REl - 0600966-32.2020.6.21.0029 - Voto Relator(a) - Sessão: 18/12/2020 às 14:00

VOTO

O recurso é regular, tempestivo, e comporta conhecimento.

O recorrente suscita preliminar de cerceamento de defesa, pois indeferida a juntada de áudio e oitiva de testemunha arrolada na defesa.

Sem razão.

A controvérsia posta nos autos cinge-se a verificar se a doação do salário de vereador para o enfrentamento da Covid-19 pode ser caracterizada como conduta vedada a agente público. A causa de pedir remota (doação do salário) é incontroversa, o que reforça o acerto da decisão de indeferir a produção de provas (ID 11910933):

Vistos etc.

A parte autora não arrolou testemunhas. Já o demandado arrolou tão-somente uma testemunha, todavia sem apontar a necessidade.

Ademais, o único fato em debate não é negado pelo demandado, precisamente a doação do salário.

Assim, com o fato demonstrado, somente cabe o confronto desse fato frente a legislação pertinente, ou seja, apurar se houve ou não o suposto abuso do poder político/autoridade.

Dispenso, assim, qualquer prova em audiência já que matéria de direito e fato comprovado documentalmente.

Declaro encerrada a instrução e abro às partes e Ministério Público o prazo comum de (2) dias para alegações finais. (Grifo nosso)

 

Rejeito a preliminar, mantendo o indeferimento da prova testemunhal e da juntada da gravação da tribuna.

No mérito, cuida-se de examinar se a doação do salário de vereador do mês de abril de 2020 para o Hospital e a Secretaria da Saúde do Município de Progresso pode ser caracterizada como ilícito eleitoral.

O fato descrito na inicial remete a vários dispositivos legais da legislação eleitoral.

O Código Eleitoral, no seu art. 243, inc. V, proíbe a realização de propaganda que contenha oferecimento de promessa em dinheiro:

Art. 243. Não será tolerada propaganda:

V - que implique em oferecimento, promessa ou solicitação de dinheiro, dádiva, rifa, sorteio ou vantagem de qualquer natureza;

 

Ainda, no art. 299 do mesmo Código, há previsão de ilícito criminal no oferecimento de dinheiro para obter o voto:

Art. 299. Dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva, ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não seja aceita:

Pena - reclusão até quatro anos e pagamento de cinco a quinze dias-multa.

 

Na Lei das Eleições, art. 41-A, é descrito o ilícito cível da compra de votos, o candidato oferecer bem ou vantagem para obter o sufrágio do eleitor:

Art. 41-A. Ressalvado o disposto no art. 26 e seus incisos, constitui captação de sufrágio, vedada por esta Lei, o candidato doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive, sob pena de multa de mil a cinqüenta mil Ufir, e cassação do registro ou do diploma, observado o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990.

 

Já na Lei Complementar n. 64/90, o art. 22, inc. XVI, com o objetivo de resguardar a legitimidade e a normalidade das eleições, princípio constitucional previsto no § 9º do art. 14 da CF, estabelece as hipóteses de abuso do poder econômico e político, cujo reconhecimento não prescinde da demonstração da gravidade das circunstâncias que o caracterizam:

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito:

[…]

XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam.

 

A causa de pedir remota igualmente remete ao tema das condutas vedadas previstas no art. 73 da Lei n. 9.504/97, que possuem a finalidade de evitar que a máquina pública seja utilizada como forma de ludibriar os eleitores em benefício de determinado candidato, de modo a violar os princípios previstos no art. 37, caput, da Constituição - legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência.

Tutela-se, também, a igualdade de chances entre os candidatos para, em prestígio ao princípio da isonomia, impedir ou, ao menos, dificultar a promoção de desvantagens à custa do desvio da finalidade de bens ou serviços públicos.

Relativamente à conduta vedada prevista no art. 73, inc. IV, c/c o § 10, ambos da Lei n. 9.504/97, assim dispõem os aludidos dispositivos:

Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:

[...]

IV - fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo Poder Público;

[…]

§ 10. No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa.

