REl - 0600597-92.2020.6.21.0108 - Voto Relator(a) - Sessão: 17/03/2021 às 10:00

 

VOTO

O recurso é tempestivo. A intimação da sentença ocorreu em 17.11.2020, e a irresignação foi apresentada em 20.11.2020, dentro, portanto, do tríduo previsto no art. 258 do Código Eleitoral.

Presentes os demais pressupostos de admissibilidade, está a comportar conhecimento.

Trata-se de apelo de NILO CARNEIRO DA FONTOURA, candidato ao cargo de vereador em Sapucaia do Sul, contra a sentença do Juízo da 108ª Zona Eleitoral, na qual houve parcial procedência de Ação de Investigação Judicial Eleitoral - AIJE, ao fundamento central de prática de abuso de poder econômico. Foi cassado o registro de candidatura, bem como declarada a inelegibilidade do recorrente. 

PRELIMINAR. Indeferimento de produção de prova. Alegado cerceamento de defesa. 

O aguerrido recurso aduz prefacial em que pleiteia a nulidade dos atos processuais praticados após o indeferimento, pelo juízo de origem, de produção de prova testemunhal.

Argumenta que "[...] não teve o seu Depoimento Pessoal tomado a termo, frente ao Meritíssimo Juízo, bem como não pode trazer o Rol de Testemunha que seriam vitais para uma Decisão", e que se trata de "[...] caso de NULIDADE ABSOLUTA quando operado o CERCEAMENTO DE DEFESA, ao se impor condenação sem que o Recorrente pudesse trazer suas Testemunhas que deixariam claro os fatos".

Entende "[...] basilar ao Processo a AMPLA DEFESA E O CONTRADITÓRIO, sendo inquisitório e NULO qualquer procedimento que assim não observe, ainda mais quando a Condenação altera, da forma como fez, a vida da Pessoa, que lhe suprime um Direito, que lhe impede de atuar com liberdade e igualdade", e aponta que, quando não há a observância do devido processo legal, "[...] QUALQUER ATO OU FATO PRATICADO APÓS É NULO, NÃO EXISTE".

Esgrima serem "[...] admissíveis a Produção de Prova testemunhal para a resolução do Processo, ainda mais no que tange a Demanda que se insurge pela reforma da r. Sentença, visto que os Fatos narrados dependem de Testemunha, para ambos os Lados". Defende ser necessário o retorno da demanda para o  "[...] estágio onde lhe foi CERCEADO O DIREITO, sendo NULO TODOS OS ATOS PRATICADOS POSTERIORMENTE". Aponta "[...] ABUSO DE AUTORIDADE a Manutenção, que apresenta penas severas aos Agentes Públicos, pela gravidade do que traz, pelo CERCEAMENTO DA DEFESA, pela falta da OITIVA DAS TESTEMUNHAS" (sic).

Colaciona uma série de ementas, as quais compreende serem paradigmáticas.

Sem razão. 

A prova requerida há de ser útil ao processo, sob pena de indeferimento.

No caso, e ao contrário do afirmado pelo recorrente, os fatos estavam desde o início elucidados, não dependiam de testemunhos. Desse modo, para a prolação da sentença se mostrava necessária apenas a adequação, a subsunção dos fatos às normas de regência, quer para julgar procedente, quer para julgar improcedente o pedido.

Note-se não haver controvérsia no relativo às seguintes circunstâncias: (1) o CTG Domadores do Rincão promoveu a venda de refeições a preço reduzido a pessoas carentes; (2) ao preço de R$ 6,00 (seis reais); (3) a partir do mês de setembro de 2020, (4) época em que, concomitantemente, o "patrão" da instituição, NILO CARNEIRO DA FONTOURA (Nilo Tur), veiculava candidatura ao cargo de vereador em Sapucaia do Sul; e (5) os eventos foram divulgados por meio de postagens de textos e vídeos em rede social.

