REl - 0600006-35.2020.6.21.0172 - Voto Relator(a) - Sessão: 21/01/2021 às 14:00

VOTO

Antes de analisar o mérito, cumpre enfrentar a preliminar de nulidade da sentença por falta de fundamentação adequada.

 

1. Preliminar de nulidade da sentença

O recorrente alegou que a sentença afastou a aplicação do art. 55-D da Lei n. 9.096/95 sem enfrentar todas as teses suscitadas pela defesa, limitando-se a invocar precedente desta Corte, em desacordo com o disposto no art. 489, § 1º, incs. IV e V, do CPC:

Art. 489. São elementos essenciais da sentença:

(...)

§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

(...)

IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

Contudo, a alegação de nulidade não prospera.

Ao afastar a aplicação do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, o magistrado singular tratou de todos os argumentos deduzidos no processo capazes de infirmar sua conclusão, não se limitando a invocar os precedentes desta Corte sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta às razões dos precedentes.

Idêntica alegação foi objeto de embargos de declaração opostos pela agremiação, tendo sido rejeitado o recurso pelo magistrado a quo, o qual apontou que a tese da retroatividade, apresentada com a intenção de afastar a incidência do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, foi suficientemente enfrentada na sentença, não sendo necessário que se repisem os fundamentos e argumentos que formaram a convicção deste Tribunal no julgamento do RE n. 3592, da relatoria do Des. Eleitoral Gerson Fischmann, especialmente porque o partido se limitou a alegar que entende equivocadas as premissas de ofensa à anualidade eleitoral e de atuação legislativa em causa própria aventadas pelo Ministério Público Eleitoral em plenário, sem trazer argumentos específicos para combater essas assertivas.

De fato, conforme referido no julgamento dos declaratórios, a sentença está devidamente fundamentada, razão pela qual colaciono o seguinte excerto:

Intimado para defesa, o Partido alegou que a anistia trazida pelo artigo 55-D é coerente com a nova redação do art. 31 da Lei nº 9.096/95, ao passo que, com a alteração introduzida pela Lei nº 13.488/2017, os servidores aliados a partido político ocupantes de função ou cargos de livre nomeação e exoneração, ou de cago ou emprego público temporário, deixaram de ser considerados fontes vedadas.

Aduziu ainda, que a referida alteração legislativa também foi aditada pelo TSE na Resolução nº 23.546/2017 e que o legislador, em observância a tais disposições, percebendo a incongruência de exigir dos órgãos partidários o cumprimento de uma obrigação que já não existe mais, incluiu o art. 55-D à Lei. nº 9.096,95, ressaltando que em atenção à segurança jurídica o art. 3º da Lei nº 13.831/2019, restringiu a aplicação das alterações legislativas aos processos que ainda não haviam transitado em julgado.

Por fim, registrou que entende equivocadas as premissas de ofensa ao princípio da anualidade eleitoral ou de atuação legislativa em causa própria, sustentadas pela PRE no plenário, bem como, pugnou pela inaplicabilidade do reconhecimento de inconstitucionalidade aos presentes autos, alegando que a decisão do RE 3592 se deu em âmbito difuso e que é aplicável somente àquele caso concreto, conforme constou do julgado, alegando ainda, a ausência de modulação de efeitos.

Quanto aos valores recebidos de fonte vedada e devolvidos intempestivamente aos doadores, no valor total de R$ 16.480,53 (Dezasseis mil quatrocentos e oitenta reais e cinqueta e três centavos), esclareceu que a devolução se deu tão logo percebido o ócio, alegando a ausência de dolo ou outro elemento indicativo de má-fé.

