Cta - 0600318-42.2020.6.21.0000 - Voto Relator(a) - Sessão: 03/09/2020 às 14:00

VOTO

Conforme o art. 30, inc. VIII, do Código Eleitoral, compete aos Tribunais Regionais Eleitorais “responder, sobre matéria eleitoral, às consultas que lhe forem feitas, em tese, por autoridade pública ou partido político”.

O texto normativo requer, para o conhecimento da consulta, a presença simultânea de três requisitos: legitimidade do consulente, pertinência temática (matéria eleitoral) e formulação em tese.

Na espécie, o requisito subjetivo, em princípio, não estaria atendido. A consulta foi formulada pelo Município de Uruguaiana.

Contudo, em 10.8.2020, o Prefeito de Uruguaiana ratificou a petição inicial (ID 6515783).

Assim, satisfeito o requisito da legitimidade do consulente.

 

CONSULTA. DESINCOMPATIBILIZAÇÃO DE SERVIDORES PÚBLICOS. DATA-LIMITE EM DIA NAO ÚTIL. REQUERIMENTO DE AFASTAMENTO DO CARGO NO PRIMEIRO DIA ÚTIL SUBSEQUENTE. POSSIBILIDADE.

1. Legitimidade do consulente. A consulta foi formulada em nome de Município, ente que não se encontra entre os legitimados pelo art. 30, VIII, do Código Eleitoral, mas a petição inicial está assinada pelo Prefeito, o qual possui legitimidade para apresentar a consulta, por se enquadrar no conceito de autoridade pública, razão pela qual entende-se que a consulta foi apresentada por pessoa legitimada a fazê-lo.

2.A autoridade consulente narra uma situacão concreta, o que, em princípio, levaria a inadmissibilidade da consulta. Todavia, pode-se extrair da narrativa uma indagação genérica sobre questão relevante, por sua repercussão no julgamento dos requerimentos de registro de candidatura pelos juízos eleitorais competentes, e de resposta facilmente encontrada na jurisprudência desta Justiça especializada. 3.Conforme entendimento consolidado na jurisprudência desta Corte e do TSE, recaindo a data-limite para desincompatibilização de servidores públicos em dia não útil, o afastamento do cargo pode ser requerido no primeiro dia útil subsequente. 4.Consulta admitida e, excepcionalmente, respondida nesses termos.

(TRE- RJ, CONSULTA N. 179-38.2016.6.19.0000, 14.09.2006.) (grifo nosso)

 

No que concerne à pertinência temática, a matéria é eleitoral, pois a indagação diz respeito à possível prática da conduta tipificada no art. 73, § 10, da Lei n. 9.504/97, que veda, no ano em que se realizar eleição, a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da administração pública.

Quanto ao requisito da formulação em tese, o questionamento envolve conduta vedada cujo período de incidência da norma iniciou em 1º de janeiro de 2020, hipótese em que a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral sufragou entendimento no sentido de que eventual resposta não atenderia à abstração inerente à atividade consultiva da Justiça Eleitoral.

Nessa linha de intelecção, a análise a respeito da configuração ou não da conduta vedada seria possível apenas diante das circunstâncias próprias do caso concreto:

CONSULTA. REQUISITOS. LEGITIMIDADE. SENADOR. TRATAMENTO TRIBUTÁRIO DIFERENCIADO. ANO DE ELEIÇÃO. ART. 73, § 10, DA LEI N. 9.504/97. CONDUTA VEDADA. NÃO CONHECIMENTO.

1. Conforme reiterada orientação deste Tribunal, “a análise da configuração ou não de conduta vedada somente é possível a partir dos fatos concretos que revelem suas circunstâncias próprias e o contexto em que inseridos” (Cta n. 154-24/DF, Rel. Min. Henrique Neves da Silva, DJe de 5.6.2014). No mesmo sentido: Cta n. 415-18/DF, Rel. Min. Rosa Weber, DJe de 12.12.2016; Cta n. 1036-83/DF, Rel. Min. Luciana Lóssio, DJe de 7.10.2014; Cta n. 98-59, de 26.4.2012, Rel. Min. Arnaldo Versiani, DJe de 30.5.2012.