Tais elementos são absolutamente suficientes para a análise objetiva dos fatos.

Daí é que ressai a inutilidade, ainda em tese, de oitiva de testemunhas - mesmo que elas, testemunhas, confirmassem todos os argumentos defensivos, a causa de pedir remota se funda em fatos incontroversos.

Dessarte, andou bem o juízo de origem ao indeferir a produção de prova que sequer in status assertionis poderia contribuir para a resolução da lide. Não houve cerceamento de defesa. Gizo, ademais, que o recorrente também não foi capaz de apontar objetivamente o prejuízo que lhe teria sido causado pelo indeferimento da produção de prova testemunhal. Trouxe alegações genéricas. 

Nessa linha, recente julgamento desta Corte em caso semelhante - AIJE em que a causa de pedir remota fora estabelecida com limites incontroversos:

RECURSO. ELEIÇÃO 2020. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. PARCIALMENTE PROCEDENTE. REJEITADA A PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA. MÉRITO. DOAÇÃO DE SALÁRIO COMO VEREADOR PARA O COMBATE AO CORONAVIRUS. COVID-19. DOAÇÃO LÍCITA. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ NÃO CARACTERIZADA. IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO. ABSOLVIÇÃO DO RECORRENTE DA CONDENAÇÃO IMPOSTA. PARCIAL PROVIMENTO.

1. Insurgência contra sentença que julgou parcialmente procedente Ação de Investigação Judicial Eleitoral, considerando ter sido comprovada a prática da conduta vedada descrita no art. 73, inc. IV, da Lei n. 9.504/97. Aplicação de multa.

2. Rejeitada a preliminar de cerceamento de defesa. A causa de pedir remota (doação do salário) é incontroversa, portanto, confirmada a decisão que indeferiu a produção de provas.

3. Na espécie, é irrefutável que o recorrente, na condição de vereador, usou do espaço da Tribuna Livre por 53 segundos para divulgar que, preocupado com a luta contra o Coronavírus, de livre e espontânea vontade, atendendo aos pedidos de enfermeiro do hospital do município e da Secretária da Saúde, doaria o seu salário do mês de abril, como vereador, para o combate à pandemia da Covid-19. Também é incontroverso que o fato foi comentado por terceiros na rede social Facebook.

4. Assim, depreende-se que o recorrente não utilizou esse fato na sua propaganda eleitoral como candidato à reeleição ao cargo de vereador, não ofereceu seu salário em troca de voto do eleitor, não realizou ato promocional quando da efetivação da doação e, o mais relevante, o bem doado não era pertencente à Administração Pública, pois proveniente de seu trabalho como parlamentar. Ademais, o ato ocorreu em abril de 2020, em data muito distante do período eleitoral, e o valor doado destinou-se a beneficiar um hospital e a Secretaria da Saúde do Município, tudo para o enfrentamento da Covid-19, pandemia que tem exigido de toda a humanidade esforços e ações jamais experimentadas (isolamento social, trabalho remoto, uso de máscaras, luvas, álcool gel e tantas outras). Doação considerada lícita e que deve servir de exemplo para toda a sociedade, especialmente nos dias difíceis vivenciados.

5. Da litigância de má-fé. O fato descrito na inicial não foi contraditado pela defesa. Além disso, como analisado no presente voto, para caracterizar a ilicitude da doação, faz-se necessária a análise das circunstâncias que a envolvem, conforme os diversos tipos normativos que tratam da distribuição gratuita de bens. Inviável enquadrar a recorrida como litigante de má-fé.

6. Parcial provimento do recurso, ao efeito de julgar improcedente a ação, absolvendo o recorrente da condenação imposta na sentença.

(REl n, 0600966-32, Rel. Des. Eleitoral Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz. Julgado em 18.12.2020, unânime.)

O julgado, aliás, encontra-se alinhado à jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral acerca do tema - vide, por exemplo, AgI. n. 23382, Relator o Min. Luis Roberto Barroso, DJE de 06.12.2019, colacionado pela Procuradoria Regional Eleitoral. 