Não merece prosperar o argumento da defesa que sugere a retroação da Resolução TSE n. 23.546/2017, que regulamenta as prestações de contas a partir do ano de 2018, pois em sede de prestação de contas, a Justiça Eleitoral adotou o princípio "tempus regit actum", conforme se verifica no teor art. 65 da referida resolução:

(…)

A jurisprudência do TSE se firmou no sentido de que não se aplicam às prestações de contas de exercícios anteriores as normas mais benéficas introduzidas pela legislação, conforme se verifica no julgado abaixo transcrito:

AGRAVO REGIMENTAL, RECURSO ESPECIAL. EXERCÍCIO FINANCEIRO DE 20] 1. 1PARTIDO POLÍTICO. AJUSTE CONTÁBIL. DESAPROVAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE AFRONTA LEGAL. IRRETROATIVIDADE DAS ALTERAÇÕES PRODUZIDAS NO ART.37 DA LEI 9.096/95 PELA LEI 13.165/2015. NORMAS DE: DIREITO MATERIAL. DESPROVIMENTO. 1. Autos recebidos no gabinete em 1 0.8-2017. 2. As mudanças introduzidas pela Lei 13.165/2015 ao art. 37 da Lei 9096/95 – em especial a retirada de suspensão de cotas do Fundo Partidário são regras de direito material e não se aplicam às prestações de contas de exercícios anteriores, sob pena de afronta aos princípios da isonomia e da segurança jurídica. Precedentes. 3. Mantida suspensão de cotas do Fundo Partidário pelo prazo de dois meses. 4. Agravo regimental desprovido. Recurso Especial Eleitoral nº 25509. Acórdão. Relator(a) Min. Herman Benjamin, Publicação: DJE – Diário de justiça eletrônico, Tomo 123, Data 25/06/2018: Página 32-33)(grifei)

No mesmo sentido, o TRE-RS, em julgado recente abaixo transcrito, decidiu pela irretroatividade das normas de direito material sobre finanças e contabilidade dos partidos políticos, prestigiando os princípios da isonomia e da segurança jurídica.

(...)

Com efeito, a anistia concedida pelo art. 55-D da Lei n º 9.096/95, prejudica a isonomia e a segurança jurídica do processo eleitoral, pois estabelece benefício que fortalece o Partido que arrecadou recursos financeiros de fonte vedada, em detrimento daquele que, em estrita atenção às regras, recebeu contribuições e doações tão somente de fontes regulares.

Dessa forma, inviável a pretensão de aplicação retroativa da alteração legislativa introduzida pela Lei nº 13.488, de 06 de outubro de 2017, no art. 31, inciso V da Lei nº 9.096/95, também conhecida como a Lei dos Partidos Políticos, que estabeleceu como fonte não vedada a contribuição de filiados ao partido, mesmo que detentores de cargos em comissão, sob pena de se conceder tratamento desigual aos partidos políticos: podendo gerar desequilíbrio na disputa eleitoral.

Com relação ao reconhecimento da inconstitucionalidade do art. 55-D, embora corretos os argumentos da defesa acerca do alcance do julgamento do RE 3592, uma vez que ocorreu em controle difuso, por força do art. 927, inciso V do Código de Processo Civil, tal somente significa que cabe ao julgador decidir no caso concreto se também declara a inconstitucionalidade do art. 55-D da Lei n'º 9.096/95 ou admite sua aplicação. Por comungar da tese de inconstitucionalidade proferida pelo TRE-RS, tenho que deve ser mantida a soma da parcela de R$ 11..362,38 (onze mil trezentos e sebenta e dois reais e sessenta e oito centavos) ao montante de recursos apontados pela unidade técnica como provenientes de fontes vedadas, totalizando o valor de R$ 26.853,71(vinte e seis mil oitocentos c cinquenta e três reais e setenta e um centavos).

Como se verifica, a decisão foi clara ao apontar que, segundo entendimento consolidado do TSE, não se aplicam às prestações de contas de exercícios anteriores as normas mais benéficas introduzidas pela legislação. Além disso, o juízo singular endossou o posicionamento deste Tribunal no sentido da irretroatividade das normas de direito material sobre finanças e contabilidade dos partidos políticos, prestigiando os princípios da isonomia e da segurança jurídica.

Portanto, não prospera a alegação da agremiação.

Nesses termos, afasto a preliminar.

2. Mérito

O recorrente teve suas contas partidárias relativas ao exercício de 2017 julgadas desaprovadas, em razão do reconhecimento da irregularidade de recebimento de recursos provenientes de fontes vedadas no montante de R$ 26.853,71.

