PC - 0600251-14.2019.6.21.0000 - Voto Relator(a) - Sessão: 25/01/2021 às 14:00

VOTO

O órgão técnico concluiu que as contas do exercício financeiro de 2018 do DIRETÓRIO ESTADUAL DO DEMOCRATAS (DEM) devem ser desaprovadas por apresentarem duas irregularidades; a primeira, relativa à falta de comprovação de despesa realizada com recursos do Fundo Partidário, no valor de R$ 6.610,00, e a segunda, referente à ausência de destinação de no mínimo 5% do montante recebido do Fundo Partidário, à razão de R$ 28.250,00, na criação e manutenção de programas de incentivo à participação política das mulheres.

A Procuradoria Regional Eleitoral, por sua vez, entende que as contas devem ser desaprovadas, mas acrescenta que, ao contrário da conclusão técnica, além dessas falhas, entende também não sanada a irregularidade quanto à falta de comprovação da despesa de R$ 1.000,00, custeada com recursos do Fundo Partidário, para pagamento de “pequenas despesas diárias” ao prestador de serviços Luiz Polisti Ávila.

A defesa, a seu turno, afirma que a movimentação financeira está devidamente comprovada pela documentação juntada aos autos, e sustenta que, por aplicação do art. 55-A da Lei n. 9.096/95, não há incidência das sanções previstas no art. 44, inc. V, da Lei n. 9.096/95, ainda que a agremiação não tenha destinado o percentual de 5% de recursos do Fundo Partidário na promoção da participação política da mulher durante o exercício financeiro objeto do exame.

Passo ao exame de cada uma das irregularidades apontadas e das alegações apresentadas pelos prestadores.

a) Falta de comprovação de despesa realizada com recursos do Fundo Partidário no valor de R$ 6.610,00

A última manifestação técnica concluiu pela permanência da irregularidade relativa à despesa de R$ 6.610,00, custeada com recursos do Fundo Partidário, devido à falta de especificação dos serviços editoriais prestados pelo contratado Mateus Colombo Mendes, na forma consignada no parecer conclusivo do ID 5170333:

1.6) Com relação aos comprovantes de despesas, referentes a serviços editoriais, contraídos junto ao prestador de serviço, Mateus Colombo Mendes, no valor total de R$ 6.610,00, em que pese a agremiação ter juntado ao processo, em resposta ao Exame da Prestação de Contas (ID 4812083), através dos IDs 5086033/5086733, “Declaração” do referido prestador, o qual declara, de forma genérica, que pela prestação de “Serviços Editoriais”, recebeu do partido o valor acima citado, e, ainda, “Contrato de Prestação de Serviço”, cabe informar que ambos documentos não possuem nenhuma especificidade nem discriminação detalhada dos serviços executados pelo contratado. Cabe ressaltar que o prestador já havia apresentado na p. 7 do ID 2390233, na p. 5 do ID 2390433 e na p. 12 do ID 2391183 as Notas Fiscais emitidas por Mateus, todas com a simples descrição de “prestação de serviços editoriais”. Por conseguinte permanece a irregularidade em razão da não especificação dos serviços prestados, bem como ausência de prova material, não possibilitando a efetiva comprovação dos serviços prestados, em desacordo com o art. 18; art. 29, VI, combinados como art. 35, § 2º, todos da Resolução TSE n. 23.464/2015.

 

A conclusão técnica não merece reparos, pois efetivamente a documentação apresentada nos autos pelo partido não esclarece que espécie de serviços editoriais foram realizados, desatendendo o requisito legal disposto no caput do art. 18 da Resolução TSE n. 23.546/17, atinente ao dever de descrever detalhadamente o serviço prestado:

Art. 18. A comprovação dos gastos deve ser realizada por meio de documento fiscal idôneo, sem emendas ou rasuras, devendo dele constar a data de emissão, a descrição detalhada, o valor da operação e a identificação do emitente e do destinatário ou dos contraentes pelo nome ou razão social, CPF ou CNPJ e endereço.

§ 1º Além do documento fiscal idôneo a que se refere o caput, a Justiça Eleitoral pode admitir, para fins de comprovação de gasto, qualquer meio idôneo de prova, inclusive outros documentos, tais como:

I – contrato;

II – comprovante de entrega de material ou de prestação efetiva do serviço;

III – comprovante bancário de pagamento; ou

IV – Guia de Recolhimento do FGTS e de Informações da Previdência Social (GFIP).

§ 2º Quando dispensada a emissão de documento fiscal, na forma da legislação aplicável, a comprovação da despesa pode ser realizada por meio de documentação que contenha a data de emissão, a descrição e o valor da operação ou prestação, a identificação do destinatário e do emitente pelo nome ou razão social, CPF ou CNPJ e endereço.

§ 3º Os documentos relativos aos gastos com a criação ou manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres devem evidenciar a efetiva execução e manutenção dos referidos programas, nos termos do inciso V do art. 44 da Lei nº 9.096/1995, não sendo admissível mero provisionamento contábil.

§ 4º Os gastos partidários devem ser pagos mediante a emissão de cheque nominativo cruzado ou por transação bancária que identifique o CPF ou CNPJ do beneficiário, ressalvado o disposto no art. 19.

§ 5º O pagamento de gasto, na forma prevista no caput, pode envolver mais de uma operação, desde que o beneficiário do pagamento seja a mesma pessoa física ou jurídica.

§ 6º Nos serviços contratados com a finalidade de locação de mão de obra, é exigida a apresentação da relação do pessoal alocado para a prestação dos serviços, com a indicação do respectivo nome e CPF.

§ 7º Os comprovantes de gastos devem conter descrição detalhada, observando-se que:

I – nos gastos com publicidade, consultoria e pesquisa de opinião, os respectivos documentos fiscais devem identificar, no seu corpo ou em relação anexa, o nome de terceiros contratados ou subcontratados e devem ser acompanhados de prova material da contratação;

II – os gastos com passagens aéreas serão comprovados mediante apresentação de fatura ou duplicata emitida por agência de viagem, quando for o caso, desde que informados os beneficiários, as datas e os itinerários, vedada a exigência de apresentação de qualquer outro documento para esse fim (Lei nº 9.096/1995, art. 37, § 10); e

III – a comprovação de gastos relativos a hospedagem deve ser realizada mediante a apresentação de nota fiscal emitida pelo estabelecimento hoteleiro com identificação do hóspede.

 

Em rápida pesquisa realizada na internet, é possível verificar que o trabalho de serviços editoriais é termo genérico que compreende uma variedade de tarefas que lhe são afetas, tais como: diagramação, criação de projetos gráficos, ilustração, revisão ortográfica e gramatical, digitação, impressão, design, assessoria editorial, copidesque, digitalização, etc.

