REl - 0600202-29.2020.6.21.0067 - Voto Relator(a) - Sessão: 06/11/2020 às 14:00

 VOTO

O recurso é tempestivo, pois interposto dentro do tríduo previsto no art. 8º da Lei Complementar n. 64/90 e, presentes os demais pressupostos de admissibilidade, está a merecer conhecimento.

Trata-se de recurso interposto por BRAULIO SADI ROTHER contra sentença do Juízo Eleitoral da 67ª Zona Eleitoral, sediada em Encantado, que não recebeu a impugnação ao registro de candidatura (AIRC), por ele ofertada, e deferiu o registro de candidatura de AMILTON FONTANA, para concorrer ao cargo de Prefeito no Município de ROCA SALES.

Na hipótese dos autos, a controvérsia limita-se à seguinte questão: o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora prevista no art. 14 da Lei n. 10.826/03 insere-se em alguma das hipóteses de inelegibilidade da al. “e” do inc. I do art. 1º da LC n. 64/90?

Penso que andou bem a sentença, como aliás apontado pelo parecer do d. Procurador Regional Eleitoral.

É incontroversa a condenação do recorrido pelo delito de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido (processo n. 70069073955), com trânsito em julgado em 17.11.2017 e baixa da condenação pelo cumprimento em 02.3.2018. Ocorreu o devido cumprimento da pena.

Entretanto, o recorrente sustenta que os bens jurídicos tutelados pela norma seriam a saúde pública e a vida, daí porque inelegível o candidato, por força do que dispõe o art. 1º, inc. I, al. “e”, 3 e 9, da LC n. 64/90:

Art. 1º. São inelegíveis:

I - para qualquer cargo:

e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes:

(…)

3. contra o meio ambiente e a saúde pública;

(…)

9. contra a vida e a dignidade sexual;

(...)

Sem razão. O bem jurídico protegido pela norma incriminadora do delito de porte ilegal de arma de fogo é a incolumidade pública, ausente do rol daqueles crimes que causam inelegibilidades.

Note-se, nessa linha, os precedentes dos tribunais que, considerando o delito sob análise como crime de mera conduta e perigo abstrato, concluem que há relação com a incolumidade:

PENAL. HABEAS CORPUS. ESTATUTO DO DESARMAMENTO. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO (ART. 14 DA LEI Nº 10.826/2003). TIPO NÃO ABRANGIDO PELA ATIPICIDADE TEMPORÁRIA PREVISTA NOS ARTIGOS 30 E 32 DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO. VACATIO LEGIS ESPECIAL OU ABOLITIO CRIMINIS TEMPORÁRIA RESTRITA À POSSE DE ARMA DE FOGO NO INTERIOR DE RESIDÊNCIA OU LOCAL DE TRABALHO. ARMA DESMUNICIADA. TIPICIDADE. CRIME DE MERA CONDUTA OU PERIGO ABSTRATO. TUTELA DA SEGURANÇA PÚBLICA E DA PAZ SOCIAL. ORDEM DENEGADA. 1. A atipicidade temporária ou vacatio legis especial prevista nos artigos 30 e 32 da Lei nº 10.826/2003 restringe-se à posse de arma de fogo no interior de residência ou local de trabalho, não se aplicando ao crime de porte ilegal de arma de fogo (art. 14 da mesma Lei). Precedentes: HC 96383/MG, rel. Min. Dias Toffoli, 1ª Turma, Dje de 15/4/2010; HC 93188/RS, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 1ªTurma, DJ de 5/3/009; HC 94213/MG, rel. Min. Menezes Direito, 1ªTurma, DJ de 5/2/09; HC 88291/GO, rel. Min. Ellen Gracie, 2ªTurma, DJ de 21/8/2008. 2. In casu, a denúncia formalizada contra o paciente narra que este detinha e transportava a arma em via pública, mais precisamente no interior de veículo automotor, tratando-se, portanto, de conduta em tese tipificada como porte ilegal de arma de fogo (art. 14 da Lei nº 10.826/2003), e não como posse, que se limita ao interior da residência ou do local de trabalho. 3. A conduta de portar arma de fogo desmuniciada sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar configura o delito de porte ilegal previsto no art. 14 da Lei nº 10.826/2003, crime de mera conduta e de perigo abstrato. 4. Deveras, o delito de porte ilegal de arma de fogo tutela a segurança pública e a paz social, e não a incolumidade física, sendo irrelevante o fato de o armamento estar municiado ou não. Tanto é assim que a lei tipifica até mesmo o porte da munição, isoladamente. Precedentes: HC 104206/RS, rel. Min. Cármen Lúcia, 1ª Turma, DJ de 26/8/2010; HC 96072/RJ, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, Dje de 8/4/2010; RHC 91553/DF, rel. Min. Carlos Britto, 1ª Turma, DJe de 20/8/2009. 5. Parecer do Ministério Público Federal pela denegação da ordem. 6. Ordem denegada, cassada a liminar para que o processo retome o seu trâmite regular.