E, ainda nesse tópico - o dos precedentes, importa registrar que, não obstante a quantidade de julgados citados pelo recorrente, não há dentre eles sequer um a guardar identidade fática com o caso sob exame.

Afasto a preliminar. 

MÉRITO.

1. Abuso de poder econômico. Legislação, doutrina, precedentes e a prova dos autos.

A presente AIJE tem suporte no art. 14, § 9º, da CF; no art. 19, caput, e art. 22, incs. XIV e XVI, da LC n. 64/90:

Constituição Federal:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

(…)

§ 9º  Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. (Redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 4, de 1994)

Lei Complementar n. 64/90:

Art. 19. As transgressões pertinentes à origem de valores pecuniários, abuso do poder econômico ou político, em detrimento da liberdade de voto, serão apuradas mediante investigações jurisdicionais realizadas pelo Corregedor-Geral e Corregedores Regionais Eleitorais.

Parágrafo único. A apuração e a punição das transgressões mencionadas no caput deste artigo terão o objetivo de proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou do abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta, indireta e fundacional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios

[...]

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito:

(…)

XIV – julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso, e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar;      

(Redação dada pela Lei Complementar nº 135, de 2010)

(…)

XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam.     

(Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010)

Ou seja, trata-se de situação que pode acarretar a cassação de registro e/ou diploma, bem como a declaração de inelegibilidade do representado.

Sobre o conceito de abuso de poder, colhe-se lição consagrada de José Jairo Gomes (Direito Eleitoral, 7ª edição, São Paulo, Atlas, 2011. p. 216):

Haverá abuso sempre que, em um contexto amplo, o poder – não importa sua origem ou natureza – for manejado com vistas à concretização de ações irrazoáveis, anormais, inusitadas ou mesmo injustificáveis diante das circunstâncias que se apresentarem e, sobretudo, ante os princípios e valores agasalhados no ordenamento jurídico. Por conta do abuso, ultrapassa-se o padrão normal de comportamento, realizando-se condutas que não guardam relação lógica com o que normalmente ocorreria ou se esperaria que ocorresse.

E, para o Tribunal Superior Eleitoral, "o abuso de poder econômico ocorre quando determinada candidatura é impulsionada pelos meios econômicos de forma a comprometer a igualdade da disputa eleitoral e a própria legitimidade do pleito” (REspeEl n. 470968, Ac. 10/05/2012. Relatora Min. Nancy Andrighi).

No que diz respeito ao caso concreto: CARLOS EDUARDO DOUGLAS SANTANA ajuizou representação contra NILO CARNEIRO DA FONTOURA (Nilo Tur), candidato a vereador no Município de Sapucaia do Sul, ao argumento central de que NILO realizou ação assistencial privada, consistente na distribuição de “refeições de qualidade a baixo custo”, patrocinada pelo CTG DOMADORES DO RINCÃO, entidade privada, em favor de sua candidatura, interferindo indevidamente na normalidade e legitimidade do pleito. NILO, convém frisar, era o "patrão"  do referido centro de tradições gaúchas.

A iniciativa inédita, denominada "Prato Popular do Doma", teve começo no mês de setembro de 2020 - às vésperas das eleições - e foi expressamente vinculada à candidatura de NILO: nessa linha, o ID n. 12889383, em que o perfil  "NILO TUR 40600" posta o seguinte texto: 

"REFEIÇÃO DE QUALIDADE A PREÇO ACESSÍVEL

Foi neste momento difícil que nossa sociedade passou e está passando, que resolvemos criar o #PratoPopular. Nossa primeira unidade foi inaugurada em setembro deste ano, no CTG Domadores do Rincão, com refeição completa, bebida e frutas pelo preço de R$ 6,00.