A falha permanece nas contas porque o trabalho efetivamente realizado pelo prestador de serviço não foi esclarecido, muito embora o partido e seus responsáveis tenham sido, por diversas vezes, intimados a detalhar a contratação. Nesse ponto, é descabido o pedido de intimação do profissional contratado para que a Justiça Eleitoral finalmente seja informada sobre a natureza do trabalho realizado, na forma requerida em sede de alegações finais, pois bastava aos prestadores elucidarem a questão de forma documental nos presentes autos.

Conforme refere o órgão técnico no parecer conclusivo: “permanece a irregularidade em razão da não especificação dos serviços prestados, bem como ausência de prova material, não possibilitando a efetiva comprovação dos serviços prestados, em desacordo com o art. 18; art. 29, inc. VI, combinados como art. 35, § 2º, todos da Resolução TSE n. 23.464/2015”.

Desse modo, correto o apontamento de falta de comprovação da despesa realizada com recursos do Fundo Partidário no valor de R$ 6.610,00, devendo o montante ser recolhido ao Tesouro Nacional, na forma do art. 59, § 2º, da Resolução TSE n. 23.546/17.

 

b) Falta de comprovação de despesa efetuada com recursos do Fundo Partidário no valor de R$ 1.000,00

Assiste razão à Procuradoria Regional ao consignar que, ao contrário da conclusão técnica, a despesa no valor de R$ 1.000,00, contratada com o prestador Luiz Polisti Ávila e custeada com o Fundo Partidário, não foi comprovada por meio de documento fiscal idôneo. Reproduzo o conteúdo do parecer ministerial:

Todavia, no que se refere ao item 2.2 do Parecer Conclusivo, atinente ao pagamento de R$ 1.000,00 a Luiz Polisti Ávila, entende-se que não houve o saneamento da irregularidade apontada pela Unidade Técnica. Com efeito, tanto no exame das contas quanto no parecer conclusivo, consta a irregularidade de ausência de documentos fiscais comprobatórios da efetiva prestação dos serviços ou prova material da contratação.

A defesa e os documentos apresentados pelo prestador, em que pese tenham servido, num primeiro momento, para identificar o beneficiário do pagamento, o qual constava no exame das contas como “não informado”, são completamente desconexos com a irregularidade detectada, visto que consistem em um cheque nominal a Luiz Poliesti de Ávila (ID 5086583)e em extrato do Livro Diário do partido informando “emissão cheque nº 850366 para fundo de caixa Democratas (...)”.

Ora, mesmo que fosse superada a irregularidade quanto à forma de saque exigida para o fundo de caixa, a qual, segundo o § 2º do art. 19 da Resolução TSE nº 23.546/2017, deve ocorrer por “cheque nominativo em favor do próprio órgão partidário”, ainda assim subsistiria, conforme disposto no § 4º do mesmo artigo, a necessidade de comprovação dos gastos na forma do art. 18. Para melhor esclarecer a questão, segue a integralidade do art. 19 da Resolução TSE nº 23.546/2017:

(...)

 

De fato, os documentos apresentados pelo partido demonstram a regularidade na forma do pagamento, efetuado por intermédio da constituição de fundo de caixa e pago mediante cheque nominal ao prestador.

Contudo, a natureza do trabalho realizado pelo prestador de serviço não foi demonstrada, tendo sido referido que o gasto se refere a pagamento de "pequenas despesas diárias".

Além disso, as contas não apresentam documentos fiscais comprobatórios da efetiva prestação dos serviços ou prova material da contratação de Luiz Polisti Ávila, o que conduz ao dever de recolhimento da quantia de R$ 1.000,00 ao Tesouro Nacional, nos termos do art. 59, § 2°, da Resolução TSE n. 23.546/17.

 

c) Ausência de comprovação da destinação do Fundo Partidário para a criação e manutenção de programas de incentivo à participação política das mulheres na esfera estadual

A última irregularidade refere-se à ausência de comprovação de gasto mínimo de 5% dos recursos recebidos do Fundo Partidário “na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres”, correspondentes a R$ 28.250,00, como prevê o art. 44 da Lei n. 9.096/95, em seu inc. V, c/c o § 5º, na redação vigente ao tempo do exercício financeiro dada pela Lei n. 13.165/15:

Art. 44. Os recursos oriundos do Fundo Partidário serão aplicados:

(…)

V - na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, criados e mantidos pela secretaria da mulher do respectivo partido político ou, inexistindo a secretaria, pelo instituto ou fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política de que trata o inciso IV, conforme percentual que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 5% (cinco por cento) do total; (Redação dada pela Lei nº 13.165, de 2015)

(…)

§ 5º O partido político que não cumprir o disposto no inciso V do caput deverá transferir o saldo para conta específica, sendo vedada sua aplicação para finalidade diversa, de modo que o saldo remanescente deverá ser aplicado dentro do exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5% (doze inteiros e cinco décimos por cento) do valor previsto no inciso V do caput, a ser aplicado na mesma finalidade.

(Redação dada pela Lei n. 13.165, de 2015.)

 

Sobre essa falha, a unidade técnica referiu no parecer conclusivo o seguinte:

Do exame dos documentos vinculados no Sistema de Prestação de Contas Partidárias (SPCA-Cadastro), bem como dos extratos eletrônicos disponibilizados pelo TSE,verificou-se que a agremiação não comprovou a destinação de no mínimo 5%, do montante recebido do Fundo Partidário, na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, conforme determina o art. 44, V da Lei n. 9.096/1995. O prestador recebeu R$ 565.000,00, provenientes do Fundo Partidário - FP, devendo comprovar a aplicação mínima de R$ 28.250,00 (5% do FP) na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres. Do exame da prestação de contas, não foi possível identificar repasses do Fundo Partidário para essa finalidade, conforme declarado abaixo pela agremiação.

 

Em sua manifestação (ID 5086033), “O prestador reitera e requer que o respectivo apontamento seja excluído, tendo em vista a legislação vigente a qual preceitua sobre o tema”:

Art. 55-A. Os partidos que não tenham observado a aplicação de recursos prevista no inciso V do caput do art. 44 desta lei nos exercícios anteriores a 2019, e que tenham utilizado esses recursos no financiamento das candidaturas femininas até as eleições de 2018, não poderão ter suas contas rejeitadas ou sofrer qualquer outra penalidade.(Incluído pela Lei n. 13.831, de 2019.)

