Cta - 0600289-89.2020.6.21.0000 - Voto Relator(a) - Sessão: 24/08/2020 às 10:30

VOTO

Cuida-se de consulta efetuada por Miki Breier, prefeito de Cachoeirinha/RS, na qual são formuladas duas indagações relacionadas à situação de calamidade pública ocasionada pela pandemia do COVID-19 (ID 6283883).

Inicialmente, mesmo tendo sido elaborado aditamento à inicial, entendo dispensável a retomada dos procedimentos de instrução do processo, uma vez que os elementos já colacionados são suficientes ao enfrentamento do pedido.

A consulta encontra amparo no art. 30, inc. VIII, do Código Eleitoral:

Art. 30. Compete, ainda, privativamente, aos Tribunais Regionais:

[...]

VIII – responder, sobre matéria eleitoral, às consultas que lhe forem feitas, em tese, por autoridade pública ou partido político. (grifei)

No caso presente, a consulta é proposta por autoridade pública – prefeito –, estando atendido o requisito subjetivo relacionado à legitimidade.

No que se refere à pertinência temática, a matéria é eleitoral, uma vez que os questionamentos estão relacionados às condutas vedadas aos agentes públicos em eleições – art. 73 da da Lei n. 9.504/97.

A norma exige também a formulação da consulta sem contornos a possibilitarem a identificação de caso concreto. Tal comando evita que o Tribunal se adiante em eventual apreciação jurisdicional sem que tenha havido dilação probatória adequada.

Em face desse parâmetro, em relação ao primeiro questionamento, tenho que a exigência de formulação “em tese” impede que se possa conhecer da consulta. Do modo como apresentada, e pelos argumentos expostos na inicial, eventual resposta não atenderia à abstração inerente à atividade consultiva da Justiça Eleitoral.

Repriso: o consulente indaga se, em “ano eleitoral, é possível proceder a aporte e doação de valores para combater os efeitos do covid-19”. Tal questionamento comportaria uma multiplicidade de respostas, mas as especificações constantes na peça inicial assumem contornos de caso concreto em virtude da explícita intenção de encaminhamento, à Câmara de Vereadores, de projeto de lei que criaria o Fundo de Amparo ao Transporte Coletivo Municipal, com “distribuição de valores”, ou seja, aporte financeiro, de modo a abrandar o impacto na redução do número de passageiros por conta das restrições impostas pela pandemia.

Mesmo tendo ciência de que esta Corte recentemente admitiu consulta e, excepcionalmente, respondeu indagação acerca da possibilidade de edição de lei prevendo benefícios gratuitos à população - isenção de tarifa de água e esgoto e concessão de auxílios assistenciais - diante do contexto atual de calamidade pública declarado via decreto municipal e reconhecido nacionalmente, tenho que escapa à competência do Regional a análise prévia sobre a possibilidade/viabilidade de instituição de políticas públicas específicas e relacionadas a determinados setores econômicos.

A admissão de tais questionamentos poderia ser interpretada como chancela jurisdicional à concessão de benefícios fiscais e econômicos a pessoas jurídicas, o que é absolutamente indesejável. Mesmo reconhecendo a enorme gama de desafios que a pandemia tem imposto aos gestores públicos, não pode o Poder Judiciário se sobrepor, incentivar ou desestimular as escolhas que cabem apenas aos Poderes Executivo e Legislativo municipais.

Assim, voto por não conhecer da consulta, em razão da ausência do requisito de formulação em tese em relação ao primeiro questionamento.

Destaco.

 

Em relação ao mérito, tenho que o § 10 do art. 73 da Lei n. 9.504/97 autoriza, excepcionalmente, a distribuição de valores e benefícios por parte da administração pública no ano em que se realizar eleição, com a recomendação de que tais medidas sejam acompanhadas pelo Ministério Público.

A situação excepcional que autoriza a conclusão acima está ligada, na hipótese, à decretação de calamidade pública, que é a situação atravessada pelo país no momento.

A fim de evitar tautologia, transcrevo a acurada análise elaborada pela Procuradoria Regional Eleitoral em seu parecer (ID 6365833), cujos argumentos acolho como razões de decidir:

[…] ante o caráter de excludente legal e diante da própria urgência e necessidade configuradoras da calamidade pública, os benefícios concedidos gratuitamente devem guardar estrita e justificada pertinência, seja no seu conteúdo, nos prazos ou no que tange aos seus beneficiários, com a causa que motivou a decretação do estado de calamidade pública, sob pena de, caso contrário, operar-se um desvirtuamento do interesse público emergencial que justifica a exceção em tela.