Não fiz nada disso como promessa de campanha, muito pelo contrário, assim que nossa Patronagem aprovou a iniciativa, já nos preparamos para colocá-la em prática. e pretendo, sim, independente de qualquer acontecimento, instalar mais unidades em outros bairros de Sapucaia, para que cada vez mais pessoas tenham acesso a uma refeição de qualidade e baixo custo quando precisam.

#NiloTur40600 #RenovaçãoeTradição #GordoeImilia11"

 

Estampada irregularidade. Não bastasse o texto, que vincula a iniciativa ao candidato, há na divulgação a fotografia de Nilo em trajes nativistas (lenço no pescoço) - mesmo traje, aliás, em que aparece na foto da urna eletrônica.

Ou seja, muito embora o candidato tenha indicado que não faria "promessa de campanha", estabeleceu um forte liame, um estreito laço entre a caridade praticada e a sua candidatura ao cargo de vereador, tanto que, ao final, indica o número pelo qual concorre: 40.600. 

Ora, é exatamente disso que se trata o abuso de poder econômico na seara eleitoral: utilização desmedida de recursos financeiros em benefício de determinada candidatura. No caso, o abuso se identifica no subsídio participado pelo CTG Domadores do Rincão em cada prato de comida vendido a R$ 6,00 (seis reais), uma vez que, sabidamente, os custos gerais das refeições são superiores a tal valor, sobretudo quando acompanhados de bebida e sobremesa.

E o vídeo constante no ID 12889433 reforça tal convicção.

Trata-se da propaganda eleitoral do recorrente. Com duração de pouco mais de um minuto, todo o tempo é utilizado para vincular o candidato ao "Prato Popular": em um primeiro momento, um eleitor pergunta ao então candidato NILO se haveria planos de expansão do programa, de comida "muito barata", ao que o candidato responde trazendo um resumo da iniciativa, enaltecendo as qualidades do projeto e as intenções de expansão, para ao final afirmar "eu sou Nilo Tur, 40.600".

Nas razões de recurso, a defesa apega-se ao conteúdo moral da ação: chega a questionar "como se poderia interromper" um agir  benéfico a pessoas carentes - olvida, todavia, que o "Prato Popular" foi iniciado a apenas 60 dias das eleições - circunstância que acrescenta gravidade, ou seja, o projeto foi lançado em pleno período eleitoral.

Ademais, nítido o intuito de que a ação fosse entendida pelo eleitorado como plataforma de campanha. Não importa, aqui, que o recorrente não tenha logrado eleição (posicionou-se como suplente), pois conforme a  própria dicção legal, para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam.

O assistencialismo realizado durante o período de campanha desvirtua a eleição, refoge aos fins democráticos, sobremodo quando utilizada entidade privada, para fins eleitorais, perante pessoas/eleitores que se encontram em nítido estado de hipossuficiência - "pobres, abandonados, esquecidos", nos termos utilizados no próprio recurso.

Não há que se olvidar, ainda, do efeito multiplicador da divulgação do "Prato Social" no Facebook, pois havia notícias da realização tanto nas páginas do recorrente quanto na página do CTG Domadores do Rincão, o que reforçou o indevido elo criado.  

De todo o exposto, forçoso concluir que as provas revelam claro abuso de poder econômico. A sentença é irretocável, e merece a transcrição do seguinte trecho:

Isso porque, em que pese a distribuição das refeições através do “Prato Popular” não seja inteiramente gratuita (conduta vedada), não se trata de promessa de campanha para criação ou manutenção de politicas publicas, ou ate mesmo de mera extensão de programa assistencial, mas sim de manutenção e ampliação de projeto assistencial privado recentemente criado (setembro de 2020) e em plena atividade, o qual necessita, para sua perfectibilização, de subsídios de ordem material e financeiro, ou seja, para oferecer para a população carente refeições completas (incluindo bebida, frutas e sobremesa) a preços módicos (R$ 6,00), esta o candidato valendo-se do poder econômico, ainda que de forma indireta, pois necessita haver complementação do custo dessas refeições, o que, indiretamente, esta a beneficiar economicamente seus destinatários (eleitores), causando desequilíbrio e comprometendo a lisura do pleito eleitoral.

