HCCrim - 0600066-05.2021.6.21.0000 - Voto Relator(a) - Sessão: 22/04/2021 às 14:00

VOTO

Senhor Presidente,

Eminentes colegas:

A concessão de trancamento de ação penal pela via do habeas corpus é medida de exceção, somente sendo cabível quando, de plano, resta evidenciada eventual ilegalidade ou abuso de poder.

Contudo, adianto que, no caso em tela, não verifico flagrante constrangimento ilegal.

Após a análise da manifestação da autoridade apontada como impetrada e à luz dos percucientes argumentos lançados pela douta Procuradoria Regional Eleitoral, verifico que os fundamentos utilizados para indeferir o pedido liminar não devem ser alterados.

Inicialmente, cabe esclarecer que o paciente está sendo processado pela suposta prática dos crimes eleitorais de calúnia (art. 324), difamação (art. 325) e injúria (art. 326), todos previstos no Código Eleitoral, com a causa de aumento trazida no art. 327 do mesmo ordenamento.

Transcrevo os fatos supostamente delituosos descritos na denúncia, originalmente grifados:

1º FATO:

No dia 11 de novembro de 2020, no município de Alpestre/RS, por meio de publicação do candidato na rede social Facebook (https://www.facebook.com/alcir.hendges/videos/4024347307593270), o denunciado Alcir José Hendges caluniou, durante a propaganda eleitoral e com finalidade eleitoral, por meio que facilitou a divulgação das ofensas, o Promotor de Justiça Alexandre Salim, funcionário público e em razão de suas funções, imputando-lhe falsamente fato definido como crime.

Na ocasião, o denunciado verbalizou em vídeo publicado no seu perfil de candidato na rede social “Facebook” que a vitima coordenou uma “armação política” denominada Operação Paiol, praticando atos em desvio de função e finalidade a fim de favorecer interesses dos seus adversários políticos. Ao assim proceder, indicou a prática de crimes funcionais que não foram cometidos pelo Promotor de Justiça, como prevaricação e abuso de autoridade.

 

2º FATO:

Nas mesmas circunstâncias de tempo e local do fato acima descrito, o denunciado difamou, durante a propaganda eleitoral e com finalidade eleitoral, por meio que facilitou a divulgação das declarações, o Promotor de Justiça Alexandre Salim, funcionário público e em razão de suas funções, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação.

Na oportunidade, o denunciado alegou que o ofendido, durante as investigações da Operação Paiol, havia mentido e litigado de má fé contra o acusado e que, por consequência, sofrera condenação em procedimento apartado, só não tendo sido exonerado de suas funções como Promotor de Justiça em razão da pendência de recurso em instâncias superiores.

No entanto, a referida condenação por litigância de má-fé ocorreu em processo trabalhista, sem qualquer relação com a atuação do Promotor de Justiça na Operação Paiol, sendo a alegada punição disciplinar sofrida pelo membro do Ministério Público também totalmente desvinculada da referida operação.

 

3º FATO:

Nas mesmas circunstâncias de tempo e local do fato acima descrito, o denunciado injuriou durante a propaganda eleitoral e com finalidade eleitoral, por meio que facilitou a divulgação das ofensas, o Promotor de Justiça Alexandre Salim, funcionário público e em razão de suas funções, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro.

Na ocasião, o denunciado durante a exposição do vídeo supramencionado ressaltou que a vítima “é o tipo de Promotor que envergonha a instituição do Ministério Público e que não tem credibilidade nenhuma”.

 

O crime foi cometido por meio que facilitou a divulgação das ofensas (rede social “Facebook”), tendo, até o momento em que ajuizada representação eleitoral pelo Ministério Público para retirada da publicação (Processo n.º 0600164-77.2020.6.21.0144), 184 “curtidas”, 46 comentários e 59 compartilhamentos.

O crime foi cometido contra funcionário público em razão de suas funções.

ASSIM AGINDO, o denunciado ALCIR JOSÉ HENDGES incorreu nas sanções dos artigos 324, 325, 326, com a causa de aumento do art. 327, incisos II e III, todos do Código Eleitoral, tudo na forma do art. 69 do Código Penal.

 

Pois bem.

Com relação à suposta ilegitimidade do Ministério Público Eleitoral para propor a ação penal, bem como quanto à incompetência da Justiça Eleitoral para processar e julgar aquele feito, tenho que não assiste razão ao paciente.

