REl - 0600032-66.2020.6.21.0161 - Voto Relator(a) - Sessão: 22/10/2020 às 14:00

Senhor Presidente;

Eminente Pares;

Culto Procurador Eleitoral,

Dr. Rogerio Vargas, em cuja pessoa saúdo o corpo funcional da casa;

Minha respeitosa saudação as partes deste processo;

Aos Prezados Advogados, Drs. Caetano Lo Pumo e Dr. Lucas Lazzari, que agiram com extremo zelo na defesa de seus clientes;

Senhoras e Senhores que nos assistem nesta audiência.

 

Penso, inicialmente, que, em nosso ordenamento jurídico predomina o princípio da liberdade dos atos de campanha eleitoral, que, a um só tempo, encontra amparo tanto no princípio da liberdade de expressão quanto no próprio direito político de ius honorum (de ser votado).

Bem por isso é que o exercício pleno da capacidade eleitoral passiva passa pela possibilidade de promoção de atos de campanha, inclusive a arrecadação e dispêndio de recursos, bem como pela liberdade de difundir ideias e concepções políticas a diferentes segmentos do eleitorado.

Do outro lado da cena está o eleitor, verdadeiro protagonista do processo democrático e destinatário das ações de campanha, com amplo direito à militância e à defesa das alternativas eleitorais que considera mais adequadas, para o que deve receber as mais verdadeiras e completas informações sobre o candidato e suas circunstâncias, possibilitando a construção de suas convicções.

Nesse quadro, Eneida Desiree Salgado, em sua obra Princípios Constitucionais Eleitorais (Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 208), ao discorrer sobre a regulação da propaganda eleitoral e o uso indevido dos meios de comunicação social, aduz que “A regulação da propaganda eleitoral tem como único escopo promover a igualdade entre os candidatos e assim se legitima”.

Nessa senda, em atenção aos postulados democráticos e republicanos, na ausência de obstáculos normativos ou de condicionamentos legais para a prática político-eleitoral, ressaltando-se - sempre sujeita à fiscalização e à eventual sancionamento pela Justiça Eleitoral quando desborde dos princípios da isonomia entre os concorrentes ou agrida a legitimidade ou a normalidade do pleito -, prevalece, em princípio, a liberdade de ação.

Quanto à taxatividade das vedações em propaganda, registro a elucidativa dicção doutrinária de Frederico Franco Alvim (Curso de Direito Eleitoral. Curitiba: Juruá, 2016, p. 290):

Olivar Coneglian pontua que o princípio da legalidade da propaganda não se identifica com o princípio da legalidade dos atos públicos, de maneira que, a respeito dos modelos empregados, pode haver formas de propaganda para além daquelas previstas em lei.

(...).

Em conclusão, malgrado encontre-se minuciosamente regulamentada, a propaganda eleitoral desenrola-se em marcos bastante extensos: quanto à forma, no que não se encontre proibida, é permitida; quando ao conteúdo, no que não afete direitos alheios, também.

 

Portanto, resta claro que os atos de propaganda eleitoral e de arrecadação de recursos para a campanha somente podem ser impedidos ou restringidos com esteio em preceito legal expresso e determinado nesse sentido, sob pena de descabida interferência da Justiça Eleitoral no jogo político-eleitoral.

No caso concreto, na linha destacada nas manifestações lançadas pelo douto Procurador Regional Eleitoral e pelo ilustre Des. Federal Thompson Flores, entendo que o evento de arrecadação pretendido não guarda similitude com a figura do showmício, ou de sua equivalente virtual, o ‘livemício’, a atrair, por equivalência de forma, de finalidades e, inclusive, de possíveis consequências ao pleito, as vedações estipuladas no art. 39, § 7º, da Lei das Eleições, combinadas com o respondido na Consulta n. 0601243 23.2020.6.00.0000 pelo Egrégio Tribunal Superior Eleitoral.

Com a devida vênia ao posicionamento em contrário, tenho que a aplicação de tal vedação sobre o ato em comento resultaria em interpretação extensiva ou analógica de norma proibitiva de atos de campanha, incidindo, sob o prisma aqui exposto, sobre faculdades necessárias ao pleno exercício do direito de ser votado.

A partir do panorama descrito nos autos, depreende-se que se trata de um evento de arrecadação de recursos de campanha, na forma autorizada pelo art. 23, § 4º, da Lei n. 9.504/97, submetido a prévia fiscalização pelo Justiça Eleitoral, consoante a disciplina do art. 30 da Resolução TSE n. 23.607/19, e acessível ao público mediante pagamento razoável, com ciência do participante de que o montante alcançado será destinado a determinada candidatura.

Os eventos arrecadatórios como o mencionado vão ao encontro das excepcionais condições sanitárias havidas da pandemia do Covid-19, bem como fomentam a maior participação das pessoas físicas como doadoras de recursos às campanhas, em alternativa ao financiamento público e às vedadas contribuições de pessoas jurídicas.

Sobre a importância do financiamento de campanhas na experiência democrática, retomo os ensinamentos de José Jairo Gomes (Direito Eleitoral. São Paulo: Atlas, 2018, p. 378):

Os candidatos e partidos políticos necessitam de recursos para se divulgarem e se aproximarem do eleitorado, exporem suas ideias e projetos, de maneira a captarem os votos necessários para vencerem o pleito e ascenderem aos postos político-estatais. Para tanto, é essencial que tenham acesso a dinheiro e canais de financiamento. É impensável a realização de campanha eleitoral sem dispêndio de recursos, ainda que pouco vultosos.