A conduta, além disso, verifica-se grave, na medida em que, conforme o próprio candidato informou em postagem em rede social, o “Prato Popular” foi criado em setembro de 2020, ou seja, nas vésperas do inicio da campanha eleitoral, tendo nítido caráter de servir como slogan de campanha e angariar votos.

 

Enfim, as circunstâncias são graves e caracterizam abuso de poder econômico.

2. Consequências da prática do abuso. Cassação, inelegibilidade e destino dos votos.

Dadas as circunstâncias, a sentença determinou a cassação do registro de candidatura de NILO CARNEIRO DA FONTOURA e o declarou inelegível, nos termos do já transcrito art. 22, inc. XIV, da Lei Complementar n. 64/90.

E o recorrente, em pedido alternativo, requer que os 408 votos a ele endereçados pelo eleitorado sejam destinados à agremiação pela qual concorreu, o Partido Socialista Brasileiro de Sapucaia do Sul.  Aduz, para tanto, que o resultado pretendido pelo eleitor é "pleno e soberano, não podendo ser mudado por decisão judicial".

Indica o art. 175, § 4, do Código Eleitoral, como aplicável ao caso.

O dispositivo que o recorrente pretende incidência tem leitura facilitada em conjunto com o art. 175, § 3. Vejamos:

Art. 175 [...]

§ 3º Serão nulos, para todos os efeitos, os votos dados a candidatos inelegíveis ou não registrados. :            (Renumerado do § 4º pela Lei nº 4.961, de 4 5.66)

 § 4º O disposto no parágrafo anterior não se aplica quando a decisão de inelegibilidade ou de cancelamento de registro for proferida após a realização da eleição a que concorreu o candidato alcançado pela sentença, caso em que os votos serão contados para o partido pelo qual tiver sido feito o seu registro.            (Incluído pela Lei nº 7.179, de 19.12.1983)

Inviável. Não há como olvidar das redações dos arts. 222 e 237, também do Código Eleitoral:

Art. 222. É também anulável a votação, quando viciada de falsidade, fraude, coação, uso de meios de que trata o art. 237, ou emprego de processo de propaganda ou captação de sufrágios vedado por lei.

[...]

Art. 237. A interferência do poder econômico e o desvio ou abuso do poder de autoridade, em desfavor da liberdade do voto, serão coibidos e punidos.

Especificamente acerca do alcance do art. 222 do Código Eleitoral, o Tribunal Superior manifesta-se, há muito, no sentido de que "os arts. 222 e 224 devem ser interpretados de modo que as normas neles contidas se revistam de maior eficácia [...] para contemplar, também, a hipótese dos votos atribuídos aos cassados em AIME para declará-los nulos, ante a descoberta superveniente de que a vontade manifestada nas urnas não foi livre [...]” (MS n. 3689, acórdão de 18.12.2007), o que demonstra o equívoco em que se apoia o recorrente, pois uma vez identificado ilícito, o Poder Judiciário não apenas pode, como deve, anular votação.

Mas não é só. 

A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral tem se firmado no sentido de que, em casos como o presente, há de se fazer preponderar  o art. 222 do Código Eleitoral. Como bem apontado pela d. Procuradoria Regional Eleitoral, em decisão recente, aquela Corte Superior adotou a exegese de que o art. 222 do Código Eleitoral possui posição preferencial em face do art. 175 do mesmo diploma, uma vez considerado o princípio da especialidade: 

[...]

DO DESTINO DOS VOTOS DIRECIONADOS A CANDIDATOS CASSADOS EM ELEICOES PROPORCIONAIS EM MOMENTO POSTERIOR À VOTAÇÃO

1. A despeito da identificação de uma tendência pela aplicação do disposto no art. 175, § 4o, do Código Eleitoral, existem nesta Corte precedentes solucionados sob o palio do art. 222 do mesmo diploma.