Em relação à irregularidade, foram identificadas diversas contribuições realizadas por servidores titulares de cargos demissíveis ad nutum da administração municipal de Novo Hamburgo, a saber: diretor, gerente, subprocurador e coordenador.

Inicialmente, deve ser analisada a possibilidade de aplicação do art. 55-D da Lei n. 9.096/95 ao feito, por ser uma questão prejudicial à análise do mérito.

Transcrevo o dispositivo em questão:

Art. 55-D. Ficam anistiadas as devoluções, as cobranças ou as transferências ao Tesouro Nacional que tenham como causa as doações ou contribuições feitas em anos anteriores por servidores públicos que exerçam função ou cargo público de livre nomeação e exoneração, desde que filiados a partido político.

(Incluído pela Lei nº 13.831, de 2019.)

Conforme referiu a sentença, na sessão de julgamento de 19.8.2019, nos autos do processo RE 35-92, da relatoria do Des. Eleitoral Gerson Fischmann, foi acolhida a arguição de inconstitucionalidade da norma invocada. Confira-se a ementa do precedente:

RECURSO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. PARTIDO POLÍTICO. EXERCÍCIO DE 2015. DESAPROVAÇÃO. MATÉRIA PRELIMINAR ACOLHIDA. INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 55-D DA LEI N. 9.096/95, INCLUÍDO PELA LEI N. 13.831/19. MÉRITO. RECEBIMENTO DE RECURSOS DE ORIGEM NÃO IDENTIFICADA E DE FONTE VEDADA. PORCENTAGEM REPRESENTATIVA DAS IRREGULARIDADES DIANTE DA TOTALIDADE DOS RECURSOS ARRECADADOS NO PERÍODO. AFASTADA A APLICAÇÃO DOS POSTULADOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE. MANUTENÇÃO DO JUÍZO DE DESAPROVAÇÃO. REDUZIDO O PERÍODO DE SUSPENSÃO DO FUNDO PARTIDÁRIO. AFASTADA A CONDIÇÃO DE QUE A SANÇÃO SUBSISTA ATÉ QUE OS ESCLARECIMENTOS SEJAM ACEITOS PELA JUSTIÇA ELEITORAL. PROVIMENTO PARCIAL.

1. Incidente de inconstitucionalidade suscitado pelo Procurador Regional Eleitoral. 1.1. O art. 55-D da Lei n. 9.096/95, norma legal objeto do aludido incidente, incluído pela Lei n. 13.831/19, assinala a anistia das devoluções, cobranças ou transferências ao Tesouro Nacional que tenham como causa as doações ou contribuições efetuadas, em anos anteriores, por servidores públicos os quais exerçam função ou cargo público de livre nomeação e exoneração, desde que filiados a partido político. Ausência de notícia de que tenha havido oferecimento dos dados relativos à previsão de estimativa de impacto orçamentário e financeiro quando da tramitação da proposta legislativa prevendo a renúncia da receita. Omissão que afronta a exigência constitucional incluída pela EC n. 95/16 no art. 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. A legislação infraconstitucional igualmente exige seja comprovado o impacto orçamentário e financeiro à concessão de benefício que gere a diminuição de receita da União, nos termos do art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal e arts. 114 e 116 da Lei n. 13.707/18. 1.2. A anistia das verbas consideradas como oriundas de fontes vedadas – benefício instituído em causa própria e sem qualquer finalidade pública subjacente – atenta ao princípio da moralidade administrativa e desvirtua a natureza jurídica do instituto. 1.3. Vício de inconstitucionalidade formal e material. Acolhimento da preliminar. Afastada, no caso concreto, a aplicação do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, incluído pela Lei n. 13.831/19.

(...)

6. Parcial provimento.

(TRE-RS, RE n. 35-92,  Rel. Des. Eleitoral Gerson Fischmann, julgado em 19.8.2019, DEJERS 23.8.2019.)