 

Da interpretação conjugada dos dispositivos depreende-se que, enquanto o inc. IV do art. 73 da Lei n. 9.504/97 proíbe o uso promocional de distribuição gratuita de bens, o § 10 do mesmo art. 73 veda, no ano da eleição, a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceção feita às hipóteses de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa. Quanto ao inc. IV do art. 73 da Lei da Eleições, a intenção é de reprimir o uso eleitoreiro que se faça da distribuição gratuita de bens.

Para a caracterização da conduta tipificada, é preciso que os bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo Poder Público sejam distribuídos de forma a beneficiar partidos políticos ou candidatos, mediante sua utilização promocional. É dizer, há, nesses casos, um desvio de finalidade na distribuição de bens e serviços, que passam a ser utilizados com interesse eleitoreiro.

Sobre a configuração da conduta vedada, os seguintes julgados:

AGRAVOS INTERNOS. RECURSOS ORDINÁRIOS. ELEIÇÕES 2018. DEPUTADOS ESTADUAIS. REPRESENTAÇÕES. CONDUTA VEDADA. ART. 73, IV, DA LEI 9.504/97. USO PROMOCIONAL. DISTRIBUIÇÃO. BENS E SERVIÇOS DE CARÁTER SOCIAL. NÃO ENQUADRAMENTO. HIPÓTESE DOS AUTOS. CONVÊNIO. ENTES FEDERATIVOS. VIATURAS POLICIAIS. REQUISITOS. NÃO ATENDIMENTO. MANUTENÇÃO. IMPROCEDÊNCIA. NEGATIVA DE PROVIMENTO.

1. No decisum monocrático, de relatoria do e. Ministro Jorge Mussi, mantiveram–se arestos do TRE/RN de improcedência dos pedidos em 17 representações propostas contra os agravados (12 Deputados Estaduais reeleitos em 2018 pelo Rio Grande do Norte e cinco candidatos que alcançaram a suplência), assentando–se que não se configurou a conduta vedada do art. 73, IV, da Lei 9.504/97.

2. Conforme o referido dispositivo, é vedado aos agentes públicos "fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo poder público".

3. A teor da jurisprudência desta Corte, a teleologia da norma é coibir o uso promocional – em favor dos atores políticos do processo eleitoral – de graciosa distribuição, diretamente a eleitores, de bens e serviços de caráter assistencialista.

4. As disposições legais que regulamentam a prática de condutas vedadas não podem ser objeto de interpretação ampliativa. Precedentes.

5. Na espécie, o convênio no qual a Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Norte doou 50 viaturas ao Governo do Estado, para uso pelas Secretarias de Estado da Justiça e da Cidadania e da Segurança Pública e da Defesa Social, não se amolda ao conceito de entrega de bens ou de serviços de cunho assistencialista a eleitores.

6. "Não existe a conduta vedada prevista no inciso IV do art. 73 quando o Estado doa um bem – como uma ambulância ou um carro de bombeiros – a um município, para ser utilizado pela coletividade", conforme se extrai do AgR–RO 1595–35/PR, Rel. Min. Rosa Weber, DJE de 26/2/2019.

7. Os precedentes citados nas razões do agravo são inaplicáveis por ausência de similitude fática, pois envolvem a hipótese de distribuição direta a eleitores associada ao uso promocional.

8. A improcedência dos pedidos no caso não vincula a apuração dos fatos sob a ótica de eventual abuso de poder político (art. 22 da LC 64/90), objeto de Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) pendente de julgamento no âmbito do TRE/RN.

9. Agravos internos a que se nega provimento.

(Recurso Ordinário n. 060137593, Acórdão, Relator Min. Luis Felipe Salomão, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 90, Data: 11.5.2020.)