(Grifo nosso)

 

Destaca-se que a análise técnica das contas está adstrita às informações declaradas pelo prestador de contas e à movimentação financeira apurada nos extratos bancários vinculados à agremiação partidária, não se esgotando a possibilidade de surgirem informações, a qualquer momento, por conta da fiscalização ou investigação de outras esferas do poder público.

Observa-se que o prestador de contas já teve conhecimento e oportunidade para regularizar ou esclarecer as irregularidades constantes desta análise mediante relatório de exame de contas publicado na data de 20/11/2019.

 

Como se vê, a defesa sustenta que, de acordo com o art. 55-A da Lei n. 9.096/95, não há incidência das sanções previstas no art. 44, inc. V, da Lei n. 9.096/95 no caso concreto.

Ocorre, como bem salienta a Procuradoria Regional Eleitoral, que o art. 55-A da Lei n. 9.096/95 foi considerado inconstitucional pelo TRE-RS nos autos do RE n. 17-64.2018.6.21.0114, da minha relatoria, julgado na sessão de 20.4.2020, cuja ementa cumpre transcrever:

RECURSO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. PARTIDO POLÍTICO. DIRETÓRIO MUNICIPAL. EXERCÍCIO FINANCEIRO 2017. DESAPROVAÇÃO. PRELIMINAR DE ARGUIÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE DOS ARTS. 55-A, 55-C E 55-D DA LEI DOS PARTIDOS POLÍTICOS ACOLHIDA. AFASTADA A APLICAÇÃO DOS REFERIDOS DISPOSITIVOS NO CASO CONCRETO. MÉRITO. FONTES VEDADAS. DESCUMPRIMENTO DA NORMA QUE PREVÊ A DESTINAÇÃO DE RECURSOS DO FUNDO PARTIDÁRIO PARA A CRIAÇÃO E DIFUSÃO DE PROGRAMAS VISANDO A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DAS MULHERES. REDUÇÃO DO VALOR A SER RECOLHIDO AO TESOURO NACIONAL. AFASTADA A MULTA. PARCIAL PROVIMENTO.

1. Prefacial de arguição de inconstitucionalidade dos arts. 55-A, 55-C e 55-D, incluídos na Lei n. 9.096/95 pela Lei n. 13.831/19. 1.1. O art. 55-D, o qual refere-se à anistia das devoluções, cobranças ou transferências ao erário feitas em anos anteriores por servidores públicos ocupantes de cargos com poder de autoridades, desde que filiados a partidos políticos, já foi declarado inconstitucional por esta Corte. Verificada a ocorrência de vício de inconstitucionalidade formal e material, porquanto não apresentada estimativa de impacto orçamentário, além da violação dos princípios da prestação de contas, da moralidade administrativa e da integridade legislativa. 1.2. Os arts. 55-A e 55-C determinam que as agremiações que descumpriram, nos exercícios anteriores a 2019, a obrigação de aplicar o percentual mínimo de 5% dos recursos do Fundo Partidário na criação e manutenção de programas promovendo e difundindo a participação política das mulheres, mas que tenham utilizado tal verba no financiamento de candidaturas femininas até as eleições de 2018, não poderão ter suas contas rejeitadas ou sofrer qualquer outra penalidade. Os referidos dispositivos estabelecem, ainda, que a não observância da regra até o exercício de 2018 não enseja a desaprovação das contas. 1.2.1. Disposições que limitam a atuação do Poder Judiciário Eleitoral no julgamento das contas partidárias, em contrariedade ao inc. III do art. 17 da Constituição Federal, que prevê o dever de os partidos políticos prestarem contas à Justiça Eleitoral. Ao dispensar as agremiações de pagamento da multa e vedar ao órgão julgador a possibilidade de desaprovação das contas, o legislador interferiu na atuação do Poder Judiciário Eleitoral, a quem compete decidir pela regularidade, ou não, da movimentação financeira apresentada pelos partidos políticos, impedindo a apreciação integral das contas. 1.2.2. A autonomia partidária deve estar alinhada aos princípios e às regras tendentes a aperfeiçoar o regime democrático, que tem por base o pluralismo político e a diversidade de representação, especialmente no que concerne à proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana, mormente quando focados na promoção da igualdade de gênero, uma vez que mais da metade da população brasileira é constituída por mulheres. Para a agremiação partidária que descumpre o dispositivo, o § 5º do art. 44 da Lei n. 9.096/95 prevê que o saldo da verba oriunda do Fundo Partidário deverá ser transferido para conta bancária específica e utilizado para a finalidade legalmente estabelecida, dentro do exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5%, sujeitando-se o partido à desaprovação das contas, devolução da quantia ao Tesouro Nacional e ao pagamento da multa de até 20% sobre o valor, na forma do art. 37 da Lei n. 9.096/95. 1.2.3. Os arts. 55-A e 55-C da Lei n. 9.096/95 representam afronta ao princípio da igualdade insculpido na Constituição Federal, assim como ao princípio da vedação do retrocesso social, por caracterizarem manifesta restrição a direito fundamental, em virtude do tratamento desigual ao beneficiar os partidos políticos que descumpriram o comando legal de destinação de recursos do Fundo Partidário ao fomento à participação política das mulheres. 1.3. Acolhimento do incidente de inconstitucionalidade, afastando, no caso concreto, a aplicação dos arts. 55-A e 55-C da Lei n. 9.096/95, por violação à Constituição Federal, afronta aos princípios da igualdade, da inafastabilidade do Judiciário e da vedação do retrocesso, e desrespeito ao inc. III do art. 17 da Constituição Federal, bem como a aplicação do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, devido à ausência de previsão de estimativa de impacto orçamentário e financeiro da renúncia de receita, desatenção ao art. 113 do ADCT, inobservância do devido processo legislativo e violação ao art. 14 da Lei Complementar n. 101/00 e aos arts. 69 e 163 da Constituição Federal, além de descumprimento do princípio da anualidade ou anterioridade eleitoral insculpido no art. 16 da Constituição Federal.

(...)

4. Acolhido o incidente de inconstitucionalidade suscitado pela Procuradoria Regional Eleitoral. Parcial provimento ao recurso.

(TRE-RS, RE n. 17-64.2018.6.21.0114, deste relator, julgado na sessão de 20.4.2020.)

 

Reproduzo, por oportuno, as razões por mim lançadas no acórdão do RE n. 17-64, pois o dispositivo legal também merece ser declarado inconstitucional no caso dos autos com base nos mesmos fundamentos:

Além disso, cumpre analisar a arguição de inconstitucionalidade dos arts. 55-A e 55-C da Lei n. 9.096/95.

