RC - 0600548-50.2020.6.21.0173 - Voto Relator(a) - Sessão: 22/04/2021 às 14:00

 VOTO

O recurso é tempestivo e deve ser conhecido.

O Ministério Público Eleitoral afirma que não houve flagrante preparado. Acrescenta que, durante a audiência de instrução, as testemunhas arroladas na denúncia (servidor do MP e guarda municipal) confirmaram os fatos. Ao final, requer a reforma da sentença, para que seja o recorrido condenado pela prática do crime do art. 39, § 5°, inc. II, da Lei n. 9.504/97.

A sentença, de fato, está fundamentada no acolhimento das razões da defesa quanto à alegação da ocorrência de flagrante preparado, do qual teria resultado a prisão de Luis Fernando Mazzoni de Medeiros. Diante da nulidade da prova, o juízo de primeiro grau entendeu pela inexistência de elementos probatórios da conduta punível, absolvendo o acusado do crime de “boca de urna”, previsto no art. 39, § 5º, inc. II, da Lei n. 9.504/97.

Sobre a diferenciação entre flagrante preparado e flagrante esperado, de modo a evitar indevida tautologia, colaciono a manifestação do ilustre Procurador Regional Eleitoral (ID 27376133):

Com a devida vênia, o fato em tela não configura hipótese de flagrante preparado, no qual o agente é induzido a provocar o delito, e sim flagrante esperado, hipótese em que não se verifica essa estimulação por parte da vítima, da autoridade policial ou mesmo de terceiros, no sentido de induzir o agente à prática do delito. Colhe-se, na abalizada doutrina de Rogério Greco a distinção entre o chamado flagrante preparado e o flagrante esperado, analisado à luz do enunciado da Súmula 145 do STF, in verbis: “Por intermédio da Súmula 145 do STF, que diz que não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação, foi pacificado o entendimento daquela Corte no sentido de que, em determinadas situações, se a polícia preparar o flagrante de modo a tornar impossível a consumação do delito, tal situação importará em crime impossível, não havendo, por conseguinte, qualquer conduta que esteja a merecer a reprimenda do Estado. Uma vez preparado o flagrante pela polícia, a total impossibilidade de se consumar a infração penal pretendida pelo agente pode ocorrer tanto no caso de absoluta ineficácia do meio por ele utilizado como no de absoluta impropriedade do objeto. Temos visto a distinção entre o chamado flagrante preparado e o flagrante esperado. Mas qual a diferença entre os dois tipos de flagrante? No primeiro, isto é, no flagrante preparado, o agente é estimulado pela vítima, ou mesmo pela autoridade policial, a cometer a infração penal com o escopo de prendê-lo. A vítima e a autoridade policial, bem como terceiros que se prestem a esse papel, são conhecidos como agentes provocadores. Já no flagrante esperado não haveria essa estimulação por parte da vítima, da autoridade policial ou mesmo de terceiros, no sentido de induzir o agente à prática do delito. O agente, aqui, não é induzido a cometer delito algum. Nesses casos, tendo a autoridade policial prévio conhecimento da intenção do agente em praticar a infração penal, o aguarda, sem estimulá-lo a absolutamente nada, e cuida de todos os detalhes de modo a evitar a consumação do crime. Fala-se, nessa hipótese, em possibilidade de tentativa”. Nesse sentido, confira-se o seguinte precedente do Eg. STJ:

PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. IMPETRAÇÃO SUBSTITUTIVA DO RECURSO PRÓPRIO. NÃO CABIMENTO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE EXCEPCIONALIDADE. FLAGRANTE PREPARADO. CRIME IMPOSSÍVEL. SÚMULA N. 145/STF. NÃO VERIFICAÇÃO. 4. FLAGRANTE ESPERADO. RÉUS MONITORADOS. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. 5. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. 1. O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, diante da utilização crescente e sucessiva do habeas corpus, passaram a restringir sua admissibilidade quando o ato ilegal for passível de impugnação pela via recursal própria, sem olvidar a possibilidade de concessão da ordem, de ofício, nos casos de flagrante ilegalidade. 2. O trancamento da ação penal somente é possível, na via estreita do habeas corpus, em caráter excepcional, quando se comprovar, de plano, a inépcia da denúncia, a atipicidade da conduta, a incidência de causa de extinção da punibilidade ou a ausência de indícios de autoria ou de prova da materialidade do delito. 3. O verbete n. 145 da Súmula do Supremo Tribunal Federal dispõe que "não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação". Contudo, não se pode confundir o flagrante preparado - no qual a polícia provoca o agente a praticar o delito e, ao mesmo tempo, impede a sua consumação, cuidando-se, assim, de crime impossível - com o flagrante esperado - no qual a polícia tem notícias de que uma infração penal será cometida e aguarda o momento de sua consumação para executar a prisão. 4. No caso dos autos, verificou-se que os pacientes já estavam sendo monitorados, não tendo havido provocação prévia dos policiais para que se desse início à prática do crime de tráfico de drogas. Ademais, consta do acórdão impugnado que as abordagens dos veículos ocorreram de forma autônoma, tendo a ligação telefônica apenas demonstrado o vínculo entre os pacientes, encontrando-se ambos em flagrante delito. Nesse contexto, não há se falar em flagrante preparado. 5. Agravo regimental a que se nega provimento.

