REl - 0600360-06.2020.6.21.0093 - Voto Relator(a) - Sessão: 19/10/2020 às 14:00

VOTO

Admissibilidade

O recurso é tempestivo, pois interposto dentro do prazo de 3 (três) dias previsto no art. 58, § 2º, da Resolução TSE n. 23.609/20.

Preliminar

O recorrente suscita preliminar de cerceamento de defesa, ao argumento de não ter sido apreciado o pedido de produção de nova prova de alfabetização por profissional da área de pedagogia, bem ainda por não lhe ter sido oportunizado o oferecimento de alegações finais, previstas no art. 43, caput, da Res. TSE nº 23.609/2019.

Adianto que as preliminares não merecem prosperar.

A uma, porque inexiste qualquer previsão legal de que a alfabetização seja aferida por profissional da área de pedagogia, bastando que seja demonstrada por certificado de conclusão de cursos escolares ou, na sua ausência, nos moldes previstos no § 5º do art. 27 da Resolução TSE n. 23.609/19, verbis:

Art. 5º A prova de alfabetização de que trata o inciso IV pode ser suprida por declaração de próprio punho preenchida pelo interessado, em ambiente individual e reservado, na presença de servidor de qualquer Cartório Eleitoral do território da circunscrição em que o candidato disputa o cargo, ainda que se trate de eleições gerais.

E foi exatamente essa a providência adotada no caso concreto, em que o candidato apresentou declaração de próprio punho (ID 7263983), a qual, entretanto, não foi considerada satisfatória pelo juízo de primeiro grau.

Além da declaração já citada, o recorrente submeteu-se a um teste de alfabetização requerido pelo Ministério Público Eleitoral e realizado sob a avaliação da Chefe de Cartório Eleitoral (ID 7264333), não havendo se falar em cerceamento de defesa.

Assim, a conversão do feito em diligência, pleiteada na contestação para a realização do teste de alfabetização do impugnado, já havia sido providenciada a pedido do Ministério Público Eleitoral (ID 7264133), inexistindo justificativa para repetir o teste.

Ademais, como bem referiu a Procuradoria Regional Eleitoral, o recurso colocado à disposição das partes para suprir eventual omissão do sentenciante é o de embargos de declaração, o qual não foi interposto, restando preclusa a matéria.

Quanto à preliminar de cerceamento de defesa por ausência de intimação do recorrente para apresentação de alegações finais, acolho, como razões de decidir, o parecer da Procuradoria Regional Eleitoral (ID 7389533), no seguinte sentido:

[…]

No caso em apreço, ainda que duvidoso, sob o aspecto técnico processual, que a diligência efetivada a requerimento do Ministério Público para aferição da alfabetização corresponda à abertura da fase probatória, nota-se que foi dada a oportunidade, ao postulante do registro de candidatura, de se manifestar acerca da referida prova, o que foi inclusive efetivado no âmbito da contestação, quando se rechaçaram as observações da servidora acerca da diligência, conforme trecho que segue (ID 7267783):

A exigência é de que o candidato fique apto para concorrer em cargo eletivo, bastando apenas que seja comprovado sua alfabetização, que consiste em saber ler e escrever. Detalhes, como aponta a Servidora Pública da Justiça Eleitoral, na página 15 do processo eletrônico, na demora da leitura e do tempo para escrita fornecido, não devem ser medidos como contraponto para atestar sua alfabetização, eis que é algo individual o tempo para compreensão para leitura e escrita. Diante disso, inobstante ao tempo que o ora peticionante utiliza para a leitura e para a compreensão dos textos que lhe são submetidos, é algo de sua esfera privada. Ademais, exigir a fluência de um professor ou professora de português de um candidato é a real expressão da não aplicação do princípio da isonomia, eis que como tal deve o mesmo buscar a equidade, que nada mais é do que tratar todos de forma equânime dentro de suas necessidades.

Assim, mesmo que não tenha sido formalmente aberta vista dos autos para alegações finais, a sua finalidade, que não é nada mais do que se manifestar sobre as provas produzidas na fase instrutória, foi alcançada pela contestação apresentada.

Com essas considerações, rejeito as preliminares.

 

Mérito

Nas suas razões recursais (ID 7265733), o recorrente sustenta ter demonstrado satisfatoriamente sua condição de alfabetizado, motivo pelo qual seu registro de candidatura deve ser deferido.

Tenho que lhe assiste razão.

A questão decorre de previsão contida na Constituição Federal que, no art. 14, § 4º, determina serem inelegíveis os analfabetos:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

§ 4º - São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos.