A inconstitucionalidade foi aventada com base nos seguintes fundamentos: a) falta de dados relativos à previsão de estimativa de impacto orçamentário e financeiro da renúncia de receita em questão, em desrespeito ao art. 113 do ADCT; b) inobservância do devido processo legislativo e consequente violação ao art. 14 da Lei Complementar n. 101/00 e aos arts. 69 e 163 da Constituição Federal, que exigem lei complementar para as alterações das alíquotas dos impostos previstos nos incs. I, II, IV e V do art. 153 da Constituição, na forma do seu § 1º, e cancelamento de débito cujo montante seja inferior ao dos respectivos custos de cobrança; c) descumprimento do princípio da anualidade ou anterioridade eleitoral, insculpido no art. 16 da Constituição Federal.

Tendo o Plenário da Corte discutido a matéria recentemente e declarado a inconstitucionalidade do dispositivo, ante a ausência da indicação de outros elementos hábeis a justificar a revogação do precedente, é incabível a rediscussão da matéria como requer o recorrente.

Sabe-se que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente (art. 926 do CPC), bem como observar a orientação do plenário do órgão (art. 927, inc. V, do CPC).

Além de explicitada em lei, a necessidade de estabilização das decisões, em especial daquelas que examinam a validade de normas, também é imperativa segundo a doutrina:

Assim, uma vez decidida a questão constitucional no Tribunal, as Câmaras ou Turmas não mais podem submeter a arguição de inconstitucionalidade ao Plenário ou ao Órgão Especial. Até porque estes estão proibidos de voltar a tratar da questão constitucional sem que presentes os requisitos hábeis a justificar a revogação de precedentes, como a transformação dos valores sociais ou da concepção geral do direito ou, ainda, erro manifesto. Aliás, é improvável que a decisão do Tribunal, sem ter chegado à análise do STF, possa estar sujeita a tais condições.

Advirta-se que a alteração da composição do órgão julgador não é suficiente para a revogação do precedente. Da mesma forma, os fundamentos que foram levantados quando do julgamento não podem simplesmente voltar a ser discutidos. O rejulgamento é viável apenas quando se tem consciência de que a manutenção do precedente constitui a eternização de um erro ou de uma injustiça, seja porque há equívoco grosseiro na decisão, seja porque a evolução da sociedade e do direito está a mostrar que a decisão primitiva não mais pode prevalecer.

(SARLET, Ingo Wolfgang, MARINONI, Luiz Guilherme e MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional – 6. ed. – São Paulo: Saraiva, 2017, edição eletrônica.)

Desse modo, na hipótese dos autos, o referido artigo deve ser declarado inconstitucional pelos mesmos fundamentos traçados no RE n. 35-92, motivo pelo qual reproduzo as razões por mim lançadas naquele feito:

Como muito bem apontado pelo suscitante, não se tem notícia de que tenha havido apresentação dos dados relativos à previsão de estimativa de impacto orçamentário e financeiro por ocasião da tramitação da proposição legislativa prevendo a renúncia da receita em questão.

A exigência da mencionada estimativa tem sede constitucional, incluída pela EC n. 95/16 no ADCT:

Art. 113. A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro.

Além disso, a legislação infraconstitucional igualmente exige a devida comprovação do impacto orçamentário e financeiro à concessão de benefício que gere a diminuição de receita da União (art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal e arts. 114 e 116 da Lei n. 13.707/18).

Assim, no ponto, o dispositivo legal em questão possui vício de inconstitucionalidade na origem.

O constituinte de 1988 foi contundente ao demonstrar a intenção de dedicar papel central aos partidos políticos no Estado Democrático de Direito, elegendo como fundamento da República Federativa do Brasil o pluralismo político.

As funções das agremiações partidárias, na dicção de Mario Justo López (Partidos Políticos: teoría general y régimen legal, p. 40-41), são: a) dar coerência à vontade popular; b) realizar a educação cívica dos cidadãos; c) servir de elo entre o governo e a opinião pública; d) selecionar aqueles que devem dirigir os destinos do Estado; e e) projetar a política de governo e controlar a sua execução.

Como eixo fundante da democracia representativa, os partidos devem respeitar a soberania popular, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e são obrigados a prestar contas à Justiça Eleitoral.

O instituto da prestação de contas tem como escopo emprestar transparência à atividade partidária, identificar a origem e a destinação dos recursos utilizados nas disputas eleitorais, tudo com o propósito de evitar o aporte de dividendos ilícitos no processo eleitoral e evitar o abuso do poder econômico.

