HCCrim - 0600051-36.2021.6.21.0000 - Voto Relator(a) - Sessão: 23/03/2021 às 14:00

VOTO

Trata-se de ação de Habeas Corpus ajuizada com o intento de ser modificada decisão da Juíza Eleitoral da 59ª Zona, a qual  aprazou a data de 24-03-2021 para a tomada de depoimento pessoal do paciente nos autos da AIME n. 0600562-85.2020.6.21.0059, alegando constrangimento ilegal devido à inexistência de previsão para a tomada de depoimento pessoal do impugnado em sede de AIME.

Sem razão o impetrante.

É cabível a ação de Habeas Corpus quando existir ameaça ou ofensa à liberdade de locomoção – prisão ou condução coercitiva, nos termos do art. 5º, LXVIII, da Constituição Federal, verbis:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

LXVIII - conceder-se-a habeas corpus sempre que alguem sofrer ou se achar ameacado de sofrer violencia ou coacao em sua liberdade de locomocao, por ilegalidade ou abuso de poder;

No caso dos autos, tendo em vista que o ato que decidiu pela tomada do depoimento pessoal do impugnado não importa em concreta ou efetiva violação à liberdade do paciente, a ação de Habeas Corpus não configura o instrumento cabível para atacar a decisão do magistrado a quo.

Nesse sentido, transcrevo o parecer exarado pela Procuradoria Regional Eleitoral:

Não assiste razão ao impetrante.

Como já referido no parecer anterior, não está em risco a liberdade de ir e vir do paciente, pelo simples fato da decisão que determinou seu depoimento pessoal não impor sua condução coercitiva para realização do ato. Tão somente, consta da decisão a advertência de que o não comparecimento importará na pena de confissão.

Destarte, no final das contas, o que o impetrante busca discutir nos presentes habeas corpus não é o indevido constrangimento a sua liberdade de ir e vir, vez que não está obrigado a comparecer em juízo, mas sim as consequências no plano probatório do seu não comparecimento para depoimento pessoal em processo cível eleitoral.

É dizer, discorda o impetrante da pena de confissão pelo não comparecimento, única consequência da sua ausência, discussão esta que poderá se dar, inclusive, em sede recursal no feito cível eleitoral.

A concessão do habeas corpus pressupõe constrangimento ilegal à liberdade de ir e vir (art. 5º, LXVIII, da Constituição Federal), situação que não se verifica na hipótese trazida aos autos.

A propósito, a decisão que indeferiu a liminar trouxe julgado do TSE que se aplica perfeitamente ao caso em tela e que se encontra em consonância com o entendimento ora esposado.

Ante o exposto, a Procuradoria Regional Eleitoral opina pela denegação da ordem.

A respeito do tema cumpre tecer algumas considerações.

O impetrante fundamenta o constrangimento ilegal à locomoção do paciente na inexistência de previsão para a tomada de depoimento pessoal em sede de AIME. Para isso, colaciona duas jurisprudências do TSE, do ano de 2009:

“Habeas corpus. Liminar. Desobrigação. Comparecimento. Audiência. Depoimento pessoal. Prefeito e vice-prefeito. Ação de impugnação de mandato eletivo. Falta de previsão na LC nº 64/90. Constrangimento ilegal. Concessão da ordem. I – Consoante jurisprudência do TSE, configura constrangimento ilegal obrigar réu a prestar depoimento pessoal em sede de ação de impugnação de mandato eletivo, em razão da falta de previsão na LC nº 64/90. [...]” (Ac. de 19.11.2009 no HC nº 651, rel. Min. Fernando Gonçalves.)

“Recurso em habeas corpus. Depoimento pessoal. Investigação judicial. 1. O procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar nº 64/90 não contempla a possibilidade de colheita de depoimento pessoal. 2. Conforme entendimento do egrégio Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus nº 85.029, o silêncio da lei eleitoral, quanto à questão, não é casual, já que o depoimento pessoal não tem relevo no processo eleitoral, dada a indisponibilidade dos interesses de que nele se cuidam. [...]” (Ac. de 4.6.2009 no RHC nº 131, rel. Min. Arnaldo Versiani.)

