RE - 0600040-42.2020.6.21.0032 - Voto Relator(a) - Sessão: 14/07/2020 às 14:00

VOTO

Admissibilidade

Colhe-se dos autos que a carta de intimação da sentença foi recebida pelo recorrente em 05.5.2020 (ID 5833983, fl. 18), e o recurso foi interposto em 21.5.2020 (ID 5833833).

Como bem explica José Jairo Gomes (Direito eleitoral. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 167), "apesar de o procedimento de alistamento eleitoral ter natureza administrativa, transforma-se em judicial se houver recurso, porquanto surge conflito de interesses que deve ser resolvido pelo Estado-juiz".

Desse modo, “aplicado o CPC e realizada a intimação pessoal, a contagem do prazo recursal deve seguir o mesmo diploma, que estabelece a juntada do AR aos autos como dies a quo para a interposição de recurso” (TSE - AgR-REspe: 83159 PA, Relatora Min. FÁTIMA NANCY ANDRIGHI, DJE de 24.02.2012).

Contudo, não há nos autos certidão sobre a data de juntada aos autos do aviso de recebimento da carta de intimação, termo inicial estabelecido no art. 231, inc. I, do CPC, não podendo tal falha ser considerada em desfavor do recorrente.

Deve, assim, ser presumida a tempestividade da peça recursal, com o atendimento do quinquídio fixado no art. 18, § 5º, da Resolução TSE n. 21.538/03.

Preenchidos os demais pressupostos recursais, deve ser conhecido o apelo.

Mérito

O tema em apreço versa sobre a transferência de domicílio eleitoral, matéria regulamentada pelos arts. 18 e 65 da Resolução TSE n. 21.538/03, que assim dispõem:

Art. 18. A transferência do eleitor só será admitida se satisfeitas as seguintes exigências:
I – recebimento do pedido no cartório eleitoral do novo domicílio no prazo estabelecido pela legislação vigente;
II – transcurso de, pelo menos, um ano do alistamento ou da última transferência;
III – residência mínima de três meses no novo domicílio, declarada, sob as penas da lei, pelo próprio eleitor (Lei nº 6.996/1982, art. 8º);
IV – prova de quitação com a Justiça Eleitoral.

Art. 65. A comprovação de domicílio poderá ser feita mediante um ou mais documentos dos quais se infira ser o eleitor residente ou ter vínculo profissional, patrimonial ou comunitário no município a abonar a residência exigida.

Conforme já assentado na doutrina e na jurisprudência, o domicílio eleitoral representa um conceito mais elástico do que o domicílio civil, admitindo-se a simples demonstração de vínculos de natureza afetiva, econômica, política, social ou comunitária entre o eleitor e o município.

Nesse trilhar, destaco o seguinte julgado:

ELEIÇÃO 2012. RECURSO ESPECIAL. REGISTRO DE CANDIDATO. DEFERIMENTO. DOMICÍLIO ELEITORAL. ABRANGÊNCIA. COMPROVAÇÃO. CONCEITO ELÁSTICO. DESNECESSIDADE DE RESIDÊNCIA PARA SE CONFIGURAR O VÍNCULO COM O MUNICÍPIO. PROVIMENTO. 1) Na linha da jurisprudência do TSE, o conceito de domicílio eleitoral é mais elástico do que no Direito Civil e se satisfaz com a demonstração de vínculos políticos, econômicos, sociais ou familiares. Precedentes. 2) Recurso especial provido para deferir o registro de candidatura.
(TSE - REspe: 37481 PB, Relator: Min. MARCO AURÉLIO MENDES DE FARIAS MELLO, Data de Julgamento: 18.02.2014, Data de Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Tomo 142, Data: 04.8.2014, pp. 28/29.) (Grifei.)