Nessa medida, quando esses mesmos organismos que deveriam ser os protagonistas da democracia representativa, em uma verdadeira queda de braço com o Poder Executivo, instituem anistia de todas as verbas consideradas oriundas de fontes vedadas, forçoso reconhecer ofensa direta ao princípio da prestação de contas. Não só isso, sendo o benefício em causa própria e sem qualquer finalidade pública, para dizer o mínimo, há inequívoca violação ao princípio da moralidade administrativa (art. 37, caput, da CF).

A anistia igualmente coloca em situação não isonômica e em posição desfavorável aquelas agremiações partidárias que adimpliram suas obrigações com o recolhimento de importâncias glosadas pela Justiça Eleitoral quando do exame e fiscalização de suas contas.

Significa dizer, nas palavras do eminente Procurador Regional Eleitoral, depois do jogo jogado, mudam as regras e, de forma benevolente e casuísta, concede-se anistia aos que se encontram em mora.

Para além disso, subverte a natureza jurídica do instituto da Anistia, realizando uma aplicação retroativa da Lei n. 13.488/17, que autorizou as doações daqueles que exercem cargo ou função demissível ad nutum, desde que filiados.

Com efeito, a jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de não ser possível a aplicação retroativa das disposições da Lei n. 13.488/17:

RECURSO. PRESTAÇÃO DE CONTAS ANUAL. PARTIDO POLÍTICO. EXERCÍCIO DE 2015. PRELIMINAR. MANUTENÇÃO DOS DIRIGENTES PARTIDÁRIOS NO POLO PASSIVO. ILEGITIMIDADE NÃO CONFIGURADA. MÉRITO. RECEBIMENTO DE DOAÇÕES DE FONTES VEDADAS. ALTERAÇÃO LEGISLATIVA. PERMITIDA A CONTRIBUIÇÃO DE FILIADOS. INAPLICABILIDADE AO CASO CONCRETO. APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO VIGENTE À ÉPOCA DOS FATOS. PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. MANUTENÇÃO DO JUÍZO DE IRREGULARIDADE DA DOAÇÃO. REDUÇÃO DO PRAZO DE SUSPENSÃO DO RECEBIMENTO DAS QUOTAS DO FUNDO PARTIDÁRIO. PARCIAL PROVIMENTO.

(...)

3. A Lei n. 13.488/17, publicada em 06.10.17, alterou a redação do art. 31 da Lei n. 9.096/95 - Lei dos Partidos Políticos -, excluindo a vedação de doação de pessoa física que exerça função ou cargo público demissível ad nutum, desde que filiada ao partido beneficiário.

4. Inaplicabilidade ao caso concreto. Incidência da legislação vigente à época dos fatos. Prevalência do princípio da segurança jurídica e da paridade de armas no processo eleitoral, em detrimento da aplicação pontual da retroatividade in bonam partem. Manutenção do juízo de irregularidade das contribuições advindas de cargos demissíveis ad nutum, ainda que os contribuintes sejam filiados à agremiação.

(...)

6. Provimento parcial.

(TRE-RS; Recurso Eleitoral n. 14-97, Relator: Dr. Luciano André Losekann, julgado em 04.12.2017, por unanimidade.) (Grifei.)

Ressalto que esse entendimento é adotado pelo Tribunal Superior Eleitoral: a legislação que regula a prestação de contas é aquela que vigorava na data em que apresentada a contabilidade, por força do princípio da anualidade eleitoral, da isonomia, do tempus regit actum, e das regras que disciplinam o conflito de leis no tempo (ED-ED-PC 96183/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJE de 18.3.2016).

Portanto, como reação à interpretação dada pelos Tribunais, o legislador, por meio de expediente nada republicano, moral e ético, aprova regramento anistiando todas doações advindas de servidores demissíveis ad nutum filiados, atribuindo eficácia imediata nos processos de prestação de contas e de criação dos órgãos partidários em andamento, a partir de sua publicação, ainda que julgados (art. 3º da Lei n. 13.831/19).

De outra banda, a palavra anistia é derivada do grego amnestía, que significa esquecimento. Na atualidade, anistiar significa um esquecimento das infrações cometidas, isto é, como se as condutas ilícitas nunca tivessem sido praticadas.

