que possam denegrir ou macular a imagem do oponente.

No caso, as publicações na rede Facebook (ID 39714533), bem como o vídeo veiculado (ID 39714583), não representam violação ao art. 73, incs. I, II e III, da Lei n. 9.504/97.

Ao contrário, a candidata fez uso das redes sociais, acessíveis a todos, para exaltar suas qualidades e lembrar a experiência pretérita junto à Secretaria de Saúde do Município. É absolutamente comum, e em consonância com a idoneidade do pleito, que os candidatos possam apresentar suas realizações profissionais, no intuito de contribuir no processo de escolha dos eleitores.

Como bem observado pelo Ilustre Procurador Regional Eleitoral (ID 40723433):

Ora, é perfeitamente válido, do ponto de vista eleitoral, mencionar, como conteúdo de campanha, trabalhos e atividades desenvolvidos anteriormente pelo candidato, como forma de se fazer conhecido pela população, ainda que tais trabalhos digam respeito a um cargo público anteriormente ocupado. Nessa via, aliás, a própria Lei das Eleições concebe tal possibilidade, ao mencionar como lícito, mesmo em período de pré-campanha, “a exaltação das qualidades pessoais” (art. 36-A, caput), “a exposição de plataformas e projetos políticos” (art. 36-A, inciso I), bem como “a divulgação da pré-candidatura, das ações políticas desenvolvidas e das que se pretende desenvolver” (art. 36-A, § 2º). Portanto, mencionar, em campanha, o trabalho desenvolvido anteriormente perante a população constitui uma forma de exaltar as qualidades pessoais do candidato, demonstrando aos eleitores as razões pelas quais estaria melhor credenciado a assumir um mandato eletivo. Assim, da mesma forma que aquele que exerce uma atividade privada pode fazer referência a sua atuação profissional para demonstrar sua competência e capacidade, o candidato que foi servidor público possui o mesmo direito, até porque nada impede de vir a ser criticado pelos seus adversários exatamente pelo trabalho exercido no serviço público.

 

A publicação no Facebook, que remonta à época em que a candidata exercia função pública, afigura-se direito que possui o cidadão de demonstrar suas experiências à comunidade. Não houve a utilização da “máquina pública”, apenas exercício da liberdade de expressão e de propaganda, sem configurar desequilíbrio do pleito ou afetar a isonomia entre os candidatos.

Nesse sentido:

DIREITO ELEITORAL. AGRAVO INTERNO EM RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2016. CONDUTA VEDADA. PUBLICIDADE INSTITUCIONAL. REDE SOCIAL. PERFIL PESSOAL. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE EMPREGO DA MÁQUINA PÚBLICA. PROMOÇÃO PESSOAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. DESPROVIMENTO.

1. Agravo interno interposto contra decisão monocrática que negou seguimento a recurso especial eleitoral.

2. Não há privilégio ou irregularidade na publicação de atos praticados durante o exercício do mandato; especificamente, porque veiculados sem utilização de recursos públicos em meio acessível a todos os candidatos e apoiadores, como é o caso das mídias sociais.

3. Além disso, a promoção pessoal realizada de acordo com os parâmetros legais não caracteriza conduta vedada, constituindo exercício da liberdade de expressão no âmbito da disputa eleitoral.

4. O emprego da máquina pública, em qualquer de suas possibilidades, é a essência da vedação à publicidade institucional prevista no art. 73, VI, b, da Lei nº 9.504/1997, objetivando assegurar a igualdade de oportunidades entre os candidatos. No caso, a moldura fática do acórdão regional não apresenta indícios de que houve uso de recursos públicos ou da máquina pública para a produção e divulgação das postagens de responsabilidade do agravado.

5. Agravo interno a que se nega provimento.

(Recurso Especial Eleitoral n. 151992, Acórdão, Relator Min. Luís Roberto Barroso, Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Data: 28.6.2019.)

 

Com essas considerações, tenho que a sentença não merece reparos.

Ante o exposto, VOTO pelo desprovimento do recurso.