Isso porque é possível verificar no vídeo publicado no Facebook (ID 40337033) que o discurso do paciente – o qual, diga-se, era candidato a prefeito do Município de Alpestre – faz clara referência ao pleito municipal de 2020, associando e correlacionando os atos do Promotor de Justiça Alexandre Salim àquelas eleições, bem como pedindo votos ao final, salientando aos eleitores que: “(…) no dia 15. É 15! Alcir e Olivane”.

Registro, novamente, que Alcir e Olivane eram, respectivamente, os candidatos a prefeito e vice, pelo MDB (15), nas eleições municipais de Alpestre/RS.

A fim de demonstrar a predita correlação, transcrevo o trecho inicial do vídeo:

“Saudação a todos. Infelizmente, vou ter que fazer alguns esclarecimentos em face de ataques absurdos feitos pelos nossos adversários, que, aliás, como não tem proposta de governo, e devido ao povo já ter decidido que vai mudar no próximo dia 15, vem usando unicamente e exclusivamente a ‘Operação Paiol’, que foi realizada em nosso município para tentar enganar novamente os nossos eleitores”.

 

A partir daí, Alcir discursa a respeito da “Operação Paiol” e da ação judicial relativa ao Promotor Salim na Justiça do Trabalho, bem como sobre o fato de este ter sido condenado por litigância de má-fé.

Quanto a essa passagem do vídeo, cabe transcrever o consignado pelo douto Procurador Regional Eleitoral em seu parecer:

Analisando o conteúdo do vídeo, que consta no ID 40337033, percebe-se que o paciente, quando se refere a processo, fala da “Operação Paiol”, razão pela qual a menção feita à condenação do promotor por litigância de má-fé dá a entender aos seus eleitores que seria naquele processo, o único anteriormente referido. Em nenhum momento é esclarecido que a condenação por litigância de má-fé se deu em reclamatória trabalhista.

(Grifei.)

 

Após discorrer sobre questões relativas ao promotor, continua o discurso referindo que os eleitores podem confiar no seu grupo político. Vejamos:

“Podem confiar em nós. Até porque nossos adversários falam tanto em corrupção, mas não conseguem explicar o que fazem com o dinheiro público”.

 

E assim finaliza:

“Um grande abraço a todos e até a vitória no dia 15. É 15! Alcir e Olivane”.

 

Mostra-se clara, portanto, a correlação entre o processo eleitoral e as denúncias efetivadas por Alcir em relação ao promotor, evidenciando que o paciente, na condição de candidato, colocou o Promotor Salim e adversários políticos como responsáveis por um conluio cujo objetivo era prejudicá-lo na disputa eleitoral.

Cabe, aqui, esclarecer que, ao contrário do sustentado pelos impetrantes, a Justiça Eleitoral atrai a competência para o julgamento dos crimes de calúnia, injúria e difamação não apenas se cometidos em propaganda eleitoral, mas também se o ato praticado tiver “finalidade eleitoral específica” para os fins de propaganda eleitoral.

Nesse sentido, o TSE é claro ao compreender que “a alegação de que o tipo do art. 324 do Código Eleitoral exige sempre a finalidade de propaganda eleitoral não se sustenta. A simples leitura do dispositivo esclarece qualquer dúvida: a calúnia estará caracterizada quando ocorrer ‘na propaganda eleitoral, ou visando fins de propaganda’.” (Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral n. 35.322 – Rel. Min. Joaquim Barbosa – j. 01.7.2009.)

Desse modo, não vejo razões para afastar, de forma prévia, a competência desta Especializada para julgar os fatos trazidos na denúncia ministerial.

Registro, ainda, que, para o reconhecimento da ausência de justa causa à continuidade do procedimento criminal, está consignada na jurisprudência a impossibilidade de análise, pela via do habeas corpus, de elementos que demandem o profundo exame de fatos e provas, tendo em vista tratar-se o writ de instrumento de rito sumaríssimo que não comporta dilação probatória, o que demonstra a impropriedade da via eleita.

Somente se reconhece a falta de justa causa para a ação penal quando, de pronto, sem a necessidade de exame valorativo do conjunto fático ou probatório, evidenciar-se a atipicidade do fato, a ausência de indícios a fundamentarem a acusação ou, ainda, a extinção da punibilidade.