Segundo a Procuradoria Regional Eleitoral, tais disposições foram incluídas na legislação de forma a mitigar as sanções previstas no § 5° do art. 44 da Lei n. 9.096/95 e são inconstitucionais à luz do art. 5º, inc. I, da Constituição Federal, “na medida em que, a um só tempo, incrementam a desigualdade já existente entre candidatos e promovem o retrocesso das ações até aqui realizadas”.

De fato, conforme antes referido, a norma, na redação vigente ao tempo do exercício financeiro de 2017, determinava ao partido a transferência de saldo do Fundo Partidário para a conta específica e sua utilização no exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5% quando os 5% não tenham sido investidos na promoção da participação das mulheres na política.

Os arts. 55-A e 55-C da Lei n. 9.096/95 estabelecem que os partidos que descumpriram, nos exercícios anteriores a 2019, a obrigação de aplicar o mínimo de 5% dos recursos do Fundo Partidário na criação e manutenção de programas promovendo e difundindo a participação política das mulheres, mas que tenham utilizado essa verba no financiamento de candidaturas femininas até as eleições de 2018, não poderão ter suas contas rejeitadas ou sofrer qualquer outra penalidade. Além disso, a não observância da regra até o exercício de 2018 não ensejará a desaprovação das contas.

Portanto, acompanho a argumentação do Parquet no sentido de que essas disposições limitam a atuação do Poder Judiciário Eleitoral no julgamento das contas partidárias, violando o inc. III do art. 17 da Constituição Federal, dispositivo que prevê o dever de os partidos políticos prestarem contas de suas finanças à Justiça Eleitoral.

Com efeito, ao dispensar as agremiações de pagamento da multa e vedar ao órgão julgador a possibilidade de desaprovar das contas, o legislador interferiu e limitou a plena atuação do Poder Judiciário Eleitoral, a quem compete decidir pela regularidade, ou não, da movimentação financeira apresentada pelos partidos políticos, impedindo a apreciação integral das contas.

O Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos, mais conhecido como Fundo Partidário, é constituído de dotações orçamentárias da União, multas e penalidades pecuniárias aplicadas nos termos do Código Eleitoral e das leis conexas, doações de pessoas físicas ou jurídicas, sendo, portanto, uma forma de financiamento público, não exclusivo, dos partidos políticos do Brasil.

Na regulamentação do emprego desses valores, a Lei n. 9.096/95 estabelece destinações específicas e vinculadas ao dever de prestar contas da sua aplicação à Justiça Eleitoral, defendendo o órgão ministerial que “a constitucional autonomia partidária, portanto, não proíbe a entrega de recursos públicos atrelados à sustentação de política pública de promoção de igualdade de gênero na política”.

Veja-se que, em verdade, o inc. V do art. 44 da Lei n. 9.096/95 nada mais fez que conferir concretude à política pública de igualdade de gênero na seara partidária e nas campanhas eleitorais, ao determinar que essa modalidade de ação afirmativa seja financiada com recursos públicos.

É certo que a autonomia partidária deve estar alinhada aos princípios e às regras tendentes a aperfeiçoar o regime democrático – que tem por base o pluralismo político e se alicerça na diversidade de representação –, especialmente no que concerne à proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana, mormente quando focados na promoção da igualdade de gênero, em um quadro generalizado de sub-representação feminina na política, verificado, nada obstante, que mais da metade da população brasileira seja constituída por mulheres.

Ora, as legendas que não observam a legislação, ao incluir em sua agenda a política afirmativa de criação e manutenção de programas promovendo e difundindo a participação política das mulheres, devem arcar com as consequências previstas no § 5° do art. 44 da Lei n. 9.096/95 quando do descumprimento: transferência do saldo de recursos do Fundo Partidário para conta específica destinada à ação afirmativa – sendo vedada sua aplicação para finalidade diversa –, para dispêndio dentro do exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5% do valor equivalente aos 5% previstos no inc. V do caput do mesmo dispositivo legal, a ser destinado para os mesmos fins.

 

As ações afirmativas são medidas que podem ser definidas como:

 

[…] um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional, bem como para corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.

(GOMES, Joaquim B. Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo direito constitucional brasileiro. In: SANTOS, Sales Augusto. (Org.). Ações afirmativas e combate ao racismo nas Américas. Brasília: MEC/SECAD, 2005, p. 55.)

 

Flávia Piovesan define as políticas públicas afirmativas como “discriminações positivas, um meio de exteriorização do princípio da solidariedade e um estímulo ao desenvolvimento social e à diversidade, elementos de suma importância para alavancar a inserção populacional no cenário do sistema capitalista de forma mais humanizada e comprometida com o desenvolvimento de uma sociedade justa, livre e solidária” (PIOVESAN, Flávia. As ações afirmativas sob a perspectiva dos direitos humanos. In: SANTOS, Sales Augusto. (Org.). Ações afirmativas e combate ao racismo nas Américas. Brasília: MEC/SECAD, 2005, p. 35-36).

Efetivamente, o desenvolvimento de uma sociedade justa, livre e solidária é objetivo fundamental da República brasileira, ditado pela Constituição Federal de 1988 a partir de uma inspiração pautada nos ideais de justiça e democracia, e que atuam, no mínimo, como vetores interpretativos da ordem jurídica como um todo (cf. SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2006. p. 295).

Desse modo, o objetivo da previsão de uma ação afirmativa nunca poderá ser o de restringir direitos, uma vez que o instituto visa, justamente, ao acolhimento, à correção das desigualdades, à proteção de direitos e nunca ao banimento ou à diminuição.

Por essas razões, o tema relaciona-se diretamente com o princípio da proibição do retrocesso, definido pelo jurista Ingo Wolfgang Sarlet como “toda e qualquer forma de proteção de direitos fundamentais em face de medidas do poder público, com destaque para o legislador e o administrador, que tenham por escopo a supressão ou mesmo restrição de direitos fundamentais (sejam eles sociais, ou não)”. (A assim designada proibição de retrocesso social e a construção de um direito constitucional comum latino-americano. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC. Belo Horizonte: Fórum, v. 3, n. 11, p. 167–204, jul./set., 09.)

Bem se evidencia que, no caso dos autos, a declaração da inconstitucionalidade é medida impositiva.

 

Ao tratar da normatividade dos princípios constitucionais e da sua eficácia negativa, o Ministro Luís Roberto Barroso leciona que “a eficácia negativa implica a paralisação da aplicação de qualquer norma ou ato jurídico que esteja em contrariedade com o princípio constitucional em questão. Dela pode resultar a declaração de inconstitucionalidade de uma lei, seja em ação direta – com sua retirada do sistema –, seja em controle incidental de constitucionalidade – com sua não incidência no caso concreto”. (Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5. ed., São Paulo: Saraiva, 2015, p. 359.)