Na mesma senda, este Tribunal adota uma compreensão bastante flexível de domicílio eleitoral ao admitir provas que, apesar de não denotarem a noção estrita de residência, revelam relações das mais diversas com a localidade, tais como a demonstração de participação em campeonato esportivo e em associação recreativa local por tempo duradouro (RE n. 756, Relator: Des. Eleitoral Gerson Fischmann, Sessão: 30.8.2018) ou de residência dos sogros e cunhados no município (RE n. 2602, Relator: Des. Federal João Batista Pinto Silveira, Sessão: 14.11.2017).

Nem mesmo tal abrandamento ampara o caso sob exame, haja vista a ausência de sinceridade e, quiçá, de boa-fé na motivação do pedido, como se passa a demonstrar.

Consoante informação subscrita pelo Chefe de Cartório da 32ª Zona, no dia 21.01.2020, o eleitor VALDAIR ROCHA DE LIMA compareceu ao Cartório Eleitoral, acompanhado do servidor municipal de Boa Vista das Missões Carlos Rogério dos Santos Bueno, a fim de solicitar a transferência de seu domicílio eleitoral de Palmeira das Missões para Boa Vista das Missões (ID 5833983).

Como prova de residência, o recorrente apresentou contrato de locação, tendo como locadora Eliane Aquino de Abreu Moreira e como locatários o próprio eleitor e sua esposa, Schaiane Beutler, cujo instrumento teve assinaturas reconhecidas em tabelionato no dia 21.10.2019 (ID 5833983).

Ocorre que, durante o atendimento no Cartório Eleitoral, VALDAIR ROCHA DE LIMA não soube informar ao servidor da Justiça Eleitoral seu endereço de residência, tampouco telefone para contato, dados esses que foram prestados por Carlos Rogério dos Santos Bueno.

Tais fatos fizeram com que o Chefe de Cartório, no documento dirigido ao Juiz Eleitoral, fizesse constar as seguintes observações:

O eleitor estava acompanhado do servidor municipal de Boa Vista das Missões Carlos Rogério dos Santos Bueno, conhecido por “Negão”, solicitando transferência de seu domicílio eleitoral do município de Palmeira das Missões para Boa Vista das Missões.

O eleitor apresentou, como documento comprobatório de residência contrato de locação, tendo como locador Eliane Aquino de Abreu Moreira e como locatários ele e sua esposa, Schaiane.

O eleitor Valdair, quando perguntado o endereço, não soube responder e perguntou ao Sr. Carlos, que respondeu. Tampouco o eleitor sabia seu número de telefone e quem informou o número da esposa do eleitor, Schaine, foi o Sr. Carlos.

Diante dos indícios de não veracidade acerca das declarações prestadas pelo eleitor, o Magistrado a quo determinou diligências, a fim de confirmar a autenticidade do domicílio informado, conforme preceitua o art. 65, § 4º, da Resolução TSE n. 21.538/03:

Art. 65. (...).
§ 4º Subsistindo dúvida quanto à idoneidade do comprovante de domicílio apresentado ou ocorrendo a impossibilidade de apresentação de documento que indique o domicílio do eleitor, declarando este, sob as penas da lei, que tem domicílio no município, o juiz eleitoral decidirá de plano ou determinará as providências necessárias à obtenção da prova, inclusive por meio de verificação in loco.

Em cumprimento à ordem, o Chefe de Cartório procedeu à verificação in loco, dirigindo-se ao endereço antigo, em Palmeira das Missões, visando confirmar se o eleitor ainda residia no município, lavrando, ao final, certidão com o seguinte teor:

(...)
Diante disso, me dirigi ao endereço Rua Mário Becker, 110, Bairro Franco I, em Palmeira das Missões, onde encontrei residentes. Após questionar vizinhos, verificou-se que Valdair Rocha de Lima e Schaiane Beutler residem à Rua Mário Becker, 165, Fundos, com informação prestada pelo Sr. Aldo do Prado Neris, que reside no local, bem como por este servidor, que, em diligência anterior na busca de Aldo do Prado Neris e Elaine Neris, foi atendido pela Sra. Schaiane.
Por oportuno, questionei sobre o tempo de residência dos eleitores em comento, pelo qual disseram que sempre moraram ali e não se mudaram recentemente.
(...)