De fato, a legislação eleitoral não trata do tema. Contudo, como não há vedação expressa sobre a possibilidade da colheita de depoimento pessoal, sendo omissa a legislação, entendo que é possível a aplicação subsidiária da previsão contida nos arts. 370 e 385 do Código de Processo Civil, conforme entendimento do magistrado diante da análise do caso concreto.

Ressalta-se que a jurisprudência do TSE em questão é anterior à vigência do novo Código de Processo Civil, que insculpiu no seu art. 370 o princípio inquisitivo, o qual permite ao juiz a produção de provas de ofício.

Ademais, tenho que os fundamentos utilizados para a concessão do Habeas Corpus nas jurisprudências citadas, quais sejam, falta de previsão na LC n. 64/90 e a indisponibilidade dos interesses no processo eleitoral, são contraditórios às regras e princípios que orientam o ordenamento jurídico, bem como quanto a outras decisões do próprio TSE em casos análogos, pelas quais admitida a aplicação do CPC.

Entender como válido o fundamento da falta de previsão legal na LC n. 64/90, para impedir o depoimento pessoal da parte em AIME, inviabilizaria, de outro vértice, por exemplo, a produção de prova pericial pelo mesmo fundamento. Nesse sentido, não é razoável afastar a aplicação subsidiária do CPC para a produção de prova X e não afastar para a produção da prova Y.

Assim, oportuno transcrever jurisprudência do TRE-MT e da Corte Superior no sentido da possibilidade da produção de prova pericial em AIME:

AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE MANDATO ELETIVO – AIME – ALEGAÇÃO DE FRAUDE – ATA DE SUBSTITUIÇÃO DE SUPLENTE – DECISÃO INTERLOCUTÓRIA – LIMITAÇÃO DO MATERIAL GRÁFICO DA PERÍCIA GRAFOTÉCNICA ÀQUELE JÁ COLHIDO E JUNTADA NOS AUTOS – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – CONVERSÃO EM AGRAVO INTERNO – ALEGAÇÃO DE PERÍCIA PARCIAL – REJEITADA – UTILIZAÇÃO DO MATERIAL DE 14 [QUATORZE] PESSOAS DE UM TOTAL DE 23 [VINTE E TRÊS] QUE ASSINAM O DOCUMENTO PERICIADO – NÚMERO SUFICIENTE PARA QUE SE CHEGUE A UMA CONCLUSÃO – DESNECESSIDADE DE COLHEITA DE TODAS AS ASSINATURAS – EVENTUAL COMPLEMENTAÇÃO POSSÍVEL EM MOMENTO POSTERIOR – AGRAVO DESPROVIDO – PEDIDO DE CONDENAÇÃO EM LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ – REJEITADA. (...) 2. Em perícia grafotécnica, a limitação do material gráfico a ser usado pelo perito àquela constante dos autos, garante segurança às partes em relação aos elementos que serão utilizados pelo expert; 3. Tendo a AIME alegado fraude em assinaturas, sem, contudo, apontar objetivamente para qual seria falsa, a submissão da ata objeto da ação à perícia tendo como material paradigma 14 assinaturas de um total de 23, garante a realização da prova sem descuidar da necessidade de conferir prazo razoável ao fim da instrução, pois sequer se sabe se será possível colher padrões gráficos de todos os subscritores; 4. No curso da realização da prova, havendo mais padrões gráficos colhidos e sendo necessário a sua submissão a exame, nada impede que se complemente o laudo. Inteligência do voto oral da 2ª vogal; 5. Sendo a insurgência recursal feita pelo impugnado, verifica-se, quanto a ele, inexistir prejuízo em razão da decisão interlocutória proferida, pois quanto menos assinaturas na ata objeto do exame forem verificadas, menor a probabilidade de se chegar a eventual fraude, o que seria mais benéfico à tese que sustentou em sede de defesa; 6. Tendo o agravante apenas se insurgido contra decisão que considerou equivocada, deve ser indeferido o pedido de condenação em litigância de má-fé. Inteligência do Art. 80 do NCPC; 7. Agravo interno desprovido; 8. Decisão unânime.