O Parquet acrescenta, em sua manifestação, que, em 2015, o legislador, ciente de que a reserva de cotas de gênero nas listas de candidatos não basta para a superação da desigualdade representativa verificada entre homens e mulheres, “houve por bem obrigar a destinação, para promoção e difusão de participação política feminina, até o ano de 2024, de percentuais de 20% e 15% do tempo de acesso 'gratuito' dos partidos políticos ao rádio e à televisão. Desde 1995, a lei previa que os órgãos nacionais de direção partidária fixassem o tempo, respeitado o limite de 10%”.

E pondera que, efetivamente, o inc. V do art. 44 da Lei dos Partidos Políticos, ao obrigar a aplicação de recursos na promoção da participação feminina na política, faz cair por terra a alegação de “inexistência de mulheres vocacionadas, em quantidade necessária, para concorrer aos pleitos eleitorais”.

Esse dispositivo estabelece a alocação de recursos públicos do Fundo Partidário em benefício de mulheres, na consideração de pertencentes a um grupo discriminado e vitimado pela exclusão na participação da vida política brasileira.

Para a agremiação partidária que descumpre o dispositivo, o § 5º do art. 44 prevê que o saldo deverá ser transferido para uma conta bancária específica e utilizado para a finalidade legalmente estabelecida, dentro do exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5%, sujeitando-se o partido à desaprovação das contas, devolução da quantia ao Tesouro Nacional e ao pagamento da multa de até 20% sobre o valor, na forma do art. 37 da Lei n. 9.096/95.

Sobre o apenamento, o órgão ministerial, com propriedade, traz à colação excerto de ementa de um precedente do Tribunal Superior Eleitoral nos autos da prestação de contas de diretório nacional PC 292-88, da relatoria do Min. Og Fernandes, publicado em 8.5.19, no qual se assentou que “o reiterado descumprimento das normas de incentivo à participação política da mulher caracteriza falha grave, apta a ensejar a desaprovação das contas”:

 

PRESTAÇÃO DE CONTAS DE PARTIDO POLÍTICO. DEMOCRATAS (DEM) - DIRETÓRIO NACIONAL. EXERCÍCIO FINANCEIRO DE 2013. IRREGULARIDADES QUE TOTALIZAM R$ 1.304.484,60, EQUIVALENTE A 7,2% DO VALOR RECEBIDO DO FUNDO PARTIDÁRIO. REITERAÇÃO NO DESCUMPRIMENTO DA DESTINAÇÃO DE RECURSOS DO FUNDO PARTIDÁRIO À PARTICIPAÇÃO FEMININA NA POLÍTICA. FALHA GRAVE. DESAPROVAÇÃO. IMPOSIÇÃO DE RESSARCIMENTO AO ERÁRIO DAS QUANTIAS RECEBIDAS DO FUNDO PARTIDÁRIO E IRREGULARMENTE APLICADAS. SANÇÕES DE ACRÉSCIMO DE 2,5% NO GASTO COM O INCENTIVO À PARTICIPAÇÃO DA MULHER NA POLÍTICA E DE SUSPENSÃO DA COTA DO FUNDO PARTIDÁRIO POR 1 MÊS, DIVIDIDO EM QUATRO PARCELAS. SANÇÃO MÍNIMA. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE. PRECEDENTES.

(...)

7.3. Desaprovação das contas. Falha grave. Apesar de o percentual da aplicação irregular de recursos recebidos do Fundo Partidário não ser significativo, o reiterado descumprimento das normas de incentivo à participação política da mulher caracteriza falha grave, apta a ensejar, na linha da orientação desta Corte, a desaprovação das contas.

Precedentes.

8. Determinação

8.1. Devolução ao erário de R$ 398.642,99, devidamente atualizados, que devem ser pagos com recursos próprios do partido.

8.2. Aplicação de 5% do total do Fundo Partidário para o incentivo à participação feminina na política, acrescido de 2,5%, devendo essa implementação ocorrer no exercício seguinte ao do julgamento destas contas - salvo se o tiver feito em exercícios anteriores a este marco -, para garantir a efetiva aplicação da norma, sem prejuízo do valor a ser destinado a esse fim no ano respectivo. Precedentes.

8.3. Suspensão do repasse de uma única cota do Fundo Partidário - patamar mínimo, conforme dispõe o art. 37, § 3º, da Lei nº 9.096/95 -, a ser cumprida de forma parcelada, em quatro vezes, com valores iguais e consecutivos, a fim de manter o regular funcionamento do partido.

(TSE, PC 292-88.2014.6.00.0000, Rel. Min. Og Fernandes. DJE 8.5.2019.) (Grifei.)

 

Ademais, ainda que os arts. 55-A e 55-C da Lei dos Partidos Políticos sejam compreendidos como reação legislativa – enquanto modalidade de “ativismo congressual” amparada pelo princípio da separação entre os poderes –, não seria possível a invocação do instituto, pois esses dispositivos representam, na hipótese vertente, violação aos princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade e da vedação do retrocesso social, por interferirem de forma prejudicial na eficácia do cumprimento da ação afirmativa, premiando os partidos políticos que a desrespeitaram.

Os postulados da igualdade e da vedação do retrocesso social dialogam com o princípio da segurança jurídica, pois as disposições legais sob exame apresentam-se com o claro propósito de salvaguarda ao descumprimento do inc. V do art. 44 da Lei n. 9.096/95 e, conforme defende a Procuradoria Regional Eleitoral, “de violação à autoridade de julgados do STF –, ao permitir uma postergação de futura execução de decisão que reconheceu a não aplicação do percentual destinado às candidaturas femininas”.

Nos judiciosos argumentos apresentados, a Procuradoria Regional Eleitoral ressalta que, em 15.3.18, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5617, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu que a distribuição de recursos do Fundo Partidário destinados ao financiamento das campanhas de mulheres deve ser idêntica à realizada para os homens, respeitado o patamar mínimo de 30% para as candidatas, sendo inconstitucional a fixação de prazo para a regra, como determinava o art. 9º da Lei n. 13.165/15, e que a distribuição não discriminatória deve perdurar enquanto for justificada a necessidade de composição mínima das candidaturas femininas:

Ora, não pode o legislador criar hipótese de dispensa de princípio constitucional nem fragilizar sentença proferida na esfera eleitoral. Em suma, desconsidera o dever constitucional de prestar contas e retira sanção de eventual não efetivação do dever constitucional de prestar contas.