Preocupação semelhante é encontrada na lição de Rodrigo López Zilio acerca do tema em análise:

As hipóteses de calamidade pública e estado de emergência devem estar previstas em lei específica ou no respectivo decreto, de forma a configurar a exceção da conduta vedada pelo § 10 do art. 10 do art. 73 da LE. A autoridade que decreta a calamidade pública tem o dever de justificar e demonstrar a existência da situação fática excepcional, sob pena de responsabilização. Logo, é insuficiente a mera alegação fática da existência da situação excepcional. Observados os requisitos legais e devidamente comprovada a situação excepcional, torna-se possível a distribuição gratuita de bens, valores e benefícios em ano eleitoral, desde que não haja excesso ou uso eleitoreiro nessa ação. Com efeito, não é possível ao administrador, sob o pretexto de abrigo em uma excludente legal, transmudar o ato de calamidade pública ou estado de emergência em vantagem eleitoral, distribuindo bens para pessoas diversas das necessitadas ou repassando recursos financeiros além do necessário para sofrear a situação excepcional.

(grifou-se)

Portanto, é inequívoco que os casos de calamidade pública constituem exceção à vedação de concessão gratuita de valores, bens ou benefícios pela Administração Pública em ano eleitoral, desde que, como frisado, exista correspondência lógica, devidamente justificada, entre as hipóteses de concessão, bem como a natureza e a extensão do benefício, de um lado, e, do outro, a situação fática alegada como base para a decretação, de maneira que os benefícios a serem concedidos guardem os exatos limites do necessário para enfrentar a emergência que justifica a decretação e seus efeitos.

Diga-se, por outro lado, que o permissivo do § 10 do art. 73 da Lei das Eleições não pode conduzir à promoção pessoal do gestor ou de terceiros relacionada à entrega dos bens ou serviços aos beneficiários, sob pena de enquadrar-se o agente público responsável na conduta vedada prevista no art. 73, inc. IV, do mesmo diploma legal, que proíbe aos agentes públicos fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo Poder Público.

Acrescente-se que, nos termos do art. 37, § 1º, da CF/88, a vedação à promoção pessoal se estende à públicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos, que deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos.

O descumprimento do art. 37, § 1º, da CF/88 caracteriza abuso de autoridade, ficando o responsável, se candidato, sujeito ao cancelamento do registro ou do diploma, conforme expressamente consignado no art. 74 da LE.

Frise-se, por oportuno, que esse eg TRE/RS, quando do julgamento da Consulta nº 0600098-44.2020.6.21.0000, assentou o entedimento de que a calamidade pública é exceção à regra que proíbe, em ano eleitoral, a distribuição de bens, valores ou serviços pela administração pública, mas não isenta o gestor da observância dos princípios constitucionais, tampouco dispensa a adoção de critérios objetivos para estabelecer beneficiários. O acórdão restou assim ementado, in verbis:

CONSULTA. PREFEITO. QUESTIONAMENTO ACERCA DE EDIÇÃO DE LEI, EM ANO ELEITORAL, PREVENDO BENEFÍCIOS GRATUITOS À POPULAÇÃO. ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA. PANDEMIA. CORONAVÍRUS. COVID-19. POSSIBILIDADE. EXCEÇÃO À REGRA. CONSULTA CONHECIDA. RESPONDIDA NEGATIVAMENTE.

1. Indagação formulada por prefeito, referente à possibilidade de edição de lei prevendo benefícios gratuitos à população, em especial isenção de tarifa de água e esgoto e concessão de auxílios assistenciais, diante do contexto atual de calamidade pública declarado via Decreto Municipal e reconhecido nacionalmente.

2. Ainda que não preenchido o requisito da formulação em tese, nos termos do art. 30, inc. VIII, do Código Eleitoral, uma vez que a eventual resposta do questionamento não atenderia à abstração inerente à atividade consultiva da Justiça Eleitoral, a situação posta nos autos deve ser tratada de forma excepcional, devido ao momento pelo qual está passando o Brasil e o mundo diante da pandemia do novo coronavírus (Covid-19).