(HC 88757, Relator: Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 06.9.2011, DJe-180 DIVULG 19.9.2011 PUBLIC 20.9.2011 EMENT VOL-02590-02 PP-00200.)

Elucidando a questão, transcrevo jurisprudência do STJ e do STF colacionada pelo douto Procurador Eleitoral:

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ART. 14 DA LEI N.10.826/2003. TRÊS MUNIÇÕES DESACOMPANHADAS DE ARMAMENTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INCIDÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.

1. O porte ilegal de munição de arma de fogo de uso permitido, ainda que desacompanhado do armamento, configura o crime do art. 14 da Lei n. 10.826/2003, delito de perigo abstrato que presume a ocorrência de risco à segurança pública e prescinde de resultado naturalístico à integridade de outrem para ficar caracterizado.

2. Este Superior Tribunal de Justiça passou a reconhecer o princípio da insignificância em situações excepcionais, de posse de ínfima quantidade de munições e ausência do artefato capaz de dispará-las, aliadas a elementos acidentais da ação que evidenciem a total inexistência de perigo à incolumidade pública.

3. Embora possível, a aplicação do princípio em apreço "não pode levar à situação de proteção deficiente ao bem jurídico tutelado. Portanto, não se deve abrir muito o espectro de sua incidência, que deve se dar apenas quando efetivamente mínima a quantidade de munição apreendida, em conjunto com as circunstâncias do caso concreto, a denotar a inexpressividade da lesão" (HC n. 458.189/MS, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª T., DJe 28/9/2018).

4. No caso, diante da ínfima quantidade de munição apreendida (três munições calibres 32 e 40) e da ausência de arma de fogo em poder do acusado, bem como pelo fato de ostentar bons antecedentes e não apresentar nenhum outro sinal de periculosidade, imperiosa a absolvição com fulcro no princípio da insignificância.

5. Agravo regimental não provido.

(AgRg no AREsp 1628263/SC, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 30.6.2020, DJe 04.8.2020.)

HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL DE MUNIÇÃO DE USO PERMITIDO. CRIME DE PERIGO ABSTRATO. 12 MUNIÇÕES CALIBRE.12 INTACTAS. 61 ESTOJOS CALIBRE.38 DEFLAGRADOS. ELEVADA QUANTIDADE. ATIPICIDADE MATERIAL DA CONDUTA NÃO EVIDENCIADA. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INVIABILIDADE. REPROVABILIDADE DA CONDUTA. HABEAS CORPUS DENEGADO. 1. O Supremo Tribunal Federal passou a admitir a aplicabilidade do princípio da insignificância a casos em que a mínima quantidade de munição apreendida, somada à ausência de artefato apto ao disparo, denota a inexistência de riscos à incolumidade pública, não se mostrando a conduta típica, portanto, em sua dimensão material, observadas as peculiaridades do caso concreto. Precedentes.

2. No caso, os policiais localizaram, no interior do veículo do paciente, 12 munições calibre.12 intactas e 61 estojos calibre .38 deflagrados, de modo que a quantidade de munições encontradas evidencia a efetiva lesividade ao bem jurídico tutelado pelo tipo penal em apreço - a incolumidade pública, a impossibilitar o reconhecimento do princípio da insignificância do crime previsto no art. 14 da Lei n. 10.826/2003.

3. Habeas corpus denegado.

(HC 587.430/SC, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 04.8.2020, DJe 22.9.2020.)

E, especificamente acerca da incidência de inelegibilidade no caso do delito em tela, esse Egrégio TRE-RS já teve ocasião de se manifestar:

Recurso. Registro de candidatura. Eleições 2012. Candidato a vereador. Deferimento do pedido no juízo originário, porquanto afastada a incidência da causa de inelegibilidade prevista no art. 1º, inc. I, alínea g, da Lei Complementar n. 64/90. Ainda que comprovada a condenação com trânsito em julgado, não houve no caso concreto, irregularidade insanável que configurasse ato doloso de improbidade administrativa. Circunstância que afasta a perfectibilização dos requisitos para a configuração do dispositivo mencionado. Não caracterizada, igualmente, a alegada causa de inelegibilidade do art. 1º, inc. I, letra e, nº 3, da Lei Complementar nº 64/90, haja vista que o delito de porte ilegal de arma de fogo não se enquadra nos crimes contra a saúde pública. Provimento negado.

Dessa forma, porque a norma é restritiva de direitos, não comportando interpretação extensiva, não há como incluir no rol taxativo da letra “e” do inc. I do art. 1º da LC n. 64/90 delitos cujo bem jurídico tutelado não estão ali contidos.

Diante do exposto, VOTO pelo desprovimento.