Assim, o art. 55-A inserido pela nova lei não tornou regular o que é irregular, mas afastou o sancionamento até o exercício de 2018 e dispensou o pagamento da multa.

O art. 55-C afirma que a não observância do percentual não ensejará a desaprovação das contas.

Cumpre dizer, mais uma vez, que a nova lei não retirou o caráter ilícito da conduta de não aplicar o percentual da participação feminina na política. A lei não tornou regular o que é irregular; não convalidou – nem poderia – prática ilegal e inconstitucional (já que desrespeita a autoridade do julgado proferido pelo STF na ADIn 5617). A lesão observada – de não cumprimento da aplicação do percentual feminino – permanece incólume.

É fundamental que a Justiça Eleitoral continue afirmando sobre a ilicitude da conduta de não aplicar o percentual da participação feminina na política.

Admitir como válida e legítima tal criação legislativa é desconsiderar a sentença no plano da teoria do direito.

Assim, não pode o legislador transformar a sentença que julga a prestação de contas em algo sem imperatividade, sem coercibilidade. Seria postergar ainda mais a decisão do STF na qual se já fez a modulação dos efeitos (ED na ADIn 5617, j.02.10.18). Afirmar que não é possível a desaprovação das contas vai contra a própria jurisprudência – recente – do Tribunal Superior Eleitoral que consigna: “7.3. Desaprovação das contas. Falha grave. Apesar de o percentual da aplicação irregular de recursos recebidos do Fundo Partidário não ser significativo, o reiterado descumprimento das normas de incentivo à participação política da mulher caracteriza falha grave, apta a ensejar, na linha da orientação desta Corte, a desaprovação das contas. Precedentes.” (Trecho da ementa do acórdão da PC n. 292- 88.2014.6.00.0000/DF, j. 28.03.19.)

 

Segundo o Parquet, essas disposições, acaso mantidas, representarão inequívoco prejuízo à democracia em que vivemos, onde metade da população é sub-representada e patologicamente organizada, pois a sub-representação política é fator de dominação, inferioridade e sujeição:

Em uma república estabelecida por uma sociedade justa, fraterna e solidária, não deve haver a possibilidade de um contingente humano equivalente à metade da população não se fazer presente de forma marcante na amostra política dos representantes de toda a sociedade nos parlamentos.

A gravidade desse quadro exigiu e exige políticas públicas de promoção de igualdade de gênero na representação política da sociedade.

Na seara das mais explícitas políticas de promoção de paritário acesso para promoção de igualdade, houve opção legislativa por percentuais mínimos e máximos de gênero nas candidaturas legislativas proporcionais.

Tal política pública – sem o suficiente financiamento – não produziu o efeito esperado. Houve 16.000 candidaturas femininas nas eleições municipais que não receberam nem mesmo um voto12. Em muitos casos nem as próprias candidatas votaram em si por não acreditarem em sua viabilidade.

Toda política pública exige financiamento que a sustente.

O Supremo Tribunal Federal, em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade, explicitou que na utilização dos recursos públicos do fundo partidário em campanhas devem ser observadas as proporções de gênero dos candidatos.

Ao apreciar a referida ação, decidiu a Suprema Corte “dar interpretação conforme a Constituição ao art. 9º da Lei 13.165/15 de modo a equiparar o patamar legal mínimo de candidaturas femininas (hoje o do art. 10, §3º, da Lei n. 9.504/97, isto é, ao menos 30% de cidadãs), ao mínimo de recursos do Fundo Partidário a lhes serem destinados, que deve ser interpretado como também de 30% do montante do Fundo alocado a cada partido, para as eleições majoritárias e proporcionais, e fixar que, havendo percentual mais elevado de candidaturas femininas, o mínimo de recursos globais do partido destinados a campanhas lhe seja alocado na mesma proporção”.

 

A Procuradoria Regional Eleitoral reforça a sua argumentação mencionando os indicadores de desigualdade de gênero dos ocupantes de cargos eletivos do Brasil, quando comparados a outros países, e salientando que o percentual de 5% dos recursos do Fundo Partidário, tal qual a obrigação de lançar ao menos 30% de candidatas aos cargos do pleito proporcional, “se inserem numa política de ação afirmativa, tendente a minorar a histórica desigualdade de gênero na composição das casas legislativas:

O Brasil ocupa posição vexatória nas estruturas partidárias e, notadamente, de suas direções. Deixadas à própria conta, essas instâncias lançam apenas candidatos homens; se lançam mulheres, é em menor número; quando lançam, não financiam. Foi preciso uma decisão do Supremo Tribunal Federal para obrigar os partidos a utilizar ao menos 30% dos recursos (de novo, públicos) em prol de suas candidatas (ADI 5.617) e outra do TSE (Consulta 0600252-18) para exigir que, do 1,7 bilhão de reais do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas Eleitorais, se respeitasse a quota-parte das mulheres.

Essas posições de vantagem, as quotas, não tem a vocação da perenidade.

Devem ir se atenuando na medida em que as condições materiais e sociais que traziam a desigualdade forem, por igual, se atenuando. No caso da participação política feminina, tal atenuação ainda não se apresenta. Os avanços têm sido discretos, ainda que constantes. O total de deputados federais é 513. Destes, eram 55 mulheres na legislatura de 2015/2018 (10,72%¨) e 77 para o período 2019/2022 (15%). Não temos dúvida em indicar que, para esse resultado, as ações afirmativas vigentes foram de grande valia. Entretanto, sem desmerecer o avanço efetivamente ocorrido, ele fica tímido se considerarmos que as mulheres representam cerca de 51% do total da população brasileira. Em síntese, não é a hora, ainda, de relaxar ou diminuir a ação afirmativa. Uma atuação do poder público, inclusive normativa, que enfraquece uma ação de combate à desigualdade, é equivalente a uma ação que a amplia. Deste modo, a Lei 13.831/19 padece de inconstitucionalidade. Outro modo de apresentar essa eiva é fazer referência à proibição do retrocesso. Uma política pública que buscava cumprir a Constituição – e vinha obtendo êxito nesse caminho – não pode ser descontinuada, a não ser que razões igualmente ponderáveis e constitucionais se apresentem. Não é o caso. Trata-se da destinação de recursos públicos, dados a instituições privadas (os partidos políticos), com vinculação muito moderada: 5%.

Não nos impressiona o argumento de que a anistia é condicionada. Afinal, não ocorrerá a reprovação das contas se aqueles valores tiverem sido utilizados em campanhas femininas. É importante destacar que, mesmo com as quotas de lançamento de candidatas e utilização dos recursos, 70% deles continuam a ser utilizados nas campanhas dos candidatos homens. Mesmo com o emprego total daqueles 5%, ter-se-ia, então, a metade do valor masculino: 35%. É uma diminuição da garantia mínima representada pela ação afirmativa.

