REl - 0600522-12.2020.6.21.0057 - Voto Relator(a) - Sessão: 20/05/2021 às 10:00

VOTO

O recurso postula a condenação dos recorridos pela prática da conduta vedada descrita no art. 73, § 10, da Lei das Eleições:

Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:

(…)

§ 10. No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa.

 

Conforme narra a sentença, de acordo com a inicial, os recorridos efetuaram, em setembro de 2020, alienações de bens municipais e itens patrimoniais pertencentes ao município, com o intuito de favorecer particulares, em princípio, apoiadores de campanha.

Os recorrentes afirmaram ter ocorrido a alienação de lotes individuais no cemitério, nos termos da Lei Municipal n. 5.172/20, cujo projeto fora previsto em 2016, só vindo a ser implementado em setembro do corrente ano. Aludiram que as alienações da área de sesmaria Itapitocay (Concorrência Pública n. 010/2020) e dos sublotes 07 e 09 da Quadra X do Loteamento São Marcos (Concorrência Pública n. 037/2019) também seriam irregulares, tendentes a burlar a legislação eleitoral.

A bem-lançada sentença concluiu pela improcedência dos pedidos, entendendo, corretamente, que o fato descrito nos autos não caracteriza infração eleitoral porque “a regra restritiva só proíbe a distribuição gratuita de bens, valores e/ou benefícios e não toda e qualquer alienação por parte da Administração Pública durante o ano eleitoral”.

Transcrevo os fundamentos da decisão recorrida, adotando-os como razões de decidir:

No ponto, conforme grifado no texto legal acima transcrito, há de se ter em consideração que a regra restritiva só proíbe a distribuição gratuita de bens, valores e/ou benefícios e não toda e qualquer alienação por parte da Administração Pública durante o ano eleitoral.

No caso posto, os documentos juntados aos autos no evento nº 41591068 (concorrência pública 017/2020), evento nº 41587400 (ofício da Secretaria de Planejamento), evento nº 41591075 (concorrência pública 010/2020, 1ª parte), evento nº 41591073 (concorrência pública 010/2020, 2ª parte) evidenciaram que  as alienações tanto na área do cemitério, quanto na área rural ocorreram a título oneroso e não gratuito. Tal circunstância, por  si só, afasta o tipo da regra invocada.

Em situação análoga, o Egrégio TSE já assentou que a alienação onerosa não concretiza o suporte fático da regra do art. 73, § 10 da Lei das Eleições:

ELEIÇÕES 2012. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. PREFEITO E VICE-PREFEITO. ABUSO DE PODER. DISTRIBUIÇÃO DE BENEFÍCIOS ASSISTENCIAIS E DE LOTES AOS MUNÍCIPES. DESPROVIMENTO DOS RECURSOS.
1. Suposto rejulgamento da causa em embargos declaração. Omissões qualificadas que justificaram o empréstimo de eficácia suspensiva, mormente quando se sabe que a jurisprudência "dos Tribunais Superiores é uníssona no sentido de admitir, em caráter excepcional, o acolhimento de embargos de declaração para a correção de premissa equivocada" (RO nº 703-11/SP, rel. Min. Tarcisio Vieira de Carvalho Neto, julgado em 23.2.2016), conforme reconheceu o próprio acórdão regional, quando assentou que não existia lei autorizando os programas sociais, mas havia a Lei Municipal nº 740/2004, ainda não juntada aos autos na ocasião do julgamento do recurso eleitoral. 2. Juntada da Lei nº 740/2004 em fase de recurso eleitoral. Na linha da jurisprudência do STJ, "somente os documentos tidos como indispensáveis, porque 'substanciais' ou 'fundamentais', devem acompanhar a inicial e a defesa. A juntada dos demais pode ocorrer em outras fases e até mesmo na via recursal, desde que ouvida a parte contrária e inexistentes o espírito de ocultação premeditada e de surpresa do juízo" (REsp nº 431.716/PB, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, julgado em 22.10.2002). O TSE entende que se admite "a juntada de documentos novos na hipótese do art. 397 do CPC" (AgR-REspe nº 35.912, rel. Min. Marcelo Ribeiro, julgado em 1º.12.2009). 2.1. O primeiro acórdão regional que concluiu pela cassação dos diplomas de prefeito e de vice prefeito, bem como aplicou-lhes multa já havia considerado a existência da Lei nº 740/2004. 2.2. O teor e a vigência da referida lei são de conhecimento do órgão julgador regional, porquanto sua aplicação foi expressamente analisada para afirmar que a sua juntada em nada modificava o quadro fático-jurídico da causa. 2.3. Ausência de prejuízo à parte contrária, mormente quando se verifica que não há contestação quanto ao conteúdo da legislação municipal. 3. Mérito. Na perspectiva do Direito Eleitoral, a Constituição Federal é expressa ao afirmar a proteção à "normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta" (art. 14, § 9º). No âmbito infraconstitucional, a Lei das Eleições, por meio de seu art. 73, protege o princípio da igualdade de chances ou paridade de armas entre os contendores candidatos, partidos políticos e coligações , entendido assim como a necessária concorrência livre e equilibrada entre os partícipes da vida política, sem o qual fica comprometida a própria essência do processo democrático. 4. Concessão de benefícios assistenciais. Art. 73, § 10, da Lei nº 9.504/1997 e abuso de poder. O acórdão regional expressamente consignou que: i) a concessão de benefícios assistenciais estavam amparados em lei e em execução orçamentária no ano anterior; ii) o aumento das concessões não ocorrera de forma abusiva; iii) existia critério na distribuição dos benefícios, padronizado desde 2009; iv) ausência de mínima prova indiciária acerca de conotação eleitoral, como pedido de votos, entre outras circunstâncias; v) o prefeito sequer participava da distribuição, mas apenas os servidores do município. Não há, pois, violação ao art. 73, § 10, da Lei nº 9.504/1997, valendo ressaltar o entendimento do TSE no sentido de que "o incremento do benefício (de 500 para 761 cestas básicas) não foi abusivo, razão pela qual não houve ofensa à norma do art. 73, § 10 da Lei nº 9.504/97" (AgR-REspe nº 9979065-51/SC, rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em 1º.3.2011). 5. Concessão de direito real de uso Lotes. Art. 73, § 10, da Lei nº 9.504/1997 e abuso de poder. O acórdão regional demonstrou que: i) a distribuição de terrenos se dera em continuidade a programa social estabelecido em lei e em execução orçamentária no ano anterior ao da eleição; ii) não há provas de desvio de finalidade do programa, a ensejar o reconhecimento de abuso de poder; iii) a simples leitura da Lei Municipal nº 740/2004 revela que há regramento específico a respeito da possibilidade de concessão de direito real de uso de modo oneroso, o que afasta de plano o art. 73, § 10, da Lei nº 9.504/1997, que pressupõe distribuição gratuita. 6. Inviável no caso concreto o novo enquadramento jurídico dos fatos, pois necessário seria o reexame das provas dos autos, o que não se coaduna com a via do recurso especial eleitoral. 7. Divergência jurisprudencial não demonstrada.
8. Recursos especiais desprovidos.

(Recurso Especial Eleitoral nº 15297, Acórdão, Relator(a) Min. Gilmar Mendes, Publicação:  DJE - Diário de justiça eletrônico, Data 07/10/2016, Página 61-62) (grifei).

 

Cumpre observar, ademais, que os referidos atos foram previamente autorizados por lei (eventos 41591094).

A conotação dos atos como desvio de finalidade, tendo as alienações sido promovidas com fins eleitorais, não passa de mera ilação dos investigantes, não tendo sido devidamente comprovada nos autos. O fato de os procedimentos que culminaram nas leis e nos atos de alienação terem iniciado em anos anteriores, por si só, não comprova tal desvio, sendo até comum diante da burocracia administrativa.

De outra banda, inviável se pensar na aplicação extensiva da regra invocada para também abarcar atos de alienação onerosa. De modo contrário ao argumentado levantado pelos investigantes, as regras que tipificam condutas vedadas exigem interpretação estrita ou até mesmo restrita, uma vez que restringem a capacidade eleitoral passiva do cidadão, o direito fundamental dele concorrer no processo democrático de escolha da representação popular.

Regras dessa natureza não podem ser interpretadas extensiva ou analogicamente, sob pena de o Juiz, com a colaboração das partes que o provocaram e participaram do processo judicial, e, em afronta ao princípio da separação das funções de Estado (art. 2º da CF), arvorar-se na condição de legislador, criando um obstáculo não previsto para a participação no processo eleitoral.