2. Em adição, a aprovação do art. 198, inciso II, b e §5o da Resolução n. 23.611/2019 pode ser interpretada como sinal indicativo de uma possível mudança de percepção quanto ao destino dos votos amealhados por vereadores ou deputados cassados por parte da composição atual deste Tribunal.

3. Dentro desse panorama, interessa que o tema dos efeitos da anulação de votos em pleitos proporcionais seja problematizado, com o fim de traçar uma linha de entendimento clara e segura, na esteira do que preconiza o art. 926 do Código de Processo Civil.

4. A matéria diz com o tratamento jurídico dos votos obtidos por candidatos cassados postumamente em pleitos proporcionais, os quais podem, a depender da perspectiva adotada, ser completamente anulados (culminando com o refazimento dos cálculos dos quocientes eleitoral e partidário) ou, alternativamente, ser aproveitados pelo partido ou coligação pelo qual concorreram, hipótese em que os cargos vacantes seriam ocupados pelos primeiros suplentes das respectivas listas.

5. As regras plasmadas nos arts. 222 e 237 do Código Eleitoral são especiais em relação ao cânone do art. 175, § 4o, tendo em vista que disciplinam, especificamente, situações de extinção anômala ocasionadas pela incidência de faltas eleitorais de primeira grandeza. Os dois primeiros artigos, nessa toada, cobram aplicação peculiar e, portanto, prevalente no âmbito do direito eleitoral sancionador, ao tempo em que a norma residual (art. 175) prepondera em seu campo especifico, relacionado com a análise da habilitação jurídica dos indivíduos que almejam cargos de representação eletiva.

6. Também assim, o apartamento dos espectros de incidência é denunciado a partir de um exame topológico, o qual revela que, na quadra do Código, o art. 175 situa-se em apartado geral, direcionado à “Apuração das urnas” (Capitulo II), enquanto os arts. 222 e 237 encontram morada em um segmento particularmente voltado à regulação dos efeitos das “Nulidades da Votação” (Capitulo IV).

7. Em conjugação com os critérios mencionados, vem a lanço a relevância da interpretação sistemática no processo de decodificação do sentido das normas eleitorais. Por esse critério, cabe ao intérprete recordar que o ordenamento eleitoral é mais do que um mero agregado de normas, consubstanciando, pelo contrário, uma estrutura coerente, dentro da qual as regras componentes devem, sempre que possível, ser compreendidas como elementos que convivem em harmônica conexão.

8. Assim sendo, na solução de celeumas envolventes de regras eleitorais, cumpre privilegiar leituras que permitam interpretar duas ou mais normas supostamente em conflito de maneira tal que a incompatibilidade desapareça.

9. Ao lado desses argumentos, cabe observar que o § 4o do art. 175 do Código Eleitoral autoriza o aproveitamento do apoio eleitoral pelo partido do candidato excluído com esteio na ideia de que o simples descumprimento de requisito essencial para o exercício do direito à candidatura não enseja dúvidas nem suspeitas sobre a retidão da vontade externada pelo eleitorado.

10. Em contrapartida, a intervenção de práticas comprometedoras da liberdade de sufrágio ou da igualdade na disputa introduz, nessa equação, um sério elemento de incerteza que, na prática, impede que as autoridades judiciais possam presumir a existência de uma reta congruência entre a expressão matemática das urnas e a autêntica vontade do corpo político.

11. A fraude, a coação, o abuso de poder e os demais comportamentos proscritos pelos arts. 222 e 237 do Código Eleitoral constituem, em essência, circunstâncias que comprometem, em um nível micro, o elemento volitivo da escolha política e, em um nível macro, a validade jurídica do conjunto de manifestações apuradas em um certo sentido. Como decorrência, soa incongruente conceber a existência de votos que, inequivocamente viciados por uma determinada mirada, ressaiam imaculados e juridicamente válidos quando vistos por outro ângulo.