Ademais, a lei não distingue se o emprego se deu em candidaturas majoritárias ou proporcionais femininas. O risco é que se procure aplicar a anistia mesmo que os recursos tenham sido empregados em prol de candidatas a senador, presidente, prefeito ou governador, enquanto as quotas são, claramente, orientadas para as candidaturas proporcionais. Vão querer dizer que os recursos dados a candidatos majoritários homens, desde que o suplente ou o vice sejam mulheres, justificará a anistia. Essa argumentação é pragmática, mas também avança no sentido da inconstitucionalidade da norma.

As ações afirmativas oferecem posições de vantagem para setores que, por variadas razões, competem em desigualdade de condições. O objetivo é, portanto, a promoção da igualdade, princípio e finalidade constitucional seguidamente reiterada."

 

Efetivamente, os arts. 55-A e 55-C da Lei n. 9.096/95 representam afronta ao princípio da igualdade insculpido na Constituição Federal, assim como ao princípio da vedação do retrocesso social, por caracterizarem manifesta restrição a direito fundamental, em virtude do tratamento desigual ao beneficiar os partidos políticos que descumpriram a determinação expressa em lei de aplicação de recursos do Fundo Partidário no fomento à participação política das mulheres.

Conforme ressaltou o Ministro Edson Fachin, relator da ADI 5617, “apesar de atualmente as mulheres serem mais da metade da população e do eleitorado brasileiro, apenas 9,9% do Congresso Nacional é formado por mulheres e apenas 11% das prefeituras é comandada por elas”.

Em 2019, a ONU Mulheres, organização das Nações Unidas dedicada à igualdade de gênero e ao empoderamento feminino, divulgou que, no ranking de 35 países latino-americanos e caribenhos sobre mulheres nos parlamentos nacionais, o Brasil ocupa a 28ª posição devido aos 15% de parlamentares eleitas, estando muito distante da primeira e segunda posições, ocupadas, respectivamente, por Cuba (53,2%) e Bolívia (53,1%) (https://oig.cepal.org/pt/indicadores/poder-legislativo-porcentagem-mulheres-no-orgao-legislativo-nacional-camara-baixa-ou).

 

O órgão informa que o Parlatino (Parlamento Latino-americano e Caribenho) adotou a “Norma Marco para Consolidar a Democracia Paritária”, elaborada em cooperação com a ONU Mulheres para Américas e Caribe, para impulsionar o aumento da participação das mulheres na política na região, estabelecendo a democracia paritária como modelo, no qual a paridade e a igualdade substantiva entre mulheres e homens são os eixos estruturantes do Estado inclusivo.

Ao tratar da histórica exclusão das mulheres no âmbito do Poder Legislativo brasileiro, a doutora em ciência política Daniela Leandro Rezende refere que, diante da estabilidade do baixo percentual de eleitas para a Câmara dos Deputados, mesmo com a adoção de ações dirigidas ao asseguramento de cotas de gênero nas candidaturas eleitorais, a reserva de recursos do Fundo Partidário para a promoção da participação política feminina tem sido insuficiente para garantir a inserção das mulheres em espaços de poder:

Verifica-se, pois, que a existência de cotas, apesar de necessária, não é suficiente para garantir a eleição de maior contingente de mulheres ou a transformação ou reorganização das instituições políticas em direção à igualdade de gênero, e tampouco a possibilidade de que as mulheres eleitas possam influenciar o processo decisório.

(…)

O Brasil se encontra na 155a posição (no total de 188 posições) no ranking de mulheres em legislativos nacionais da Inter-Parliamentary Union.3 A sub-representação de mulheres no país se mantém estável e o percentual de eleitas para a Câmara dos Deputados permanece inferior a 10% desde a década de 1940. Esse cenário se mantém inalterado a despeito de iniciativas como cotas de gênero nas listas eleitorais e da obrigatoriedade de que os partidos políticos destinem parte de seus recursos ao fomento da participação política de mulheres. Apesar de ineficazes, tais estratégias explicitam a centralidade dos partidos políticos para a eleição de mulheres e seu papel como mediadores da distribuição de recursos eleitorais no Brasil (ARAÚJO, 2005; Maria Luiza Miranda ÁLVARES, 2008; Teresa SACCHET; Bruno W. SPECK, 2012; Fabiano SANTOS; Carolina Almeida de PAULA; Joana SEABRA, 2012; Larissa Peixoto Vale GOMES, 2016).

(Desafios à representação política de mulheres na Câmara dos Deputados. Revista Estudos Feministas. Vol. 25, n. 3, Florianópolis Sept./Dec. 2017. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2017000301199>. Acesso em 16.1.20.)

 

Com essas considerações, entendo que merece acolhimento o incidente de inconstitucionalidade suscitado, afastando, no caso concreto, a aplicação dos arts. 55-A e 55-C da Lei n. 9.096/95 – por violação à Constituição Federal, afronta aos princípios da igualdade, da inafastabilidade do Judiciário e da vedação do retrocesso, e desrespeito ao inc. III do art. 17 da Constituição Federal –,  bem como a aplicação do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, devido à ausência de previsão de estimativa de impacto orçamentário e financeiro da renúncia de receita, desatenção ao art. 113 do ADCT, inobservância do devido processo legislativo e violação ao art. 14 da Lei Complementar n. 101/00 e aos arts. 69 e 163 da Constituição Federal, além de descumprimento do princípio da anualidade ou anterioridade eleitoral insculpido no art. 16 da Constituição Federal.

 

Assim, também na hipótese dos autos deve ser declarada a inconstitucionalidade do art. 55-A da Lei n. 9.096/95.

Ainda que o dispositivo fosse considerado constitucional, no caso concreto seu conteúdo não socorreria a agremiação, pois, conforme pondera o órgão ministerial, não houve demonstração de que a grei tenha utilizado esses recursos no financiamento das candidaturas femininas até as eleições de 2018.

Assim, nos termos da conclusão técnica, a aplicação mínima de 5% de recursos do Fundo Partidário na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres não foi comprovada pelo diretório regional no exercício de 2018.

Consequentemente, o partido deve transferir o valor de R$ 28.250,00 para a conta bancária específica do Fundo Partidário destinada à criação e manutenção de programas de incentivo à participação política das mulheres na esfera estadual, sendo vedado seu emprego para finalidade diversa.