(TRE-MT – AIME: 794 CUIABÁ – MT, Relator: ULISSES RABANEDA DOS SANTOS, Data de Julgamento: 06/03/2018, Data de Publicação: DEJE – Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 2602, Data 14/03/2018, Página 2) (Grifei.)

(…)

14. No que concerne ao abuso do poder econômico referente à contratação de gráficas para a produção de material da campanha eleitoral da chapa vencedora Coligação com a Força do Povo, não se pode ter tal situação como abusiva, pelo menos dentro da perspectiva do Direito Eleitoral Sancionador. O que se tem de concreto, quanto a isso, a partir do exame dos laudos da perícia contábil, é que o pagamento dos serviços gráficos contratados foi rigorosamente adimplido. Todavia, se os serviços foram prestados de forma parcial, ou não foram efetivamente prestados, a dinâmica da referida relação negocial sugere uma situação de inadimplemento contratual, ou a eventual prática de ilícitos penais ou tributários, que pode ser objeto de persecução na via processual adequada, observado o justo processo jurídico. (...)

(TSE - AIJE: 19435820146000000000 BRASÍLIA - DF, Relator: Min. Og Fernandes, Data de Julgamento: 25/08/2020, Data de Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Tomo 0, Data 21/09/2020, Página 0) (Grifei.)

Ainda, é possível verificar na jurisprudência do TSE a aceitação de depoimento pessoal como prova válida em AIME, nos casos onde não há contestação de sua validade:

ELEIÇÕES 2016. RECURSOS ESPECIAIS ELEITORAIS. AIJE. AIME. VEREADOR. FRAUDE À COTA DE GÊNERO. INOCORRÊNCIA. FINALIDADE DE BURLAR A NORMA. AUSÊNCIA DE PROVA ROBUSTA. ART. 10, § 3º, DA LEI Nº 9.504/97. CANDIDATURAS FEMININAS FICTÍCIAS. PRECEDENTE. ACÓRDÃO REGIONAL EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DO TSE. SÚMULA Nº 30/TSE. DESPROVIMENTO. (…) 9. No caso vertente, a Corte Regional concluiu que nem dos depoimentos pessoais nem da prova testemunhal ou documental seja isoladamente, seja em conjunto com os demais elementos não se poderia extrair juízo de certeza da alegada fraude. Conquanto tenham sido reconhecidos indícios do ilícito imputado nestes autos, há dúvida razoável a atrair o postulado in dubio pro sufragio, segundo o qual a expressão do voto e da soberania popular merece ser preservada pelo Poder Judiciário. (...)

(TSE – RESPE: 06020163820186180000 PEDRO LAURENTINO – PI, Relator: Min. Tarcisio Vieira De Carvalho Neto, Data de Julgamento: 04/08/2020, Data de Publicação: DJE – Diário de justiça eletrônico, Tomo 175, Data 01/09/2020, Página 0) grifei