Desde a Grécia, vem sendo implementada a anistia como medida geral de clemência, benevolência, posteriormente a acontecimentos ocorridos por lutas, conflitos, provocados por motivos e circunstâncias de caráter político.

Tem por fundamento razões de ordem pública e não pode ser utilizada como favorecimento egoístico ou em causa própria, pressupõe a ocorrência de fatos que foram punidos mas, por motivos de conveniência, são esquecidos, com o objetivo do restabelecimento da tranquilidade do Estado.

Rui Barbosa ensina que vem sendo aplicada desde Solon, 594 anos antes da era cristã, sendo instituto de ampla incidência ao longo da história, sempre em caráter geral e imbuída de finalidade pública.

Como adverte João Barbalho, a anistia não se inspira só nos sentimentos de humanidade e clemência, mas não menos ou principalmente no bem do Estado, em ponderosas razões de ordem pública.

Na espécie, quando o legislador refere que a anistia deve incidir inclusive em relação aos processos em andamento, ou seja, antes da condenação, e se dirige apenas aos partidos políticos (individual), sem qualquer finalidade pública subjacente, evidente o desvio da própria natureza jurídica do tão importante instrumento de pacificação social.

Não é demais lembrar que o poder concedido ao legislador não é ilimitado e está sujeito a controle.

Lênio Streck, na sua obra Hermenêutica Jurídica em Crise, adverte para o que se pode chamar de integridade legislativa, significa dizer, o legislador igualmente há de fazer leis de modo coerente, observando uma sequência lógica e histórica.

Desse tema também se ocupou Ronald Dworkin, na sua obra O Império do Direito, no sentido de que a integridade legislativa deve ser concebida como limite de possibilidades de criação do direito pelos legisladores. Daí a assertiva de que as normas devem ser concebidas de forma a constituir um sistema único e coerente de justiça e equidade.

Nessa quadra cabe lembrar que também deve ser imposto aos legisladores a construção da história legislativa como na metáfora de Dworkin do romance em cadeia, no sentido de que cada lei criada deve representar o capítulo seguinte da mesma obra.

Por derradeiro, acrescento que há outros dispositivos nessa mesma Lei n. 13.831/19 de constitucionalidade e integridade duvidosa, como é o caso daqueles que retiram a possibilidade de a Justiça Eleitoral rejeitar contas ou aplicar penalidade às agremiações partidárias que deixaram de aplicar o percentual mínimo de recursos para o financiamento das candidaturas femininas. Entretanto, deixo de avançar no tema, pois não é objeto do presente incidente.

Em resumo, o art. 55-D, inserido na Lei dos Partidos Políticos pela Lei n. 13.831/19, padece de vício de inconstitucionalidade formal e material, na medida em que deixou de ser apresentada estimativa de impacto orçamentário, violou os princípios da prestação de contas, da moralidade administrativa e da integridade legislativa.

Com essas considerações, entendo que merece acolhimento o incidente de inconstitucionalidade suscitado, afastando, no caso concreto, a aplicação do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, incluído pela Lei n. 13.831/19.

Ainda, a agremiação, subsidiariamente, requereu a readequação do presente feito ao art. 24 do Decreto Lei n. 4.657/42 (LINDB), para que a tese de inconstitucionalidade somente seja aplicada aos atos praticados em momento posterior à fixação do entendimento para preservação da segurança jurídica.

Dispõe o art. 24 da LINDB:

Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.

Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.

O referido dispositivo fixa a regra segundo a qual deliberações administrativas, controladoras ou judiciais não podem ser anuladas com fundamento em mudança na orientação geral adotada sobre o Direito vigente.

Dessa forma, considerando que este Tribunal sempre manteve o entendimento jurisprudencial de que, à luz dos princípios de que o tempo rege o ato, da segurança jurídica e da isonomia, as alterações legislativas posteriores não são aplicáveis ao julgamento de prestações de contas de exercícios anteriores dos partidos políticos, evidencia-se que o princípio foi devidamente observado.