O trancamento da ação penal somente é possível de ser decretado em sede de habeas corpus no caso de constrangimento ilegal evidente, incontroverso, indisfarçável, que se mostra de plano ao julgador, não se destinando à correção de controvérsias ou de situações que demandem, para sua identificação, aprofundado exame de fatos e provas. Nessa linha, trago precedente do Tribunal Superior Eleitoral:

AÇÃO PENAL. ELEIÇÕES 2014. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. PREFEITO À ÉPOCA DOS FATOS. PRERROGATIVA DE FORO. PROPAGANDA ELEITORAL NO DIA DA ELEIÇÃO. ART. 39 DA  LEI Nº 9.504/97. TRANCAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. INEXISTÊNCIA. ORDEM DENEGADA.

1. O trancamento de ação penal é providência excepcional, somente adotada nos casos em que demonstrada, de plano, a inexistência de justa causa para o seu prosseguimento, que se traduz na ausência de indícios mínimos de autoria e/ou materialidade delitiva, na atipicidade da conduta imputada ao investigado, ou, ainda, na ocorrência de causa extintiva da punibilidade. Precedentes do TSE e do STF.

2. Nenhuma dessas hipóteses está presente no caso em apreço, uma vez que a denúncia demonstra de forma circunstanciada a subsunção da conduta imputada ao paciente quanto ao ilícito previsto no art. 39, § 5º, III, da Lei nº 9.504/97, além da qualificação do acusado (autoria e materialidade), atendendo, portanto, aos requisitos previstos no art. 41 do Código de Processo Penal c.c. o art. 357, § 2º, do Código Eleitoral.

3. Na linha da jurisprudência desta Corte Superior, “evidenciada a presença de elementos mínimos que atestam a tipicidade da conduta, bem como indícios de autoria e materialidade, deve ter prosseguimento a ação penal” (AgR–REspe nº 287–35/MG, Rel. Min. Rosa Weber, DJe de 25.5.2018).

4. O exame da matéria relativa à ausência de dolo do paciente, no caso concreto, demandaria análise mais aprofundada do ainda insuficiente conjunto probatório, providência incabível na via estreita do habeas corpus. Precedente do TSE.

5. Ordem de habeas corpus denegada.

(Habeas Corpus n. 060085761, Acórdão, Relator Min. Tarcisio Vieira De Carvalho Neto, Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Tomo 221, Data: 07.11.2018.) (Grifei.)

 

Por consequência, não vislumbro a existência de constrangimento ilegal quanto a este ponto.

Quanto à não proposição de Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), previsto no art. 28-A do CPP, de igual modo não procedem as alegações dos impetrantes, visto que, conforme exposto pelo Ministério Público Eleitoral (ID 40336883 – fls. 5-6), o paciente não faz jus ao benefício. Transcrevo excerto da promoção ministerial:

No tocante ao oferecimento de proposta de acordo de não persecução penal, o Ministério Público Eleitoral reitera integralmente as razões já expostas em conjunto com a denúncia oferecida (ID 61701014), destacando não oferecer ao acusado o proposta de acordo de não persecução penal tendo em vista a pluralidade de condutas praticadas, provocando acirramento de ânimos às vésperas do pleito, somadas ao histórico criminal do acusado, que responde na Comarca de Planalto/RS pela prática de crimes graves, como crimes da Lei de Licitações e crime de organização criminosa (Processo n.º 116/2.18.0000574-1), relacionado à Operação Paiol), de tal forma que é contraindicada a concessão do benefício, revelendo-se insuficiente a medida despenalizadora, nos termos do art. 28-A, do Código de Processo Penal.

De igual forma, reitera a promoção anteriormente elaborada para destacar que não oferece proposta de suspensão condicional do processo em razão de o denunciado estar respondendo a outros processos criminais (Processos de n.º 116/2.16.0000104-8 e 116/2.18.0000574-1), não preenchendo os requisitos do art. 89 da Lei n.º 9.099/95.