Esse valor deverá ser investido dentro do exercício financeiro subsequente ao do trânsito em julgado, além do percentual previsto para o próprio exercício em que for cumprida a presente determinação, sob pena de acréscimo de 12,5% ao valor, a ser empregado na mesma finalidade, de acordo com o previsto no inc. V e § 5º do caput do art. 44 da Lei n. 9.096/95.

O montante total das irregularidades alcança o valor de R$ 35.860,00 (R$ 6.610,00 + R$ 1.000,00 + R$ 28.250,00), quantia que representa 5,78% dos recursos recebidos (R$ 619.725,70).

O órgão técnico concluiu pela desaprovação das contas, assim como a Procuradoria Regional Eleitoral, a qual referiu que o valor nominal das falhas é expressivo e que o partido é reincidente na inobservância das falhas apontadas, como se constata do processo relativo às contas do exercício financeiro de 2017, PC n. 0600272-24.2018.6.21.0000.

Contudo, observa-se que a PC n. 0600272-24.2018.6.21.0000 sequer foi julgada por esta Corte até o momento em que os presentes autos vieram conclusos para julgamento, e que a reincidência em irregularidades, assim como o valor nominal das falhas, não são critérios considerados por este Tribunal para decidir sobre a aprovação ou desaprovação das contas.

Nos termos do acórdão na PC n. 0602520-60.2018.6.21.0000, julgado na sessão de 02.6.2020, no qual prevaleceu a posição divergente por mim apresentada, restou assentado pelo TRE-RS que o Tribunal não abriu discussão sobre a necessidade de se estabelecer “um juízo valorativo entre os vícios constatados nas prestações de contas a fim de fixar uma diretriz sobre quais são os que não comportam atenuação com base nos ditames da razoabilidade e da proporcionalidade, e sobre qual o montante absoluto de irregularidades que pode ser considerado, de per si, uma falha grave o suficiente para atrair o juízo de reprovação”.

No julgado, consignei que o entendimento desta Corte está pautado na aprovação com ressalvas para irregularidades de até 10% sobre o valor global da arrecadação, “independentemente de seu montante”, com esteio no princípio da proporcionalidade em relação aos seus subprincípios – adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, este último tomado como máxima da necessidade, exigibilidade e adequação:

Entretanto, no julgamento das prestações de contas, seja de exercício financeiro, seja de campanha eleitoral, o TRE-RS não estabelece distinção entre as falhas constatadas ao analisar a possibilidade de aprovação com ressalvas. O critério que vem sendo adotado é exclusivamente objetivo, partindo-se do raciocínio de que, se a legenda ou candidato demonstrou a aplicação regular de 90% ou mais da sua arrecadação, não é razoável ou proporcional, a desaprovação das contas.

Não se estabeleceu, até o presente momento, juízo de valor de maior ou menor gravidade entre o desrespeito à política de quotas e, por exemplo, o recebimento de recursos de origem não identificada ou de fonte vedada, ou até mesmo a ausência de comprovação de despesas realizadas com recursos públicos.

No atual estágio dos julgamentos ocorridos acerca das eleições de 2018, o entendimento do Tribunal foi pautado na consideração de que se as contas apresentam quaisquer irregularidades de até 10% sobre o valor global da arrecadação, independentemente de seu montante, a conclusão pela desaprovação não atenderia ao princípio da proporcionalidade em relação aos seus subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, este último tomado como máxima da necessidade, exigibilidade e adequação (vide Exames inerentes à proporcionalidade, em: ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 11 ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 167-169).

 

Na hipótese, as irregularidades representam 5,78% do total da receita arrecadada no exercício financeiro e, em hipóteses como a dos autos, esta Corte tem entendido pela aprovação das contas com ressalvas:

RECURSO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. PARTIDO POLÍTICO. EXERCÍCIO FINANCEIRO DE 2017. DESAPROVAÇÃO. RECEBIMENTO DE RECURSOS ORIUNDOS DE FONTES VEDADAS. AUTORIDADES PÚBLICAS. IRRETROATIVIDADE DAS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA LEI N. 13.488/17. MANTIDO O RECOLHIMENTO AO TESOURO NACIONAL. AFASTADAS A SANÇÃO DE MULTA E A PENALIDADE DE SUSPENSÃO DO FUNDO PARTIDÁRIO. PARCIAL PROVIMENTO.

1. Desaprovação das contas da agremiação em razão do recebimento de recursos de fonte vedada, oriundos de contribuições de ocupantes de cargos de chefia demissíveis ad nutum. Escorreita a aplicação, pelo juízo a quo, da legislação vigente à época do exercício financeiro a que se refere a prestação de contas, alinhando-se ao entendimento consolidado por esta Corte e na esteira da jurisprudência do TSE.

2. Irrelevante o argumento de o cargo ocupado por autoridade ser em governo administrado por integrante de partido adversário. Recebida a doação de servidor que se enquadre na categoria de autoridade pública, nos termos da Resolução TSE n. 23.464/2015, aplicável ao exercício em análise, incide o caráter objetivo da norma, sem espaço para eventual análise subjetiva.

3. Valores irregularmente recebidos que representam 2,83% do total de recursos arrecadados pela agremiação no exercício financeiro. Aplicados princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Mantido o recolhimento ao Tesouro Nacional. Afastadas a sanção de multa sobre a quantia a ser recolhida ao Tesouro Nacional e a penalidade de suspensão do repasse de quotas do Fundo Partidário.

4. Parcial provimento.

(Recurso Eleitoral n. 5482, ACÓRDÃO de 11.4.2019, Rel. Marilene Bonzanini, DEJERS 22.4.2019.)

 

ANTE O EXPOSTO, VOTO pelo afastamento da aplicação do art. 55-A da Lei n. 9.096/95 ao caso concreto, em razão da declaração da sua inconstitucionalidade, aprovo com ressalvas as contas do exercício financeiro de 2018 do DIRETÓRIO ESTADUAL DO DEMOCRATAS (DEM), determino o recolhimento de R$ 7.610,00 (sete mil, seiscentos e dez reais) ao Tesouro Nacional e a transferência de R$ 28.250,00 (vinte e oito mil, duzentos e cinquenta reais) para a conta bancária específica do Fundo Partidário destinada à criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres na esfera estadual, sendo vedado seu emprego para finalidade diversa, devendo a quantia ser investida dentro do exercício financeiro subsequente ao do trânsito em julgado desta decisão, além do percentual previsto para o próprio exercício em que for cumprida a determinação, sob pena de acréscimo de 12,5% ao valor a ser aplicado na mesma finalidade, conforme previsto no inc. V e § 5º do art. 44 da Lei n. 9.096/95, nos termos da fundamentação.