RECURSO ELEITORAL. ELEIÇÕES 2016. AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE MANDATO ELETIVO. PREJUDICIAL DE DECADÊNCIA DO DIREITO DE AÇÃO. REJEIÇÃO. PRELIMINAR DE NULIDADE DA PROVA TESTEMUNHAL. REJEIÇÃO. PRELIMINAR DE NULIDADE DA JUNTADA DAS PROVAS EMPRESTADAS. REJEIÇÃO. MANUTENÇÃO DA CONTRADITA DE TESTEMUNHA. ABUSO DE PODER ECONÔMICO. CORRUPÇÃO ELEITORAL. COMPRA DE DOIS FLUTUADORES E DE UM PAR DE ÓCULOS EM FAVOR DE ELEITORES. CONJUNTO PROBATÓRIO SEGURO E INCONTESTE. GRAVIDADE EVIDENCIADA. CONFIGURAÇÃO DOS ILÍCITOS. ATUAÇÃO DESLEAL DO IMPUGNANTE-RECORRIDO. CONDENAÇÃO EM LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA DE CASSAÇÃO DO MANDATO ELETIVO. EFEITO IMEDIATO DA DECISÃO. DESPROVIMENTO DO RECURSO. (...) Sobre essas provas, aliás, longamente vem se batendo o impugnado-recorrente desde suas alegações finais, recurso eleitoral e manifestações posteriores nos autos, havendo, assim, quando à juntada e conteúdo, contraditório a mais não poder. Embora a impugnação volte-se especificamente para a juntada das gravações produzidas pelo impugnado-recorrente, cumpre realçar que a juntada do depoimento pessoal do impugnado-recorrente, igualmente a título de prova emprestada, também observou os requisitos estabelecidos no art. 435 do CPC, donde se impõe a rejeição da preliminar de nulidade na juntada das provas emprestadas. A Ação de Impugnação de Mandato Eletivo, prevista no art. 14, §§ 10 e 11 da CRFB/88, constitui ação de índole cível-constitucional que visa resguardar a lisura, o equilíbrio e a legitimidade do pleito contra interferências decorrentes de abuso de poder econômico, corrupção ou fraude. (...)

(TRE-RN – RE: 135 GALINHOS – RN, Relator: JOSÉ DANTAS DE PAIVA, Data de Julgamento: 08/11/2018, Data de Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Data 14/11/2018, Página 5-7) (Grifei.)

No tocante ao fundamento de indisponibilidade dos interesses no processo eleitoral, acredito que houve uma inversão conceitual. O que são indisponíveis são aqueles direitos dos sujeitos enquanto eleitores, protegidos inclusive pela Constituição Federal. No caso em tela, portanto, o que se mostra indisponível é a “lisura do pleito” e não a persecução do Estado contra irregularidades na eleição.

Nesse contexto, ainda analisando sob a ótica de casos análogos no ordenamento jurídico, mesmo que se tratasse de direito indisponível, entender pela impossibilidade da produção de prova de depoimento pessoal seria o mesmo que inviabilizar a oitiva do reclamante em uma reclamatória trabalhista ou da parte em uma ação envolvendo direito de família. Frisa-se que, nesses casos, onde há a presença de direitos indisponíveis, a parte é ouvida como informante, não lhe sendo aplicável a pena do art. 385, § 1º, do CPC, mas pode o magistrado aproveitar-se dos elementos informados na análise do conjunto probatório como um todo para o julgamento da lide.

Por conseguinte, oportunizar ao candidato a possibilidade de expor os fatos ao juízo conforme a verdade, em uma ação que pode gerar uma pena de tamanha gravidade, no intuito de evitar que se chegue a conclusões injustas, é respeitar em sua maior abrangência o princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório.

Por fim, conforme já referido na decisão liminar, a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral é no sentido de que o habeas corpus não se compatibiliza com a pretensão de obstar a realização de audiência para tomada de depoimento pessoal de investigado em processo cível eleitoral, se não há demonstração inequívoca de que posta em risco a liberdade individual do paciente:

HABEAS CORPUS. PEDIDO DE LIMINAR. SALVO CONDUTO. AUDIENCIA. DEPOIMENTO PESSOAL. PACIENTE/INVESTIGADO. AIJE. INADEQUACAO DA VIA ELEITA. NAO CONHECIMENTO DO WRIT.

1 – O remédio constitucional não se compatibiliza com a pretensão de obstar a realização de audiência para tomada de depoimento pessoal do investigado em sede de ação de investigação judicial eleitoral, se não há demonstração inequívoca de que posta em risco a liberdade individual do paciente.

2 – Habeas corpus não conhecido.

(TSE. Habeas Corpus nº 37779, Acórdão, Relator(a) Min. Hamilton Carvalhido, Publicação: RJTSE - Revista de jurisprudência do TSE, Volume 22, Tomo 2, Data 01/03/2011, Página 88).

Portanto, no caso dos autos, conclui-se pela ausência de ilegalidade apta a ensejar a concessão da ordem.

Diante do exposto, denego a ordem, por ausência de constrangimento ilegal.