Além disso, tendo em conta que nunca houve, no âmbito do Tribunal Regional do Rio Grande do Sul, fixação de tese anterior pela constitucionalidade do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, não há que se falar em revisão de entendimento judicial no tocante ao dispositivo.

Na realidade, em uma situação hipotética, tendo como premissa que o recorrente busca a aplicação retroativa de regramentos não vigentes à época do exercício financeiro de 2017, momento da perfectibilização do ato jurídico, evidencia-se ter sido aplicado rigorosamente ao feito o disposto no art. 24 da LINDB, tendo em vista que a norma indica o atendimento às orientações gerais da época dos fatos quando da revisão de entendimento judicial.

Com essas considerações, mantenho a conclusão sentencial e afasto, no caso concreto, a aplicação do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, incluído pela Lei n. 13.831/19.

Estabelecidas essas premissas e, nos termos já referidos, tratando-se de contas relativas ao exercício de 2017, quanto ao mérito, a irregularidade verificada deve ser examinada de acordo com as regras previstas na Resolução TSE n. 23.464/15, vigente ao tempo do exercício financeiro, conforme inc. III do § 3° do art. 65 da Resolução TSE n. 23.546/17.

Passo ao exame da irregularidade referente ao recebimento de recursos provenientes de fontes vedadas no montante de R$ 26.853,71.

Dispõe o art. 12, inc. IV, § 1°, da Resolução TSE n. 23.464/15, o qual regulamenta o art. 31, inc. II, da Lei n. 9.096/95, que é vedado ao partido receber, direta ou indiretamente, sob qualquer forma ou pretexto, contribuição ou auxílio pecuniário ou estimável em dinheiro, inclusive mediante publicidade de qualquer espécie, procedente de autoridades públicas, compreendidas estas como “aqueles, filiados ou não a partidos políticos, que exerçam cargos de chefia ou direção na administração pública direta ou indireta”.

Reproduzo as referidas disposições legais:

Resolução TSE n. 23.464/15:

Art. 12. É vedado aos partidos políticos e às suas fundações receber, direta ou indiretamente, sob qualquer forma ou pretexto, doação, contribuição ou auxílio pecuniário ou estimável em dinheiro, inclusive por meio de publicidade de qualquer espécie, procedente de:

(...)

IV – autoridades públicas.

§ 1º Consideram-se como autoridades públicas, para os fins do inciso IV do caput deste artigo, aqueles, filiados ou não a partidos políticos, que exerçam cargos de chefia ou direção na administração pública direta ou indireta.

Lei n. 9.096/95:

Art. 31. É vedado ao partido receber, direta ou indiretamente, sob qualquer forma ou pretexto, contribuição ou auxílio pecuniário ou estimável em dinheiro, inclusive através de publicidade de qualquer espécie, procedente de:

(...)

II – autoridade ou órgãos públicos, ressalvadas as dotações referidas no art. 38;

No caso em tela, verifico ter sido suficientemente demonstrado que os contribuintes e doadores listados pelo órgão técnico no documento ID 5854533 inserem-se no conceito de “autoridade pública” previsto no regramento supracitado.

Quanto à devolução de parte do valor arrecadado a título de fonte vedada, feita pela agremiação aos doadores originários, na quantia de R$ 16.480,53, importa transcrever a manifestação da unidade técnica (ID 5854733, fls. 5-6 do PDF):

No Exame da Prestação de Contas (fls. 241/247v.) foi apontado o valor de R$ 26.853,71 como proveniente de fontes vedadas, dos quais R$ 16.480,33 foram devolvidos, fora de prazo, aos doadores originários.

(...)

Dessa forma, considerando a existência de recursos provenientes de fontes vedadas no valor total de R$ 26.853,71, correspondente à 39,90% dos recursos financeiros arrecadados em 2017, mantenho a recomendação pela desaprovação das contas, com base na previsão do art. 14, § 3º, da Resolução TSE n. 23.464/2015, que define como irregularidade grave o não recolhimento dos recursos provenientes de fontes vedadas ao Tesouro Nacional no prazo legal. Por fim, ressalto que, por ocasião do julgamento, será necessária a apreciação jurisdicional acerca da pertinência das devoluções de contribuições procedidas pelo Partido aos seus filiados fora do prazo legal, no montante de R$ 16.480,53 (dezasseis mil quatrocentos e oitenta reais e cinquenta e três centavos), cujos nomes dos doadores, datas e respectivos valores encontram-se relacionados no relatório de fls. 246/247v. […]. (ID 5854733, fls. 5 e 6 do PDF)

Conforme referido na manifestação, o partido efetuou a devolução de parte do valor arrecadado irregularmente aos doadores originários fora do prazo estabelecido no art. 11, § 5º, da Resolução TSE n. 23.464/15, qual seja, último dia do mês subsequente ao da doação irregular.