 

A Lei Complementar n. 64/90 reproduziu o comando constitucional, verbis:

Art. 1º São inelegíveis:

I - para qualquer cargo:

a) os inalistáveis e os analfabetos;

[...]

A Resolução TSE n. 23.609/19, que disciplina o registro de candidatura para o pleito deste ano, reza, em seu art. 27, § 5º, que o documento apto a suprir o comprovante de escolaridade é a “declaração de próprio punho preenchida pelo interessado, em ambiente individual e reservado, na presença de servidor de qualquer Cartório Eleitoral do território da circunscrição em que o candidato disputa o cargo, ainda que se trate de eleições gerais”.

Como é cediço, não há um consenso acerca do conceito de analfabetismo, uma vez que, para alguns, ser alfabetizado é ter domínio gramatical, ou seja, saber ler, escrever e interpretar o texto, ao passo que, para outros, cujo cotidiano não mantém proximidade com o mundo das letras, ser alfabetizado é saber o suficiente para o seu trabalho que, a mais das vezes, tem caráter braçal, não necessitando de grande conhecimento da língua.

Sobre o tema, Adriano Soares da Costa afirma o seguinte (Instituições de Direito Eleitoral – 6ª ed. rev. Ampl. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 162 e 163):

Há, na aplicação do signo, em casos concretos, a necessidade de ponderações e temperanças com vista à finalidade da sua exigência: a obtenção do direito de ser votado. Por isso, necessário levar em consideração alguns aspectos importantes: (a) toda análise dos eleitores, quanto ao seu grau de alfabetização, deve ser feita individualmente, caso por caso; b) o grau de alfabetização exigido é mínimo, apenas o necessário para que se afaste a hipótese de analfabetismo total, porquanto é inelegível o analfabeto, não o semi-analfabeto; (c) deve-se dar atenção à leitura, mais do que a escrita, pois mais importa ao mandatário a compreensão do texto já escrito, do que escrevê-lo (até porque outros poderão escrever para ele, ao passo que a leitura feita por outros acarreta maiores dificuldades e perigos). (Grifei.)

Segue o doutrinador dizendo que, na sua opinião, as gradações de analfabetismo devem ser analisadas perante a importância do cargo em disputa e que, um candidato a vereador de cidade pequena, não necessita apresentar os mesmos predicados intelectuais de um candidato de uma metrópole:

O que poderá ser tolerável numa câmara municipal de cidade pequena de interior, poderá ser algo desbragadamente escandaloso em uma cidade mais desenvolvida. De modo que não endossamos a zelosa preocupação de Pedro Henrique Niess, quando vergasta o fato da aplicação de diferentes critérios e provas para aferir o grau de analfabetismo dos candidatos nas diversas zonas eleitorais. Tal diversidade é necessária, justamente pelas dissimilitudes da vida, das comunidades e de seu desenvolvimento. (Grifei.)

Assim, se em um primeiro momento pode parecer inaceitável o deferimento de registro de candidatura de cidadão que, em tese, poderá ter dificuldades para a comunicação escrita no legislativo, especialmente considerando as funções precípuas de legislar e fiscalizar o executivo, uma reflexão mais aprofundada leva ao acompanhamento da doutrina e da jurisprudência.

Com efeito, a causa de inelegibilidade posta na Constituição Federal, neste aspecto, é o analfabetismo, não o semianalfabetismo e, sendo regra restritiva, não pode ter o seu alcance ampliado pelos intérpretes jurídicos.

No caso concreto, a declaração de próprio punho apresentada pelo recorrente demonstra o mínimo de escrita, o que não seria alcançado por pessoa analfabeta, propriamente dita.

O teste realizado a pedido do Ministério Público Eleitoral, por sua vez, revela que o recorrente possui dificuldade para a escrita e para a leitura, fato que o torna, quando muito, semianalfabeto, não analfabeto.

Ademais, consultando-se o cadastro eleitoral – sistema ELO – verifica-se que no campo “instrução”, consta a locução “ensino fundamental incompleto”, ou seja, se desde o seu alistamento junto à 93ª Zona Eleitoral, ocorrido 18.9.86, o eleitor já é considerado alfabetizado, inclusive no que tange à obrigatoriedade do voto, não vejo razões para agora, quando pretende exercer a sua capacidade eleitoral passiva, desconsiderar aquela informação.

O Tribunal Superior Eleitoral é firme no sentido de que uma interpretação rigorosa quanto ao quesito alfabetização dificultaria a ascensão política de minorias e excluiria importantes lideranças do acesso a cargos eletivos:

 

DIREITO ELEITORAL E CONSTITUCIONAL. RECURSO ORDINÁRIO. ELEIÇÕES 2018. INELEGIBILIDADE. ANALFABETISMO. DEFICIENTE VISUAL. ART. 14, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. DIREITO FUNDAMENTAL À ELEGIBILIDADE. PROVIMENTO.