(AgRg no HC 438.565/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 19/06/2018, DJe 29.06.2018.) 

No caso em apreço, tem-se que assiste razão à Promotoria Eleitoral, no ponto em que sustenta a não configuração da hipótese de flagrante preparado, porquanto não se verificou que em momento algum a testemunha João Roberto Assunção Soares, servidor do Ministério Público Estadual, tenha induzido o acusado a cometer o delito de “boca de urna”.

 

No caso concreto não houve flagrante preparado, visto que a testemunha (servidor do Ministério Público) foi abordada pelo acusado com o oferecimento de “santinho”, sem que restasse demonstrada qualquer ingerência sobre a ação do recorrido. Exatamente por isso, tenho que não há nulidade da prova e, neste quesito, merece reforma a sentença.

Tal conclusão, todavia, não é suficiente para alterar o resultado do julgamento. Apesar das consistentes razões trazidas pelo Ministério Público Eleitoral, o crime previsto no art. 39, § 5°, inc. II, da Lei n. 9.504/97 não restou devidamente comprovado.

O objetivo da norma é evitar que, no dia da eleição, o direito de voto (liberdade de voto) do eleitor seja prejudicado e influenciado por meios de convencimento dos candidatos e correligionários. No presente caso, o servidor do Ministério Público João Roberto Assunção Soares foi abordado enquanto exercia sua atividade de fiscalização, e não seu direito de voto constitucionalmente assegurado.

É possível que algum eleitor tenha sido efetivamente interpelado pelo acusado e, neste caso, haveria a incidência da norma. O fato é que não restou comprovada nos autos qualquer abordagem senão a do próprio servidor do Ministério Público.

É nesse mesmo sentido o parecer do ilustre Procurador Regional Eleitoral (ID 27376133):

De fato, segundo a prova testemunhal, não houve a abordagem a qualquer eleitor que se dirigisse à sua seção de votação, restringindo-se a perquirição da ilicitude apenas ao relato do aludido servidor, atinente à sua abordagem pelo acusado. É o que se extrai dos depoimentos colhidos em juízo das testemunhas João Roberto Assunção Soares, servidor do Ministério Público Estadual (18782333 e 18782383_até o minuto 01:56) e Ahron Hass, guarda municipal (18782383_a partir do minuto 01:57 e 18782433_até o minuto 02:56). Aliás, a testemunha Ahron Hass, guarda municipal, em seu depoimento em juízo, cingiu-se a afirmar apenas que fora chamado a comparecer ao local do fato, ocasião em que, após ser informado pelo servidor João Roberto de que este havia sido abordado pelo réu, procedeu à prisão em flagrante deste, conduzindo-o, ato contínuo, ao Fórum, para lavratura de termo circunstanciado. Embora pareça crível que o acusado efetivamente estivesse praticando “boca de urna”, com o intuito de influenciar a vontade de eleitores que se dirigiam às suas respectivas seções de votação, tal fato não restou cabalmente demonstrado, no presente caso.

 

A ausência de prova robusta de que o acusado teria, efetivamente, incorrido na tentativa de desvirtuar o direito de voto de eleitor impossibilita a procedência da ação penal. A mera suposição de que eleitores teriam sido abordados é insuficiente para motivar a condenação do cidadão que, por dicção constitucional, possui presunção de inocência.

Destarte, diante da ausência de provas suficientes a demonstrar o preenchimento do tipo penal, impõe-se a manutenção da absolvição.

Ante o exposto, VOTO pelo parcial provimento do recurso, apenas para afastar a declaração de nulidade da prova produzida por suposta existência de flagrante preparado, sem, contudo, alterar o resultado de absolvição do réu, que resta confirmado.