 

ELEIÇÕES 2016. RECURSO ESPECIAL. REPRESENTAÇÃO POR CONDUTA VEDADA. ART. 73, INCISO IV DA LEI 9.504/97. ALEGADO USO PROMOCIONAL DE SERVIÇO DE CARÁTER SOCIAL POR SE TER DIVULGADO NO FACEBOOK PARTICIPAÇÃO EM AULA INAUGURAL DE CURSINHO SUBVENCIONADO PELO PODER PÚBLICO. NÃO CONFIGURAÇÃO. REENQUADRAMENTO JURÍDICO DOS FATOS DELINEADOS NO ACÓRDÃO. INEXISTÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE QUE TENHA HAVIDO DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE BENS E SERVIÇOS DE CARÁTER SOCIAL. NÃO CONFIGURAÇÃO, PELOS ELEMENTOS PROBATÓRIOS DESCRITOS NO ACÓRDÃO REGIONAL, DA PRÁTICA DO ILÍCITO ELEITORAL COGITADO. RECURSO ESPECIAL DE MARCUS TESSEROLLI E OUTRO AO QUAL SE DÁ PROVIMENTO PARA JULGAR IMPROCEDENTE A REPRESENTAÇÃO.

1. Tem-se, como alegação central, que foi divulgada na página do Facebook do então Prefeito, candidato à reeleição em 2016, sua participação em aula inaugural de cursinho pré-vestibular subvencionado pela Prefeitura, mas sem se ter demonstrado a ocorrência de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social. A jurisprudência deste Tribunal Superior exige o uso promocional de efetiva distribuição de bens e serviços custeados pelo Poder Público, (...) não cabendo ao intérprete supor que o Legislador dissera menos do que queria (REspe 857-38/GO, Rel. Min. GILMAR MENDES, DJe de 22.10.2015).

2. Considerando-se a moldura fática delineada no acórdão do egrégio TRE do Paraná, é possível a revaloração jurídica do que nele consignado, sem que isso importe em reexame da prova produzida no processo.

3. O mero ato de divulgar a participação em aula inaugural de cursinho pré-vestibular subvencionado pela Prefeitura, já implantado desde 2009, sem que tenha havido a efetiva distribuição de bens ou serviços, não encontra adequação típica à norma descrita no inciso IV do art. 73 da Lei 9.504/97 nem se confunde com a prática de atos tendentes a afetar a isonomia entre os candidatos, nos termos do que dispõe o art. 73 da Lei das Eleições (Lei 9.504/97).

4. Inexistem, neste caso, elementos probatórios que deem suporte à procedência da Representação pela conduta vedada pelo art. 73 da Lei das Eleições, que tem por consequência as severas penas previstas nos §§ 4º e 5º do mencionado artigo.

5. Dá-se provimento ao Recurso Especial para julgar improcedente o pedido formulado na Representação, tornando sem efeito as multas aplicadas.

(Recurso Especial Eleitoral n. 25651, Acórdão, Relator Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 209, Data: 27.10.2017, p. 76.)

 

Por último, o § 7º do art. 73 da Lei n. 9.504/97 é expresso no sentido de que as condutas enumeradas no caput podem, ainda, caracterizar os atos de improbidade administrativa a que se refere o art. 11, inc. I, da Lei n. 8.429, de 2 de junho de 1992, e sujeitam-se às disposições daquele diploma legal, em especial às cominações do art. 12, inc. III.

Em resumo, a hipótese fática pode ser analisada sob o ponto de vista de propaganda eleitoral irregular, captação ilícita de sufrágio (cível e criminal), conduta vedada, abuso do poder econômico e/ou político e, ainda, na Justiça Comum, como ato de improbidade administrativa. Tudo a depender dos contornos do caso concreto, de suas circunstâncias objetivas.

In casu, é incontroverso que o recorrente, na condição de vereador do Município de Progresso, no dia 08 de abril de 2020, usou do espaço da Tribuna Livre por 53 segundos (ID 11909983) para divulgar que, preocupado com a luta contra o Coronavírus, de livre e espontânea vontade, atendendo a pedido do Sr. Guilherme, enfermeiro do hospital do município, e da Secretária da Saúde, doaria o seu salário do mês de abril como vereador para o combate à pandemia da Covid-19. Também é incontroverso que o fato foi comentado por terceiros na rede social Facebook (ID 11909883).