3. A calamidade pública é exceção à regra que proíbe, em ano eleitoral, a distribuição de bens, valores ou serviços pela administração pública, mas não isenta o gestor da observância dos princípios constitucionais no trato da coisa pública e não dispensa a adoção de critérios objetivos para estabelecer beneficiários, prazo de duração e motivação estrita relacionada à causa da situação excepcional, bem como vedada a ocorrência de promoção pessoal de autoridades, servidores públicos, candidatos, partidos ou coligações, na publicidade ou distribuição do benefício.

Com essas considerações, manifesta-se o Ministério Público no sentido de que o primeiro questionamento trazido na consulta seja respondido positivamente, como segue:

É possível proceder a aporte e doação de valores para combater os efeitos da pandemia do coronavírus (Covid-19), em ano de eleição, por meio de criação de Fundo de Amparo ao Transporte Coletivo Municipal, a fim de prestar socorro ao sistema de transporte coletivo municipal, garantindo à população local o direito social ao transporte, QUANDO tal ocorrer no contexto de um estado de calamidade pública declarado via Decreto Municipal, DESDE QUE exista correspondência lógica, devidamente justificada, entre, de um lado, as hipóteses de concessão, a natureza e a extensão do benefício e, do outro, a situação fática alegada como base para a decretação do estado de calamidade, BEM COMO não ocorra promoção pessoal de autoridades, servidores públicos, candidatos, partidos ou coligações, na publicidade ou distribuição do benefício.

Nesses termos, ultrapassada a barreira do conhecimento da consulta quanto ao primeiro questionamento, a resposta deve ser exarada nos seguintes termos:

a) É possível proceder ao aporte e à doação de valores para combater os efeitos da pandemia do coronavírus (Covid-19), em ano de eleição, por meio de criação de Fundo de Amparo ao Transporte Coletivo Municipal, a fim de prestar socorro ao sistema de transporte coletivo municipal, garantindo à população local o direito social ao transporte, QUANDO tal ocorrer no contexto de um estado de calamidade pública declarado via decreto municipal, DESDE QUE exista correspondência lógica, devidamente justificada, entre, de um lado, as hipóteses de concessão, a natureza e a extensão do benefício e, do outro, a situação fática alegada como base para a decretação do estado de calamidade, BEM COMO não ocorra promoção pessoal de autoridades, servidores públicos, candidatos, partidos ou coligações, na publicidade ou distribuição do benefício.

A título de desfecho, relembro apenas o caráter não vinculante das consultas efetuadas às Cortes eleitorais.

Ainda, tenho que é necessário o reconhecimento da situação de calamidade pública no município de Cachoeirinha de forma pontual e específica, justificado por dados concretos e estudos, de modo que se considere tal reconhecimento motivo determinante da eventual edição da lei de incentivo econômico, o que responde ao terceiro questionamento, trazido no aditamento da presente consulta (Id. 6403083).

 

Passo ao segundo questionamento.

A autoridade pública pergunta se, em “ano eleitoral, é possível exceder a média de gastos em despesa de publicidade com assuntos relacionados ao Covid-19”, justificando que “há uma necessidade urgente, premente de se tomarem inúmeras medidas publicitárias, com fins sanitários, que trabalhem, de forma contínua, a atualização de dados, de sistema, mudança de bandeira, de regras de distanciamento, dentre outras ações” que exigiriam aportes financeiros consideráveis, ultrapassando a média de gastos com publicidade.

Na hipótese, verifiquei que se encontra em tramitação no Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6374, na qual se questionam as normas eleitorais que limitam gastos com publicidade institucional no ano das eleições em razão da pandemia. Colho do sítio do STF:

O partido Avante (antigo PT do B) ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6374 no Supremo Tribunal Federal (STF) contra normas eleitorais que limitam gastos com publicidade institucional no primeiro semestre do ano das eleições. Para o autor, o reconhecimento formal do estado de calamidade pública em razão da pandemia de Covid-19 demanda gastos extraordinários com atos e campanhas publicitárias dos órgãos públicos a fim de orientar a população na prevenção do contágio pelo novo coronavírus. O relator é o ministro Ricardo Lewandowski.

Com o intuito de oferecer igualdade de oportunidade entre os candidatos nas eleições, as normas em questão vedam aos agentes públicos a realização de despesas com publicidade dos órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, ou da administração indireta, que excedam a média dos gastos no primeiro semestre dos três últimos anos que antecedem o pleito. Para o partido, tal limitação viola a efetivação de garantias fundamentais asseguradas na Constituição Federal, como a dignidade humana, bem como o direito à vida, à saúde, à segurança e à informação.

