REl - 0600032-66.2020.6.21.0161 - Voto Relator(a) - Sessão: 22/10/2020 às 14:00

Inicialmente, na mesma forma do voto do relator, entendo que deve ser afastada a preliminar de não conhecimento do recurso por ofensa ao princípio da dialeticidade.

A sentença consigna que “não se identifica no exame isolado do previsto nos artigos 23, § 4º, inciso V, da Lei n. 9.504/97 e 30 da Resolução TSE n. 23.607/2019 autorização para a realização do evento no formato divulgado” (ID 7556833), e as razões recursais contrapõem-se a este entendimento, sustentando a tese de que: “A promoção de eventos de arrecadação de campanha é expressamente autorizada pelo Art. 23, § 4º, inciso V da Lei 9.504/97, que prevê como modalidade de doação de recursos financeiros a ‘comercialização de bens e/ou serviços, ou promoção de eventos de arrecadação realizados diretamente pelo candidato ou pelo partido político” (ID 7557133).

Assim, havendo coerência entre o que restou decidido e as razões do inconformismo recursal, tem-se como atendido o princípio da dialeticidade, devendo ser rejeitada a preliminar.

 

Passo de plano à análise do mérito:

Conforme descrito na contestação (ID Num. 7555983 - Págs. 2 e 3):

 

“O evento de arrecadação de recursos é uma apresentação musical do artista Caetano Veloso, para o qual se pretende comercializar ingressos a preço de mercado. Os bilhetes serão comercializados pela plataforma de financiamento coletivo, devidamente registrada na justiça eleitoral. Os valores arrecadados serão contabilizados, na prestação de contas, como doações de campanha - descontado o custo da plataforma, que será contabilizado como gasto (...)

A apresentação musical foi doada pelo próprio artista, e será, por essa razão, contabilizada como doação estimável, declarada pelo preço de mercado e para a qual também será emitido recibo, com a observância das formalidades legais.” (...)

O evento foi comunicado, por precaução, com cinco dias úteis de antecedência do início da comercialização dos ingressos, ainda que o prazo exigido pelo Art. 30 da Resolução 23.607 seja apenas quanto à data do evento.”

 

Trata-se, portanto, de um evento, show musical a ser realizado pelo cantor Caetano Veloso, agendado para o dia 07 de novembro próximo, com a finalidade de arrecadar valores para as campanhas de Manuela Pinto Vieira D’Ávila, candidata à Prefeitura de Porto Alegre-RS pela Coligação Movimento Muda Porto Alegre (PCdoB e PT), e do candidato à Prefeitura de São Paulo, pelo PSOL, Guilherme Boulos.

A organização do evento, no âmbito da competência deste Tribunal, está a cargo da candidata à Prefeitura de Porto Alegre-RS Manuela Pinto Vieira D’Ávila – Coligação Movimento Muda Porto Alegre (PCdoB e PT), que tem como candidato a vice-prefeito Miguel Soldatelli Rossetto, posto que esta, na forma do art. 30, inc. I, da Resolução TSE n. 23.607, por meio de sua assessoria técnica, fez a comunicação à Justiça Eleitoral (ID Num. 7556183 - Pág. 1). Considera-se, portanto, como um evento de arrecadação campanha, que se caracteriza pela realização de um show musical.

A arrecadação do evento dar-se-á por meio da venda de ingressos, ao valor de R$ 30,00 (TRINTA REAIS), quantia esta considerada pelos representantes, ora recorridos, muito aquém do valor cobrado pelo artista em shows que normalmente faz presencialmente (com ingressos custando entre R$ 130,00 - CENTO E TRINTA REAIS - a R$ 600,00 - SEISCENTOS REAIS). A candidata promete prestar contas à Justiça Eleitoral posteriormente.

No anúncio do evento feito pela Internet, principalmente nas mídias e redes sociais Facebook e Instagram da candidata e do artista, aparece a foto do cantor junto à candidata, relacionando o evento ao apoio do cantor na arrecadação de valores para as referidas campanhas, conforme imagens que instruem a inicial.