Questão de Ordem

(...)

3. Recursos ordinários em face de acórdão regional que indeferiu o pedido de registro do candidato, deficiente visual, por considerar ausente a comprovação de alfabetização em braille, embora tenha apresentado declaração de escolaridade de próprio punho.

4. As causas de inelegibilidade, dentre as quais se inclui o analfabetismo previsto no art. 14, § 4º, da CF/1988, devem ser interpretadas restritivamente. Precedentes.

5. A interpretação do art. 14, § 4º, da CF/1988 não pode ignorar a realidade social brasileira, de precariedade do ensino e de elevada taxa de analfabetismo, que alcança, ainda, cerca de 7% da população brasileira. Interpretação rigorosa desse dispositivo, além de violar o direito fundamental à elegibilidade e os princípios democrático e da igualdade, dificultaria a ascensão política de minorias e excluiria importantes lideranças do acesso a cargos eletivos.

6. A aferição da alfabetização deve ser feita com o menor rigor possível. Sempre que o candidato possuir capacidade mínima de escrita e leitura, ainda que de forma rudimentar, não poderá ser considerado analfabeto para fins de incidência da inelegibilidade em questão. Precedentes.

7. Além disso, deve–se admitir a comprovação dessa capacidade por qualquer meio hábil. O teste de alfabetização, contudo, somente pode ser aplicado: (i) sem qualquer constrangimento; e (ii) de forma a beneficiar o candidato, suprindo a falta de documento comprobatório, vedada a sua utilização para desconstituir as provas de alfabetização apresentadas.

8. No caso, o candidato, com deficiência visual adquirida, comprovou sua alfabetização por meio de declaração de escolaridade de próprio punho, firmada na presença de servidor da Justiça Eleitoral. Ficou demonstrado, portanto, que possui capacidade mínima de leitura e escrita.

9. Não há que se exigir alfabetização em braille de candidato deficiente visual para fins de participação no pleito. Para promover o acesso das pessoas com deficiência aos cargos eletivos, deve–se aceitar e facilitar todos os meios, formas e formatos acessíveis de comunicação, à escolha das pessoas com deficiência.

Conclusão

10. Recurso a que se dá provimento para deferir o pedido de registro de candidatura.

(Recurso Ordinário n. 060247518, Acórdão, Relator(a) Min. Luís Roberto Barroso, Publicação: PSESS - Publicado em Sessão, Data: 18.9.2018.)

 

RECURSO ESPECIAL. ELEIÇÕES 2016. VEREADOR. REGISTRO DE CANDIDATURA. ANALFABETISMO. ART. 14, § 4º, DA CF/88. INTERPRETAÇÃO EM CONFORMIDADE COM OUTROS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS, EM ESPECIAL DA ISONOMIA (ART. 5º, CAPUT E I), DA CIDADANIA (ART. 1º, II) E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA (ART. 1º, III). GRUPOS MINORITÁRIOS. LEGITIMIDADE. PARTICIPAÇÃO NA VIDA POLÍTICA. MANUTENÇÃO DA CANDIDATURA. DESPROVIMENTO.

Histórico da Demanda

1. Trata-se de pedido de registro de candidatura de Francisco José de Araújo ao cargo de vereador de São Gonçalo do Piauí/PI nas Eleições 2016.

2. Em primeiro grau, indeferiu-se o registro ao fundamento de que o candidato é analfabeto, não preenchendo o requisito previsto no art. 14, § 4º, da CF/88.

3. O TRE/PI reformou sentença e assentou estar comprovada condição de alfabetizado.

4. Contra tal acórdão, o Parquet interpôs recurso especial. O Analfabetismo à Luz de Princípios Constitucionais e do Direito das Minorias de Participar da Vida Política

5. "São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos" (art. 14, § 4º, da CF/88).

6. A leitura de referido preceito não pode ocorrer de forma dissociada do cenário social e político de nosso País, indeferindo-se, indistintamente, todo e qualquer registro de candidatura que em tese se enquadre nessa hipótese, sob pena de incompatibilidade de ordem absoluta com o quadro valorativo principiológico que orienta o texto da Constituição Federal de 1988.

7. A cidadania e a dignidade da pessoa humana constituem princípios fundamentais da República Federativa do Brasil - art. 1º, II e III, da CF/88 - e devem compreender, como uma de suas acepções, inserção plena na vida política.