Tendo em vista que a imposição de restituição do valor indevidamente recebido ao Tesouro Nacional é mera consequência jurídica relacionada à vedação do enriquecimento ilícito, não possuindo natureza de penalidade, o adimplemento do débito deve ser considerado para eventual cobrança do valor. Nesse sentido, incabível o recolhimento ao Tesouro Nacional do valor devolvido aos doadores originários.

Portanto, considerando que as razões recursais não são suficientes para infirmar a conclusão de que são provenientes de fonte vedada as doações e contribuições realizadas por autoridades ao partido político, impõe-se ao recorrente o dever de recolhimento do valor remanescente de R$ 10.373,18 ao Tesouro Nacional, nos termos do art. 14, § 1º, da Resolução TSE n. 23.464/15:

Art. 14. O recebimento direto ou indireto dos recursos previstos no art. 13 desta resolução sujeita o órgão partidário a recolher o montante ao Tesouro Nacional, por meio de Guia de Recolhimento da União (GRU), até o último dia útil do mês subsequente à efetivação do crédito em qualquer das contas bancárias de que trata o art. 6º desta resolução, sendo vedada a devolução ao doador originário.

§ 1º O disposto no caput deste artigo também se aplica aos recursos provenientes de fontes vedadas que não tenham sido estornados no prazo previsto no § 5º do art. 11, os quais devem, nesta hipótese, ser recolhidos ao Tesouro Nacional.

Contudo, diferentemente do que considerou o magistrado a quo, o fato de não ter sido observado o prazo estabelecido no art. 11, § 5º, da Resolução TSE n. 23.464/15 para a devolução da quantia R$ 16.480,53 não afasta a irregularidade no curso do exercício financeiro objeto do exame. Sendo assim, para o cálculo do percentual, referência para a estipulação proporcional das penalidades, deve ser considerada a quantia integral recebida de fonte vedada (R$ 26.853,71), e não o valor remanescente a ser recolhido ao Tesouro Nacional (R$ 10.373,18).

Desse modo, diante do exposto, deve ser mantida a sentença de desaprovação das contas, consoante o disposto na al. “a” do inc. III do art. 46 da Resolução TSE n. 23.464/15, pois o total das falhas importa em R$ 26.853,71, representando 39,90% dos recursos recebidos (R$ 67.294,30), evidenciando que o conjunto de irregularidades guarda grande relevância em relação ao total das arrecadações auferidas no exercício, sendo a medida proporcional e razoável ao caso em tela.

Cumpre referir que a readequação do percentual de irregularidades para 39,9% não implica reformatio in pejus, pois tanto os 15,41% considerados na sentença a quo quanto a percentagem atual levam à desaprovação das contas e não importam piora na situação jurídica do recorrente.

Em relação às sanções estipuladas na sentença de 10% de multa sobre o valor a ser recolhido (R$ 10.373,18), nos termos do art. 49 da Resolução TSE n. 23.464/15, e de suspensão de novas quotas do Fundo Partidário pelo prazo de 4 (quatro) meses, nos termos do art. 47, inc. I, da Resolução do TSE n. 23.464/15, observo que o percentual fixado para a multa e o prazo estabelecido para a suspensão do Fundo Partidário estão adequados às irregularidades verificadas no caso concreto, mostrando que as penalidades foram aplicadas de forma razoável e proporcional.

Ante o exposto, rejeito a matéria preliminar e, no mérito, VOTO pela declaração da inconstitucionalidade do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, incluído pela Lei n. 13.831/19, mantendo o afastamento da sua aplicação ao caso concreto, e pelo desprovimento do recurso.