 

A questão crucial na presente representação gira em torno ao fato de: se o tipo de evento caracteriza-se ou não como um showmício ou, na forma como apresentado, via Internet, ao seu assemelhado “livemício” (neologismo criado para designar os showmícios realizados via Internet), ou é um mero evento de arrecadação de recursos para a campanha de determinado(a) candidato(a), com a participação de um artista.

 

Passo à análise da questão:

 

Para que se possa encontrar uma aproximação do tipo de evento proposto – típico do chamado “novo normal”, como consequência da atual pandemia, que aproveita as vantagens que os atuais modelos de Tecnologia da Informação e Comunicação (TICs) oferecem, é necessário buscar algumas definições.

Como bem observado no parecer ministerial (ID Num. 7556583 - Pág. 2), e no próprio voto do eminente relator, ao citar a doutrina de RODRIGO LÓPEZ ZILIO (Direito Eleitoral, 6ª ed., Porto Alegre, Verbo Jurídico, 2018, p. 424-425):

 

a Lei n.º 11.300/2006 acrescentou o § 7º ao artigo 39 da LE, estabelecendo que ‘é proibida a realização de showmício e de evento assemelhado para promoção de candidatos, bem como a apresentação, remunerada ou não, de artistas com a finalidade de animar comício e reunião eleitoral’, destacando, ainda, que o dispositivo tenciona frear os atos de abuso de poder econômico que permeiam as campanhas eleitorais e decorre da constatação de que os comícios deixaram de ser atos de campanha eleitoral, no qual se buscava a conquista do voto do eleitor através de propostas de campanha, transformando-se em espetáculos de animação pública. Visava-se, através de mega-shows, a conquista do eleitorado pela apresentação de um espetáculo de entretenimento, com a contratação de artistas com carisma popular, deixando em plano secundário a apresentação de propostas de governo. Ao invés de projeto de administração, oferecia-se ao eleitorado um espetáculo de diversão.

 

O próprio autor, na pág. 425, cuida da definição de alguns elementos importantes ao tema em questão:

 

Show é, tecnicamente, considerado um espetáculo voltado à diversão da plateia; assim, showmício consiste em um comício animado por um espetáculo de diversão da plateia. No entanto, a proibição estende-se também para “eventos assemelhados para promoção de candidatos” e, ainda, “a apresentação, remunerada ou não, de artistas com finalidade de animar comício e reunião eleitoral”. A expressão “eventos assemelhados” indica, efetivamente, a preocupação do legislador em evitar que haja a burla da apresentação de showmícios mediante qualquer espécie de simulacro. In casu, o “evento assemelhado” ocorre sempre que a atração principal deixa de ser o candidato e passa a ser o terceiro convidado. Assim, a expressão showmícios conjugada com “eventos assemelhados” tem extensão ampla, abrangendo tanto a apresentação ao vivo de artistas, como mediante playback e, na esteira do entendimento pelo TSE, a mera reprodução de DVDs e equivalentes com shows (Consulta n.º 1.261 – Rel. Min. Asfor Rocha – j. 29.06.2006).

 

Tal entendimento parece-me perfeitamente aplicável à espécie em questão, ou seja, a ideia de que se está diante de um evento eleitoral, de promoção de campanha, no qual o protagonismo não é da candidata, mas sim de um terceiro artista que faz um espetáculo objetivando entreter a plateia, atrair público para a campanha, como forma de arrecadação e divulgação, caracterizando o evento assemelhado aos showmícios presenciais, na forma exposta.

Sem embargo, os recorrentes trazem aos autos a ideia de que o show, ou a participação do cantor, não é a intenção imediata do evento. Por isso, a candidata não estaria fazendo um evento assemelhado a um showmício mas, tão somente, um evento de arrecadação de campanha com a participação do cantor.

A participação do artista, nesse sentido, seria a moeda de troca, ou seja, um serviço que estaria sendo comercializado pela campanha da candidata, por meio de venda de ingressos e utilizando-se de plataformas específicas, a todos aqueles que se interessarem na sua aquisição, como forma de colaboração à campanha, sendo este, portanto, nas alegações, o elemento diferencial.