Como se observa, a apuração não contemplou o endereço declarado pelo eleitor no município de Boa Vista das Missões, localidade de destino da transferência.

Com base nessa circunstância, o recorrente argumenta que a diligência não conduz à conclusão de não existência de vínculo com a nova circunscrição, pois não há ilicitude na concomitante permanência da residência em Palmeira das Missões com o estabelecimento de novo domicílio eleitoral em Boa Vista das Missões.

É certo que a ordem civil reconhece a possibilidade da pluralidade de domicílios, nos quais a pessoa alternadamente viva ou nos quais constitua diferentes espécies de relações, na linha estabelecida pelos arts. 71 e 72 do Código Civil.

Desse modo, a conclusão de que o eleitor permanece com vínculos, inclusive com domicílio civil, no município de Palmeira das Missões, não afasta, em tese, a possibilidade de constituição de um novo domicílio em Boa Vista das Missões.

Nessa hipótese, faculta-se ao cidadão a escolha de qualquer desses como sede para o exercício de seus direitos políticos, consoante, inclusive, dicção do parágrafo único do art. 42 do Código Eleitoral: “é  domicílio eleitoral o lugar de residência ou moradia do requerente, e, verificado ter o alistando mais de uma, considerar-se-á domicílio qualquer delas”.

Contudo, diante das pertinentes averiguações determinadas pelo juízo a quo, entendo que a manutenção da residência em Palmeiras das Missões associa-se a outros elementos informativos acostados aos autos, para impor fundado descrédito sobre o instrumento locatício apresentado. 

Com efeito, nas circunstâncias que rodeiam o requerimento de transferência ora em exame, constata-se uma miríade de indícios característicos do modus operandi da cooptação de pessoas para transferências fraudulentas, visando à construção artificial de um reduto ou “curral” eleitoral, prática ilícita que ganha especial vulto em anos de eleições municipais, especialmente em localidades de diminuto eleitorado.

Assim, na esteira do elucidativo parecer da douta Procuradoria Regional Eleitoral, cabe destacar os seguintes aspectos que colocam fundada dúvida sobre a autenticidade da documentação ofertada, quais sejam:

1) a única prova oferecida de vínculo do eleitor com o município de Boa Vista das Missões foi o contrato de locação do imóvel de propriedade de Eliane Aquino de Abreu Moreira (ID 5833983);

2) o contrato ajusta início de vigência em 15.10.2019 e teve assinaturas reconhecidas em 21.10.2019, ou seja, nos exatos três meses anteriores de domicílio legalmente exigidos para o requerimento de transferência e prevê a duração de um ano, findando em 14.10.2020, logo após as eleições de 2020, sem cláusula de prorrogação;

3) a fatura de energia elétrica, referente a janeiro do corrente ano, apresentada pelo eleitor, continua sob a titularidade do locador;

4) a procuração outorgada pelo recorrente a seus advogados registra que ele é “residente e domiciliado na rua Mario Becker 165 em Palmeira das Missões”, ou seja, no município de origem e não para onde pretendia se transferir;

5) o Chefe de Cartório informou que VALDAIR ROCHA DE LIMA compareceu ao Cartório Eleitoral acompanhado do servidor do município de Boa Vista das Missões Carlos Rogério dos Santos Bueno e que, quando indagado sobre seu endereço de residência, não soube responder e se socorreu do auxílio de Carlos Rogério, o qual comunicou ao servidor cartorário o endereço de residência do eleitor;

Em simples consulta ao Portal da Transparência da Prefeitura Municipal de Boa Vista das Missões (https://www.boavistadasmissoes.rs.gov.br/), é possível confirmar que Carlos Rogério dos Santos Bueno é servidor público efetivo lotado na Secretaria de Saúde.

Desse modo, no contexto exposto, entendo que a prova de domicílio apresentada é frágil e duvidosa, não servindo, por si só, para o deferimento da transferência eleitoral.