 

Quanto a este ponto, peço vênia para acrescentar a elucidativa manifestação do douto Procurador Regional Eleitoral, acompanhada de jurisprudência do STJ e STF, corroborando a conclusão de que o instituto da ANPP “não tem natureza jurídica de direito subjetivo do investigado, cabendo ao Ministério Público analisar, além dos requisitos objetivos, se o caso concreto insere-se na estratégia de política criminal adotada pela instituição”. Vejamos:

O acordo de não persecução penal, inserido no art. 28-A do Código de Processo Penal pela Lei 13.964/2019, “consiste em um negócio jurídico pré-processual entre o Ministério Público e o investigado, juntamente com seu defensor, como alternativa à propositura de ação penal para certos tipos de crimes, principalmente no momento presente, em que se faz necessária a otimização dos recursos públicos. Com efeito, o membro do Ministério Público, ao se deparar com os autos de um inquérito policial, a par de verificar a existência de indícios de autoria e materialidade, deverá ainda analisar o preenchimento dos requisitos autorizadores da celebração do ANPP, os quais estão expressamente previstos no Código de Processo Penal: 1) confissão formal e circunstancial; 2) infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos; e 3) que a medida seja necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime”. (STJ, HC 612.449/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 22/09/2020, DJe 28/09/2020).

Conforme o Supremo Tribunal Federal, o instituto não tem natureza jurídica de direito subjetivo do investigado, cabendo ao Ministério Público analisar, além dos requisitos objetivos, se o caso concreto insere-se na estratégia de política criminal adotada pela instituição.

Nesse sentido, o seguinte precedente:

AGRAVO REGIMENTAL. HABEAS CORPUS. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL EM RELAÇÃO AO DELITO DE ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE DROGAS (ART. 35 DA LEI 11.343/2006). INVIABILIDADE. 1. As condições descritas em lei são requisitos necessários para o oferecimento do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), importante instrumento de política criminal dentro da nova realidade do sistema acusatório brasileiro. Entretanto, não obriga o Ministério Público, nem tampouco garante ao acusado verdadeiro direito subjetivo em realizá-lo. Simplesmente, permite ao Parquet a opção, devidamente fundamentada, entre denunciar ou realizar o acordo, a partir da estratégia de política criminal adotada pela Instituição. 2. O art. 28-A do Código de Processo Penal, alterado pela Lei 13.964/19, foi muito claro nesse aspecto, estabelecendo que o Ministério Público "poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições". 3. A finalidade do ANPP é evitar que se inicie o processo, não havendo lógica em se discutir a composição depois da condenação, como pretende a defesa (cf. HC 191.464-AgR/SC, Primeira Turma, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, DJe de 26/11/2020). 4. Agravo Regimental a que nega provimento. (STF, HC 191124 AgR, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 08/04/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-069 DIVULG 12-04-2021 PUBLIC 13-04-2021)

Na situação sob análise, observa-se que não houve omissão do Ministério Público Eleitoral quando não ofereceu o ANPP. Ao contrário, o órgão explicitou, em pelo menos duas oportunidades (promoção que acompanhou a denúncia e manifestação atendendo a despacho judicial), os motivos pelos quais deixava de ofertar o instituto ao paciente.

(…)

Ademais, não se encontra atendido o requisito atinente à confissão formal e circunstancial dos fatos, sendo que um dos fundamentos da presente impetração consiste, justamente, na alegação de inocorrência dos crimes contra honra descritos na denúncia.

Destarte, não se verifica constrangimento ilegal na ausência de oferecimento de acordo de não persecução penal.

 

Pelo exposto, deixo de acolher o pleito também quanto a este ponto.

Por fim, no que diz respeito às insurgências dos impetrantes relativas às testemunhas, tenho que se trata de meras conjecturas baseadas em circunstâncias futuras e incertas. Registro que caberá à magistrada, no papel de condutora e gestora do processo, analisar, durante a fase instrutória, a necessidade e pertinência da oitiva das testemunhas arroladas pelas partes, bem como o exercício de regular contradita processual lançada pelo paciente, se for o caso.

Assim, também quanto a isso, deve ser indeferido o pleito dos impetrantes.

Portanto, não há falar em trancamento da ação, pois os elementos verificados até aqui são aptos a autorizar o prosseguimento do procedimento penal, inexistindo constrangimento ilegal a ser sanado na presente via.

 

Ante o exposto, VOTO pela confirmação da decisão liminar e pela denegação da ordem de habeas corpus.

É como voto, Senhor Presidente.