(…).

É de fundamental importância haver abertura e transparência quanto à origem e ao destino dos recursos empregados no financiamento de campanhas políticas. Mas não só isso: é mister que haja estrita regulamentação, bem como severa aplicação e execução das regras legais por parte da Justiça Eleitoral.

 

Portanto, atendidos os contornos legais, não há ilicitude na realização de evento arrecadatório a partir da apresentação de notório artista, atuando por afinidade ideológica como doador de seu próprio trabalho à campanha eleitoral, nos termos facultados pelo art. 25 da Resolução TSE n. 23.607/19.

De mesmo modo, não vislumbro flagrante violação ao princípio da igualdade de oportunidades entre os candidatos, pois está garantida a possibilidade geral de realização de eventos arrecadatórios semelhantes, sem prejuízo ao sancionamento posterior caso ocorram desvirtuamentos, como abuso de poder, tramitação ilícita de recursos ou quebra da isonomia, tudo a ser apurado "se" e 'quando" concretamente realizado, ou seja, na perspectiva da eventualidade.

Nesse tocante, tenho que não há necessária desigualdade de oportunidades com a adesão de determinado artista de renome ou capaz de atrair grande pública a um candidato porque os possíveis adversários poderiam não contar com este tipo de relacionamento ou apoio em seus projetos de divulgação e arrecadação.

A rigor, não se pode confundir o princípio da igualdade de oportunidades com a mera equiparação entre os candidatos. Como se sabe, os concorrentes ao pleito são diversos em seus aspectos pessoais, profissionais, fortunas de vidas, redes de relacionamentos e projetos. E isso confere qualidade do pluralismo democrático, apresentando à opção do eleitor múltiplas personificações de projetos por meio de diversos expedientes de campanha a ela relacionados, não configurando, com isso, rompimento da isonomia.

Entendo, portanto, que a isonomia está realizada desde que a possibilidade arrecadatória esteja acessível aos demais candidatos, ainda que, concretamente, alguns dos concorrentes, por razões particulares, não logrem realizá-la com o mesmo sucesso dos demais.

Na linha exposta, trago a doutrina de Aline Osório (Direito Eleitoral e Liberdade de Expressão. Editora Fórum, p. 152-153) sobre o princípio da isonomia na seara eleitoral:

Vale ressaltar, porém, que a igualdade material não pode ser confundida com uniformização. Diversas desigualdades (ou atributos) funcionam como critério legítimo de diferenciação, seja entre os candidatos (articulação, oratória, inteligência, reputação e trajetória política), seja entre os partidos (sua história, seus programas e o apoio popular conquistado). A figura do jogador importa. Isso vale tanto em duelos, corridas e partidas de xadrez, quanto nas eleições.

 

Se é certo, de um lado, que as regras do jogo devem prover condições materiais de igualdade, de outro lado, seria um erro pretender estratificar ou padronizar os candidatos e partidos políticos. Isso equivaleria a tolher a própria liberdade de escolha da cidadania e prejudicar a qualidade da representação. Cabe ao eleitor julgar quais atributos devem ser valorados na escolha de candidatos e partidos, devendo o Estado apenas adotar algumas precauções para que esses atributos não sejam manipulados artificialmente pelo uso indevido dos poderes econômico, político ou midiático. Como afirma Bernard Manin, a democracia não requer que os eleitores adotem standards imparciais de seleção de seus candidatos e ninguém é chamado a justificar racionalmente o seu voto.

 

De tudo, à míngua de proibição legal taxativa, não pode o Estado, a pretexto do igualitarismo, pretender limitar o engajamento político do cidadão na busca por recursos de campanha em prol de determinado candidato, ainda que se utilizando de sua reconhecida arte para tanto.

Cabe ao eleitor determinar seus próprios critérios de escolha ou empatia com o candidato, sendo legítimo que se dê por meio de eventual apoio público de artista consagrado.

Sobre o ponto, em arremate, colho, novamente, passagem do escólio de Aline Osório (Ibidem, p. 148), que a meu sentir respalda integralmente a posição adotada neste voto:

É claro que as características pessoais de cada indivíduo – como inteligência, oratória, fama, renome e até aparência - afetam a sua capacidade de convencimento na arena pública. Um posicionamento político de um aclamado artista pode ter maior impacto na opinião política do que o de um cientista político, independentemente do conteúdo e da qualidade do posicionamento. No entanto, se o Estado pretendesse equalizar a influência das pessoas no debate, ele teria que controlar os processos de reflexão e avaliação de cada cidadão, assim como as suas características, o que, além de tirânico, seria prejudicial ao debate público. Não se deve admitir, portanto, que o governo dite às pessoas como elas podem se expressar ou influenciar seus semelhantes, ainda que isso implique certa desigualdade entre os cidadãos.

 

Com essas considerações, acompanha integralmente o judicioso voto proferido pelo Des. Federal Thompson Flores, enfatizando a ressalva posta de que "o reconhecimento da licitude do evento não significa imunizá-lo quanto à apuração de abuso do poder econômico por meio de ação específica".

 

É como voto, Senhor Presidente.