Essa comercialização, no entender dos recorrentes, tiraria da apresentação artística o caráter de gratuidade que, desse modo, não poderia ser fundamentada no art. 39, § 7º, da Lei das Eleições, mas, tão somente, no art. 23, § 4º, inc. V, da Lei n. 9.504/97, c/c o art. 30 da Resolução TSE n. 23.607/19.

Ocorre que o evento de arrecadação de campanha, seja com o objetivo de comercializar bens ou serviços, ou não, é um evento eleitoral, uma espécie de reunião eleitoral com um objetivo específico, qual seja, a arrecadação de recursos pelas diversas formas previstas em lei, o que, portanto, não descaracteriza a sua natureza de evento eleitoral. Como tal, não há de se afastar a aplicação do disposto nos arts. 39, § 7º, da Lei n. 9.504/97 e 17 da Resolução TSE n. 23.610/19, que vedam expressamente a participação de artistas como forma de animação, diversão e espetáculo, sendo ele o protagonista ou não.

Nesse sentido, é claro o ensinamento de José Jairo Gomes (Direito Eleitoral. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 557), ao referir-se à intenção do legislador:

 

A regra em apreço limita-se a regular a atuação artística em eventos relacionados às eleições, cuja finalidade seja a promoção de candidatura. Não proíbe que artistas (atores, cantores, animadores, apresentadores etc.) exerçam seus trabalhos durante o período eleitoral, mas apenas que o façam em eventos eleitorais, de modo que estes não sejam descaracterizados. Daí inexistir qualquer ofensa ao inciso IX do art. 5º da Lei maior, que assegura a livre expressão da atividade artística, tampouco ao inciso XIII do mesmo artigo, que afirma ser “livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão”.

 

Cumpre salientar que mesmo eventos de natureza arrecadatória trazem consigo o caráter de propaganda da campanha e dos candidatos, ainda que de forma indireta, o que levaria, mais uma vez, à aproximação da proibição de participação de artistas.

Mesmo que, em conformidade com o que foi dito pelo eminente relator, na p. 09 do seu voto, os tipos de eventos tenham naturezas distintas e sejam disciplinados em resoluções diversas, eventos eleitorais de arrecadação, como no caso dos autos, podem assumir um caráter de propaganda política, fazendo-se necessária a conjunção das normas.

O que pretendem os representados, ora recorrentes, é justamente mitigar os dois tipos de eventos, retirando do evento de arrecadação o protagonismo normal dos candidatos e transferindo-o ao artista, o que impõe seja feita a mitigação das normas que regulam um e outro, afastando, por sua vez, a alegação de uma interpretação extensiva da norma, mas sim restritiva à situação mitigada.

Assim, entendo que tanto faz se tal participação se dê em evento presencial (recentemente liberado a um limitado número de participantes pelas autoridades estaduais) ou ocorra em evento virtual, por meio das TICs, hoje tão usadas para a realização de lives, se caracterizaria, na forma do disposto na Consulta n. 0601243-23.2020.6.00.0000, formulada pelo PSOL, acerca da extensão normativa da regra posta no § 7º do art. 39 da Lei n. 9.504/97, como uma “live eleitoral” ou um “livemício”.

Aliás, na citada consulta, o TSE “respondeu negativamente ao questionamento acerca da possibilidade de realização de lives eleitorais em plataformas digitais com participação de atores, cantores e outros artistas através de shows”.

Ainda que a consulta tenha sido no sentido de questionar se “a regra do § 7º do art. 39 da Lei 9.504 permite realização de apresentação dos candidatos aos eleitores juntamente com atores, cantores e outros artistas através de shows (lives eleitorais) não remunerados e realizados em plataforma digital”, no seu parecer, o Min. Luís Felipe Salomão, manifesta:

 

6. Por fim, duas observações se fazem relevantes.

Como já enfatizado neste voto, reitero que a restrição legal recai apenas sobre as apresentações de cunho artístico que estejam associadas às eleições e aos partidos políticos e candidatos.

As manifestações unicamente artísticas, sem nenhuma relação com o pleito vindouro, permanecem válidas a toda evidência, como expressão das garantias constitucionais insculpidas nos incisos IV e IX do art. 5º da Constituição da República.