2. As concessões de benefícios tributários apresentam diversas nuances e, por implicarem renúncia ou redução da receita pública, sofrem vários condicionamentos e limitações, devendo basear-se em motivação que reflita a satisfação do interesse público e a consecução das finalidades previstas em diplomas específicos, por exemplo, o desenvolvimento de determinado setor econômico ou região. Desta feita, não há como examinar, pela via abstrata da consulta, ante a simples premissa de estar previsto em legislação específica vigente no ano que antecede a eleição, que determinado benefício tributário escaparia ao alcance da norma prevista no art. 73, § 10, da Lei das Eleições.

3. Consulta não conhecida.

(Consulta n. 060424166, Acórdão, Relator Min. Tarcisio Vieira De Carvalho Neto, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 49, Data: 12.3.2018.)

 

Dessarte, a solução jurídica ordinária seria pelo não conhecimento da consulta, pois não preenchido o parâmetro da abstração e em vigência o período da vedação.

Contudo, a situação posta nos autos é excepcional, o que exige o tratamento de forma extraordinária, diferenciada.

Como pontuado pelo douto Procurador Eleitoral, não há como olvidar o grave momento pelo qual estão passando o Brasil e o mundo diante da pandemia do novo Coronavírus (Covid-19), que trouxe desafios para os governos quanto aos cuidados com a saúde coletiva, com a necessidade de atendimento da população por meio da distribuição de alimentos, serviços e recursos para evitar a convulsão social.

O ingrediente extra: o novo Coronavírus surge em pleno ano eleitoral, período no qual a administração pública está submetida a restrições por meio da legislação eleitoral, que coíbe condutas que possam caracterizar promoção pessoal de gestores públicos e proveito político da distribuição gratuita de bens e serviços à população.

Nesse cenário, de extrema gravidade e excepcionalidade, é que tenho por ultrapassar eventual óbice ao conhecimento da consulta e avançar no mérito, com o escopo colaborativo de oferecer subsídio para guiar a atuação do gestor público neste momento de dificuldades de todas as ordens, econômica, social e sanitária, a exemplo do que foi decidido recentemente nesta Corte, quando do julgamento da Consulta n. 0600098-44.2020.6.21.0000, de minha relatoria, na sessão do dia 11.5.2020, conforme o seguinte trecho da ementa:

 

CONSULTA. PREFEITO. QUESTIONAMENTO ACERCA DE EDIÇÃO DE LEI, EM ANO ELEITORAL, PREVENDO BENEFÍCIOS GRATUITOS À POPULAÇÃO. ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA. PANDEMIA. CORONAVÍRUS. COVID-19. POSSIBILIDADE. EXCEÇÃO À REGRA. CONSULTA CONHECIDA. RESPONDIDA NEGATIVAMENTE.

1. Indagação formulada por prefeito, referente à possibilidade de edição de lei prevendo benefícios gratuitos à população, em especial isenção de tarifa de água e esgoto e concessão de auxílios assistenciais, diante docontexto atual de calamidade pública declarado via Decreto Municipal e reconhecido nacionalmente.

2. Ainda que não preenchido o requisito da formulação em tese, nos termos do art. 30, inc. VIII, do Código Eleitoral, uma vez que a eventual resposta do questionamento não atenderia à abstração inerente à atividade consultiva da Justiça Eleitoral, a situação posta nos autos deve ser tratada de forma excepcional, devido ao momento pelo qual está passando o Brasil e o mundo diante da pandemia do novo coronavírus (Covid-19).

3. A calamidade pública é exceção à regra que proíbe, em ano eleitoral, a distribuição de bens, valores ou serviços pela administração pública, mas não isenta o gestor da observância dos princípios constitucionais no trato da coisa pública e não dispensa a adoção de critérios objetivos para estabelecer beneficiários, prazo de duração e motivação estrita relacionada à causa da situação excepcional, bem como vedada a ocorrência de promoção pessoal de autoridades, servidores públicos, candidatos, partidos ou coligações, na publicidade ou distribuição do benefício.

(grifo nosso)

 

Dessa maneira, excepcionalmente, a presente consulta deve ser conhecida.

 

No mérito, o questionamento foi formulado nos seguintes termos:

 

É possível realizar repasse financeiro (subvenção) à entidade filantrópica sem que a mesma tenha percebido repasse de valores nos anos anteriores, em virtude de o município se encontrar em estado de calamidade pública?