Nesse sentido, também já se manifestou o TSE: 

ELEIÇÕES 2014. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. REPRESENTAÇÃO. ABUSO DO PODER POLÍTICO. GOVERNADOR. VICE-GOVERNADOR. CONDUTA VEDADA. SERVIDOR PÚBLICO. PODER LEGISLATIVO. CESSÃO. PREVISÃO LEGAL. AUSÊNCIA. RESTRIÇÃO DE DIREITOS. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA. IMPOSSIBILIDADE. DESPROVIMENTO.
1. A vedação contida no art. 73, III, da Lei nº 9.504/97 é direcionada aos servidores do Poder Executivo, não se estendendo aos servidores dos demais poderes, em especial do Poder Legislativo, por se tratar de norma restritiva de direitos, a qual demanda,  portanto, interpretação estrita. 
2. Nas condutas vedadas previstas nos arts. 73 a 78 da Lei das Eleições imperam os princípios da tipicidade e da legalidade estrita, devendo a conduta corresponder exatamente ao tipo previsto na lei (REspe nº 626-30/DF, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 4.2.2016).
3. Agravo regimental desprovido.

(Recurso Especial Eleitoral nº 119653, Acórdão, Relator(a) Min. Luciana Lóssio, Publicação:  DJE - Diário de justiça eletrônico, Data 12/09/2016, Página 31) (grifei).

 

Por fim, ressalto que o processo eleitoral não pode ter o condão de paralisar toda a administração pública durante o ano eleitoral. Ainda que os atos praticados pelo candidato à reeleição até possam ter repercussão perante o eleitorado, tal circunstância não impõe um comando de paralisia ao administrador candidato. Justamente, por isso, o juízo de ponderação entre os princípios da igualdade (no caso de oportunidades no processo eleitoral) e da continuidade da administração há de ser estrito, observando o que foi estabelecido legitimamente pelo Legislador.

Nessa linha, a lição de Zílio:

A cláusula normativa do § 10 do art. 73 da LE traz à baila um conflito aparente entre o princípio da continuidade administrativa e o princípio da isonomia de oportunidade entre os candidatos. De fundamental relevância para a autonomia gerencial do ente público, o princípio da continuidade administrativa continua subsistindo integralmente - até mesmo porque prestigiado pelo constituinte que admitiu a possibilidade de reeleição para o Poder Executivo, por um período subsequente, sem necessidade de desincompatibilização (art. 14, § 5º, da CF).

As restrições impostas ao administrador público na esfera eleitoral devem coexistir com as regras da administração pública, não podendo, sem justo motivo - haver a paralisação ou modificação da execução (seja quantitativa ou qualitativa) nas prestação dos serviços públicos, com prejuízo à coletividade.  (Zílio, Rodrigo Lopes. Direito Eleitoral. ª ed. Verbo Jurídico. Porto Alegre-RS. 2016. p. 625-626)

No caso posto, a prova dos atos só demonstrou a execução de atos de alienação onerosa, típicos da administração, não restando caracterizada, pois, qualquer conduta vedada. 

 

A sentença recorrida é irretocável.

A documentação juntada ao feito demonstra que tanto a Concorrência Pública n. 017/20, cujo objeto era a alienação de 139 lotes individuais de terreno medindo 1m50cm de frente por 3m de profundidade, no cemitério Público Municipal Senhora Sant’Ana, quanto a Concorrência Pública n. 10/20, cujo objeto era a alienação de uma fração de campo com superfície de 60.000 m² (6 ha), localizada na sesmaria do Itapitocay, foram concluídas durante a tramitação do presente processo.

Apesar de ter sido dada publicidade aos procedimentos licitatórios, eles sequer foram finalizados, assistindo razão à Procuradoria Regional Eleitoral ao apontar que “o que se verifica é que sequer foi desempenhada a ação material prevista no § 10 do art. 73 da Lei nº 9.504/97, consistente na distribuição de bens pela Administração Pública”.

Desse modo, levando-se em conta que, na data das eleições, os procedimentos atinentes à alienação onerosa de bens públicos sequer estavam concluídos, evidencia-se que, sem sombra de dúvidas, os fatos não se amoldam à conduta vedada prevista no § 10 do art. 73 da Lei das Eleições.

Ademais, conforme assentado na sentença, o dispositivo legal exige, para fins de caracterização da conduta vedada, que a entrega de bens seja gratuita e, no caso dos autos, ambas as concorrências públicas estipulavam um preço mínimo para a alienação, sendo, portanto, onerosas.

Com essas razões, entendo que a sentença merece ser mantida por seus próprios fundamentos, pois as razões de reforma são insuficientes para infirmar a conclusão pela improcedência dos pedidos condenatórios.

 

ANTE O EXPOSTO, VOTO pelo desprovimento do recurso interposto e considero prequestionados os dispositivos legais invocados, nos termos da fundamentação.