O autor da ADI pede que o Supremo interprete, conforme a Constituição Federal, as normas eleitorais questionadas - inciso VII do artigo 73 da Lei das Eleições (Lei 9.504/1997) e o inciso VII do artigo 83 da Resolução 23.610/2019 do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) - de modo a não aplicá-las em relação às despesas com publicidade institucional, necessárias ao enfrentamento do coronavírus no contexto de calamidade pública.

Disponível em http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=440994&ori=1, acesso em 28.07.2020.

O debate da questão perante o Supremo Tribunal Federal é óbice ao conhecimento da consulta em relação ao tema, conforme decidiu recentemente o Tribunal Superior Eleitoral em face de consulta de teor bastante semelhante ao que aqui se examina.

Vejamos:

CONSULTA. DEPUTADO FEDERAL. COVID–19. ART. 73, VII, DA LEI N. 9.504/97. LIMITE DE GASTOS. PUBLICIDADE INSTITUCIONAL. ANO ELEITORAL. QUESTIONAMENTO. FLEXIBILIZAÇÃO. REGRA LEGAL. ORIENTAÇÃO DA POPULAÇÃO. MEDIDAS DE COMBATE À PANDEMIA. MATÉRIA AFETA AO CRIVO DO STF. ADI 6374. RESPOSTA. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. NÃO CONHECIMENTO.

1. Nos termos da jurisprudência, não se conhece de consulta cujo tema encontra–se em discussão no âmbito do colendo STF (Cta n. 130–25/DF, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe de 29.9.2016).

2. A discussão envolvendo a flexibilização, ante a pandemia em curso, da regra contida no art. 73, VII, da Lei n. 9.504/97 – que versa sobre o limite de gastos com publicidade institucional em ano eleitoral – encontra–se posta perante o STF na ADI n. 6374/DF, relatada pelo e. Ministro Ricardo Lewandowski, que, por força da relevância da matéria, aplicou o rito abreviado do art. 12 da Lei n. 9.868/99, com informações devidamente prestadas.

3. Consulta não conhecida.

(Consulta n. 060046116, Acórdão, Relator Min. Tarcisio Vieira De Carvalho Neto, Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Tomo 112, Data 08.06.2020.)

Assim, na linha do precedente do Tribunal Superior Eleitoral, não conheço da consulta em relação ao segundo questionamento, em razão de o tema encontrar-se em discussão no Supremo Tribunal Federal.

Nessa linha, não conhecida a consulta em relação ao primeiro e ao segundo questionamentos, não resta interesse em se analisar o terceiro questionamento, relativo à necessidade ou não de reconhecimento da situação de calamidade pública no município de Cachoeirinha, RS, de forma pontual e específica, não obstante a decretação a níveis federal e estadual.

Diante do exposto, VOTO por não conhecer da consulta.

OU (caso se opte por conhecer e responder aos questionamentos primeiro e terceiro)

Diante do exposto, VOTO por não conhecer da consulta quanto ao segundo questionamento, e conhecê-la em relação ao primeiro e terceiro, nos seguintes termos:

a) É possível proceder ao aporte e à doação de valores para combater os efeitos da pandemia do coronavírus (Covid-19), em ano de eleição, por meio de criação de Fundo de Amparo ao Transporte Coletivo Municipal, a fim de prestar socorro ao sistema de transporte coletivo municipal, garantindo à população local o direito social ao transporte, QUANDO tal ocorrer no contexto de um estado de calamidade pública declarado via decreto municipal, DESDE QUE exista correspondência lógica, devidamente justificada, entre, de um lado, as hipóteses de concessão, a natureza e a extensão do benefício e, do outro, a situação fática alegada como base para a decretação do estado de calamidade, BEM COMO não ocorra promoção pessoal de autoridades, servidores públicos, candidatos, partidos ou coligações, na publicidade ou distribuição do benefício;

b) É necessário o reconhecimento da situação de calamidade pública no município de Cachoeirinha de forma pontual e específica, justificado por dados concretos e estudos, de modo que se considere tal reconhecimento motivo determinante da eventual edição de lei de incentivo econômico.

É como voto, Senhor Presidente.