 

Entendo, portanto, que, ainda que se caracterize como um evento de arrecadação de campanha, o disposto no art. 23, § 4º, inc. V, da Lei n. 9.504/97, c/c o art. 30 da Resolução TSE n. 23.607/19 não chancela a contratação de artistas, seja remunerada ou por meio de doação de prestação de serviços artísticos, com a finalidade eleitoral pretendida pelos recorrentes, uma vez que a legislação veda a vinculação de um evento artístico à campanha eleitoral.

Não obstante, antes de encerrar meu voto, cabem algumas observações.

Por entender não ser possível a apresentação artística em evento de arrecadação, não entrarei no mérito da apreciação sobre se o valor cobrado é irrisório ou não para um show da grandeza do artista. Acredito, porém, que, tanto o artista como a candidata teriam plena liberdade de atribuir o valor à comercialização do serviço proposto, principalmente levando em consideração alguns fatores, aos quais não me aterei, mas, entre eles: a) que é uma promoção de arrecadação de recursos, e a ideia seria a doação de valores, com captação de um grande público; b) trata-se de um evento via Internet e, na própria rede, seria possível assistir shows do artista de forma gratuita; c) os custos do show certamente são bem menores, na forma pretendida; dentre outros tantos pontos.

O valor cobrado e a intenção arrecadatória não mudam a natureza do evento eleitoral por meio de apresentação de um artista, o que, para mim, é vedado pela Lei Eleitoral.

 

O acima exposto, por certo, leva ao entendimento, que aqui afirmo, de que a liberação do evento em tela milita em prejuízo à isonomia entre os candidatos(as), pois este é o norte da regra aplicada. Mesmo sendo um evento de arrecadação, a vinculação do show artístico à campanha da candidata, ainda que não tenha um fim imediato, poderá levar à captação de votos por meio da participação do artista na campanha eleitoral.

Não desconheço a existência da ADI 5970, ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores, que faz parte da Coligação da candidata (PCdoB/PT), posto que o seu candidato a vice-prefeito, Miguel Rossetto, é filiado ao PT. A aludida Ação de Inconstitucionalidade visa justamente discutir a possibilidade de participação gratuita de artistas em eventos eleitorais, não só com o propósito de animar comícios, mas, também, com o objetivo de arrecadação de recursos por meio de venda de ingressos – como o aqui tratado, cujo parecer da PGR, datado de 19.10.2018, foi pela não inconstitucionalidade.

Não se pode olvidar, também, a existência de, no mínimo, dois Projetos de Lei sobre a matéria. Um tramitando no Senado (PL n. 3571/20) e outro na Câmara dos Deputados (PL n. 3626/20), que visam, ambos, flexibilizar a restrição à contratação de artistas em eventos relacionados às campanhas eleitorais, inclusive com a possibilidade de utilização de recursos públicos (originários do FEFC) para a contratação de artistas, dentro do limite de gastos.

Por fim, diante das razões acima expostas, entendo que não há cerceamento das liberdades de expressão e de expressão artística, garantidas pela Constituição Federal nos incs. IV e IX do art. 5º, posto que o artista pode perfeitamente manifestar seu apoio às campanhas que desejar, inclusive doando o cachê de seus shows presenciais, ou apresentados por meio de lives, em benefício dos(as) candidatos(as) de sua escolha, dentro dos limites legais, como já o fez em eleições anteriores.

Assim, com todo respeito ao pensamento diverso, com a máxima vênia ao eminente relator, e considerando que a finalidade da norma prevista no art. 39, § 7º, da Lei n. 9.504/97 não é vedar apenas a apresentação de artistas famosos, televisivos, celebridades ou subcelebridades, mas todo e qualquer tipo de apresentação de artistas em geral, sejam eles circenses, bandas, cantores, cozinheiros ou artistas de rua, que possam, por meio da celebração de sua arte, atrair público e eleitores que o evento eleitoral, por si só, não seria capaz de reunir, entendo que a sentença recorrida merece ser mantida, na íntegra, por seus fundamentos.

 

Diante do exposto, afasto a matéria preliminar e, no mérito, VOTO pelo desprovimento do recurso.

Por fim, em razão da competência específica do TRE-RS, ressalto que a presente decisão alcança tão somente as partes do processo.