12. Embora a saída autorizada pelo art. 175, § 4o favoreça a lógica do aproveitamento do voto, na medida em que a manifestação cívica resulta prestigiada, minimamente, pela validação da componente partidária da escolha, interferências ilícitas nos trilhos do certame afetam a sua normalidade e, consequentemente, impossibilitam a descoberta da autêntica opinião dos votantes.

13. As decisões judiciais que reconhecem práticas comprometedoras da legitimidade eleitoral têm como efeito a quebra do paradigma da intangibilidade da vontade popular. A Constituição Federal assegura a prevalência da decisão majoritária apenas na quadra de mandatos obtidos sem abuso. Depreende-se da Carta constitucional que a legitimidade é um valor que se sobrepõe ao princípio da maioria.

Precedentes.

14. Nesse panorama, em casos como o que se apresenta, a anulação do apoio obtido se revela aconselhável, como reflexo do princípio da proibição do falseamento da vontade popular.

15. Em vista do que antecede, em eleições regidas pelo sistema proporcional, a cassação de mandato ou diploma em ação autônoma decorrente de ilícitos deve ensejar a anulação da votação recebida, tanto para o candidato como para o respectivo partido, ficando afastada a aplicação da solução de utilidade parcial plasmada no art. 175, §§ 3o e 4o, do Código Eleitoral.

16. Sem embargo, em respeito ao princípio da segurança jurídica o entendimento em questão é de ser aplicado tão-apenas a partir das eleições de 2020, uma vez que o diploma regente do pleito em tela restringe a possibilidade de anulação total dos votos à hipótese de  cassação em ação autônoma cuja decisão tenha sido publicada antes das eleições (art. 219, IV da Res.-TSE no 23.554/2017).

(RECURSO ORDINÁRIO ELEITORAL no 060142380, Acórdão, Relator(a) Min. Edson Fachin, Publicação: DJE - Diário da justiça eletrônica, Tomo 253, Data: 04.12.2020.)

(Grifei.)

O julgado é paradigmático e expressamente determina a aplicação do entendimento para as eleições de 2020. Em alentada fundamentação, até mesmo para tornar íntegra e coerente a jurisprudência daquela Corte Superior, o TSE traz a lição de que não poderiam advir, de uma prática ilícita, resultados legítimos.  

Tendo sido constatada a prática de abuso de poder econômico, não há fundamento jurídico plausível para que sejam considerados, na competição eleitoral, os votos destinados ao candidato condenado, sob pena de reprovável benefício indevido. Reconhecidos os ilícitos perpetrados, devem ser considerados nulos os votos, até mesmo porque a redação do art. 175, § 4º – inelegibilidade ou cancelamento de registro –, conduz à conclusão de que o comando normativo está a tratar de registro de candidatura, hipótese diversa da versada nestes autos, cometimento de ato ilícito, de modo que se mostra imprópria a invocação de uma consequência jurídica decorrente de fase do processo eleitoral exaurida (registro).

Some-se ao exposto que, da redação do art. 198, inc. II, al. “b” da a Resolução TSE 23.611/19, só é possível concluir que serão  computados como anulados os votos dados a candidato cujo registro seja cassado após a eleição, em ação autônoma, por decisão contra a qual tenha sido interposto recurso com efeito suspensivo.

Exatamente o caso dos autos.

 

Diante do exposto, VOTO para afastar a preliminar de cerceamento de defesa e, no mérito, negar provimento ao recurso de NILO CARNEIRO DA FONTOURA, nos seguintes termos:

(1) manter a cassação do registro de candidatura;

(2) manter a declaração de inelegibilidade pelo prazo de 8 (oito) anos;

(3) declarar a nulidade dos votos a ele atribuídos nas eleições de 2020;

(4) determinar ao Juízo da 108ª Zona Eleitoral que proceda ao recálculo do quociente eleitoral.