8. O princípio da isonomia (art. 5º, caput e I) materializa direito fundamental de tratamento distinto aos desiguais, na medida de sua distinção, visando atingir status de igualdade substancial e efetiva entre todos.

9. Os grupos minoritários existentes em nosso País, que ainda são, de forma sistêmica e contínua, excluídos dos mais diversos setores - com destaque para negros, índios, portadores de necessidades especiais e mulheres (estas, embora maioria em sentido populacional, não o são no aspecto político) - não podem ser alijados do cotidiano político brasileiro com base em justificativa genérica e linear de analfabetismo.

10. Cabe à Justiça Eleitoral, como instituição imprescindível ao regime democrático, protagonismo na mudança desse quadro, em que as minorias possuem representatividade quase nula, eliminando quaisquer obstáculos que as impeçam de participar ativa e efetivamente da vida política.

11. No ponto, registrem-se julgamentos recentes em que esta Corte vem atuando com rigor para modificar esse cenário: REspe 243-42/PI (combate à fraude em cota de gênero em candidaturas) e REspe 123-67/RS (garantia de espaço às mulheres na propaganda partidária).

12. No tocante, de modo específico, à causa de inelegibilidade do art. 14, § 4º, da CF/88, seu exame em conjunto com os valores constitucionais acima retratados levam a concluir que analfabetismo de natureza educacional não pode e nem deve, em nenhuma hipótese, significar analfabetismo para vida política, sob pena de nova exclusão das minorias - desta vez do direito ao exercício do jus honorum.

13. Em suma, democracia que exalta, em ditames constitucionais, direitos à isonomia, à cidadania e à dignidade da pessoa humana não pode deixar de assegurar a grupos minoritários presença e representatividade no cenário político.

Caso dos Autos

14. O recorrido, de cor negra, completou o primeiro ano do ensino fundamental e, ademais, conforme bem assentado pelo e. Ministro Henrique Neves, é incontroverso que assinou Requerimento de Registro de Candidatura (fl. 2), Declaração de Entrega de Certidões (fl. 3), Declaração de Bens (fl. 4), procuração e, por fim, ata da audiência designada para aferir sua escolaridade, constando do acórdão regional essas premissas fáticas.

15. No que concerne especificamente ao instrumento procuratório, haveria incongruência em admitir-se a assinatura aposta pelo candidato - para prática dos atos previstos no art. 105 do CPC/2015 - e, ao mesmo tempo, assentar-se que ele não consegue expressar sua vontade.

16. Conclusão em sentido diverso demandaria, na hipótese, reexame de fatos e provas, providência inviável em sede extraordinária, a teor da Súmula 24/TSE.

Conclusão

17. Recurso especial a que se nega provimento, mantendo-se deferido o registro de candidatura de Francisco José de Araújo ao cargo de vereador de São Gonçalo do Piauí/PI nas Eleições 2016.

(Recurso Especial Eleitoral n. 8941, Acórdão, Relator(a) Min. Luciana Lóssio, Publicação: PSESS - Publicado em Sessão, Data: 27.9.2016.)

(Grifei.)

No mesmo sentido o entendimento deste Tribunal:

Recurso. Registro de candidatura. Eleições 2012. Analfabeto. Indeferimento do pedido, sob o fundamento de que o comprovante de escolaridade está em desacordo com o art. 27. § 8°, da Resolução TSE n° 23.373/11.

Cidadãos pouco alfabetizados não estão afastados pelo constituinte da disputa eleitoral, haja vista não ser exigido grau mínimo de escolaridade. Interpretação estrita do art. 14, § 4°, da Constituição Federal.

Atendida a condição constitucional de elegibilidade, mediante declaração do próprio punho do recorrente em que demonstra saber ler e escrever. Falta de quitação eleitoral alegada pelo Procurador Regional por ausência às urnas resta sanada, em razão do pagamento da multa antes da prolação da sentença.

Provimento.

(Recurso Eleitoral n 14826, ACÓRDÃO de 17.8.2012, Relatora DESA. FEDERAL MARIA LÚCIA LUZ LEIRIA, Publicação: PSESS - Publicado em Sessão, Data: 17.8.2012.) (Grifei.)

Assim, inexistindo nos autos outras notícias de inelegibilidade e restando preenchidas as condições de elegibilidade, conforme se extrai da informação juntada pelo cartório eleitoral (ID 7265933), deve ser reformada a sentença que indeferiu o registro de candidatura do recorrente.

Dispositivo

Diante do exposto, afastada a matéria preliminar, VOTO pelo provimento do recurso para o fim de deferir o registro de candidatura do recorrente ERNI LOPES para o cargo de vereador, requerido pelo Partido Liberal (PL) do município de Venâncio Aires.