Equivale dizer, o recorrente não utilizou esse fato na sua propaganda eleitoral como candidato à reeleição ao cargo de vereador, não ofereceu seu salário em troca de voto do eleitor, não realizou ato promocional quando da efetivação da doação e, o mais relevante, o bem doado não era pertencente à Administração Pública, pois proveniente de seu trabalho como parlamentar. Ademais, o ato ocorreu em abril de 2020, em data muito distante do período eleitoral, e a destinação do valor doado de R$ 3.000,00 ocorreu em benefício de um hospital (R$ 1.500,00), e a quantia de R$ 1.500,00 foi destinada à compra de máscaras, álcool em gel, luvas e álcool líquido (EPI em geral) para a Secretaria da Saúde do Município, tudo para o enfrentamento da Covid-19, pandemia que tem exigido de toda a humanidade esforços e ações jamais experimentadas (isolamento social, trabalho remoto, uso de máscaras, luvas, álcool gel e tantas outras).

Contudo, nesse cenário pandêmico e caótico vivido em todo o mundo, atitudes como a do ora recorrente fazem com que se possa ter esperança na solidariedade e no ser humano e, quiçá, em um futuro melhor para todos nós.

Diante dessas considerações, tenho que a doação realizada por Márcio José Grober, muito além de não ser ilícita, deve servir de exemplo para toda a sociedade, especialmente nos dias difíceis vivenciados.

Nesses termos também o parecer da douta Procuradoria Eleitoral (ID 12440283):

Ocorre que a doação por um vereador do seu salário a alguma entidade beneficente, órgão público ou a um hospital, como é o caso, não se caracteriza como ato assistencial realizado pelo Poder Público. Isso porque, no momento em que o Vereador recebe o seu salário, este passa a integrar o seu patrimônio privado e ele pode fazer com a sua remuneração o que bem lhe entender.

Portanto, não há como enquadrar a conduta do representado no inc. IV do art. 73 da Lei das Eleições, como fez o magistrado sentenciante.

Poder-se-ia, eventualmente, cogitar de violação ao inc. II do art. 73 da LE, que proíbe o uso de materiais e serviços custeados pelas Casas Legislativas que excedam as prerrogativas consignadas nos regimentos e normas da casa.

Porém, o pronunciamento na tribuna por parte dos vereadores está inserido dentre suas prerrogativas, sendo que a declaração feita pelo representado certamente interessava àqueles que o elegeram e pagam sua remuneração. Ainda que da mesma possa ser extraído benefício eleitoral futuro, a informação trazida na tribuna pelo Vereador quanto ao destino que seria dado a sua remuneração se enquadra também como uma forma de “prestação de contas” aos seu eleitores e aos contribuintes do município, portanto a declaração realizada decorre do legítimo exercício do mandato.

Assim, o recorrente não incorreu em qualquer conduta vedada, razão pela qual merece reforma a sentença neste ponto.

 

Por derradeiro, cumpre examinar o pedido de condenação da recorrida nas penas de litigância de má-fé, pois veiculada informação inverídica na exordial.

Como muito bem mencionado pela douta Procuradoria Eleitoral, o fato descrito na inicial realmente ocorreu, tanto que não contraditado pela defesa. Além disso, como analisado ao início do presente voto, a depender das circunstâncias que envolvem a doação, poderia caracterizar ilícito eleitoral, tanto que há diversos tipos normativos que envolvem a distribuição gratuita de bens.

Assim, não é possível enquadrar a demandante, ora recorrida, como litigante de má-fé.

Dessa forma, impõe-se o acolhimento parcial do recurso, tão somente para reconhecer a licitude da doação efetuada pelo recorrente, não sendo provido no ponto em que postula o reconhecimento da má-fé da recorrida.

ANTE O EXPOSTO, VOTO pelo parcial provimento do recurso, ao efeito de julgar improcedente a ação, absolvendo o recorrente da condenação imposta na sentença.