 

Adianto que a resposta é positiva.

O § 10 do art. 73 da Lei n. 9.504/97 veda a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios, pela administração pública, em ano eleitoral, porém exclui dessa vedação, expressamente, os casos de calamidade pública:

Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:

(…)

§ 10. No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa.

 

Entretanto, como ressalvado pelo douto Procurador Eleitoral, em face do caráter de excludente legal, e diante da urgência e necessidade configuradoras da calamidade pública, os benefícios concedidos gratuitamente devem guardar estrita e justificada pertinência, seja no seu conteúdo, nos prazos, ou no que tange aos seus beneficiários, com a causa que motivou a decretação do estado de calamidade pública, sob pena de, caso contrário, operar-se desvio do interesse público emergencial que justificou a exceção em comento.

Esta é a orientação doutrinária de Rodrigo López Zilio acerca da matéria:

As hipóteses de calamidade pública e estado de emergência devem estar previstas em lei específica ou no respectivo decreto, de forma a configurar a exceção da conduta vedada pelo § 10 do art. 73 da LE. A autoridade que decreta a calamidade pública tem o dever de justificar e demonstrar a existência da situação fática excepcional, sob pena de responsabilização. Logo, é insuficiente a mera alegação fática da existência da situação excepcional. Observados os requisitos legais e devidamente comprovada a situação excepcional, torna-se possível a distribuição gratuita de bens, valores e benefícios em ano eleitoral, desde que não haja excesso ou uso eleitoreiro nessa ação. Com efeito, não é possível ao administrador, sob o pretexto de abrigo em uma excludente legal, transmudar o ato de calamidade pública ou estado de emergência em vantagem eleitoral, distribuindo bens para pessoas diversas das necessitadas ou repassando recursos financeiros além do necessário para sofrear a situação excepcional.

(Direito Eleitoral. 6. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2018, pp. 736-737.)

 

Portanto, na hipótese de decretação do estado de calamidade pública, fica autorizada a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da administração pública. Não há como atribuir valor absoluto às condutas vedadas aos agentes públicos, sem que seja conferida interpretação sistêmica em relação aos demais textos normativos e à realidade da crise vivenciada por conta de uma pandemia.

Todavia, é necessário observar que o administrador público, mesmo em face de situação de calamidade, está adstrito aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, nos termos do comando do art. 37 da Constituição Federal, sem que possa fazer uso da distribuição gratuita de bens e valores com caráter eleitoreiro ou como forma de promoção pessoal, sob pena de incorrer na conduta vedada prevista no art. 73, inc. IV, da Lei n. 9.504/97:

Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:

[…]

IV - fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo Poder Público;

 

Em resumo: a calamidade pública é exceção à regra que proíbe, em ano eleitoral, a distribuição de bens, valores ou serviços pela administração pública, mas não isenta o gestor da observância dos princípios constitucionais no trato da coisa pública e não dispensa a adoção de critérios objetivos para estabelecer beneficiários, prazo de duração e motivação estrita relacionada à causa da situação excepcional.

Com essas considerações, o questionamento é de ser respondido afirmativamente, no sentido de ser possível realizar repasse financeiro (subvenção) à entidade filantrópica, em ano de eleição, quando de um contexto de estado de calamidade pública declarado via Decreto Municipal, desde que exista correspondência lógica, devidamente justificada, entre, de um lado, as hipóteses de concessão, a natureza e a extensão do benefício e, do outro, a situação fática alegada como base para a decretação do estado de calamidade, bem como não ocorra promoção pessoal de autoridades, servidores públicos, candidatos, partidos ou coligações, na publicidade ou distribuição do benefício.

 

Ante o exposto, VOTO no sentido de responder positivamente à consulta nos seguintes termos:

É possível realizar repasse financeiro (subvenção) à entidade filantrópica, em ano de eleição, quando no contexto de estado de calamidade pública declarado via Decreto Municipal, desde que exista correspondência lógica, devidamente justificada, entre, de um lado, as hipóteses de concessão, a natureza e a extensão do benefício e, do outro, a situação fática alegada como base para a decretação do estado de calamidade, bem como não ocorra promoção pessoal de autoridades, servidores públicos, candidatos, partidos ou coligações, na publicidade ou distribuição do benefício.