Sendo ônus do requerente a prova de vínculo com o município ao qual pretende se transferir, cumpria-lhe apresentar, por “meios convincentes” – na expressão trazida pelo art. 55, § 1º, inc. III, do Código Eleitoral –, documentos que efetivamente demonstrassem a existência de liames sociais, familiares, afetivos ou profissionais com a municipalidade, superando a precariedade do instrumento contratual apresentado.

No entanto, nenhuma das diversas situações passíveis de configurar o domicílio eleitoral foi minimamente demonstrada nos autos, mormente diante das diligências de ofício determinadas na origem.

Ao ensejo, reproduzo ementa de recente julgado de minha relatoria, a respeito do mesmo contexto fático narrado nestes autos, em que foi mantida a decisão do Juízo Eleitoral que indeferiu a transferência eleitoral da Sra. Elaine Neris, de Palmares do Sul para Boa Vista das Missões:

RECURSO. REQUERIMENTO DE TRANSFERÊNCIA DE DOMICILIO ELEITORAL. INDEFERIMENTO. PROVA DE DOMICÍLIO FRÁGIL E DUVIDOSA. NÃO DEMONSTRADO O VÍNCULO COM O MUNICÍPIO PRETENDIDO. CIRCUNSTÂNCIAS INDICATIVAS DE TRANSFERÊNCIA FRAUDULENTA. DESPROVIMENTO.
Insurgência contra decisão que indeferiu requerimento de transferência de domicílio eleitoral, por ausência de prova idônea do vínculo residencial com a localidade.
A troca de domicílio eleitoral esta regulamentada pelos arts. 18 e 65 da Resolução TSE n. 21.538/03. De acordo com a doutrina e jurisprudência, o domicílio eleitoral representa um conceito mais elástico do que o domicílio civil, admitindo-se a simples demonstração de vínculos de natureza afetiva, econômica, política, social ou comunitária entre o eleitor e o município. Neste sentido, faculta-se ao cidadão a escolha de qual local funcionará como sede para o seu exercício do voto, consoante dicção do parágrafo único do art. 42 do Código Eleitoral.
Cumpre ao requerente demonstrar, por meios convincentes, seu vínculo com o município do qual pretende ser eleitor. Este Tribunal adota uma compreensão bastante flexível de domicílio eleitoral ao admitir provas que, apesar de não denotarem a noção estrita de residência, revelam relações das mais diversas com a localidade, tais como a demonstração de participação em campeonato esportivo e em associação recreativa local por tempo duradouro. Na hipótese, a prova de domicílio apresenta-se frágil e duvidosa, não servindo, por si só, para o deferimento da transferência eleitoral. Nenhuma das diversas situações passíveis de configurar o domicílio eleitoral foi minimamente demonstrada nos autos, não sendo suficiente a mera alegação da parte quanto aos vínculos profissionais ou familiares, para superar a precariedade da prova apresentada.
Ineficácia do contrato de locação para os efeitos buscados. Diligências in loco determinadas pelo magistrado a quo. Confirmação de que a eleitora permanece com domicílio no município de origem. Elementos do instrumento contratual e do contexto do pedido de transferência a impor fundado descrédito sobre comprovante de residência. Circunstâncias indicativas de transferência fraudulenta.
Provimento negado.

(TRE-RS, RE n. 0600019-66.2020.6.21.0032, Rel. Des. Eleitoral Silvio Ronaldo Santos de Moraes, julgado em 04.5.2020.) 
 

Tal como naquele caso, não há razões para modificar a decisão do probo Juiz monocrático que indeferiu o requerimento de transferência eleitoral para o município de Boa Vista das Missões, inclusive no tocante à determinação de remessa de cópia dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para apuração de eventual prática criminosa.

Ante o exposto, VOTO pelo desprovimento do recurso, mantendo integralmente a decisão que indeferiu o alistamento eleitoral de VALDAIR ROCHA DE LIMA no município de Boa Vista das Missões/RS.