Pet - 0600290-11.2019.6.21.0000 - Voto Relator(a) - Sessão: 13/07/2020 às 14:00

Após atenta leitura e muita reflexão acerca da bem lançada linha argumentativa desenvolvida pelo ilustre Relator, Desembargador Eleitoral Armínio José Abreu Lima da Rosa, sobre o estudo das normas editadas pelo TSE para regulamentar as contas de campanha ao longo dos pleitos, estou convencido do acerto da conclusão no sentido de que a melhor exegese a ser conferida ao § 1º do art. 54 da Resolução TSE n. 23.406/2014 é aquela que condiciona a regularização das contas “às hipóteses em que inexistem valores a serem recolhidos ao Tesouro Nacional”.

As judiciosas razões do nobre Relator não deixam dúvidas de que a análise teleológica e sistemática dos dispositivos contidos na própria norma impõem aos candidatos que deixaram de prestar contas nas eleições de 2014 o dever de recolhimento de quantias irregularmente recebidas ao erário para que eventual regularização da situação de omissão seja aceita pela Justiça Eleitoral.

Quanto à falta de expressa previsão normativa estabelecendo este requisito, pondero que a ideia ratificada por Montesquieu ao defender que o juiz seria exclusivamente “a boca da lei” (La bouche de La loi), sem interpretá-la ou valorá-la, está há muito tempo superada. O papel do juiz contemporâneo é visto como o de intérprete, hermeneuta e aplicador da legislação, conforme Norberto Bobbio propôs em sua teoria funcionalista do direito (BOBBIO, Norberto. Da Estrutura à função. Novos estudos de teoria do direito. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. São Paulo. Ed. Manole. 2007, p. 208-209).

Daí porque concluo que a solução mais consentânea e alinhada às regras previstas na Resolução TSE n. 23.406/2014 é a trazida pelo digno Relator em sua aquilatada abordagem exegética, a qual de fato não foi observada por este Tribunal quando da interpretação do seu art. 54, § 1º, em julgamento de casos análogos ao submetido a julgamento, também relacionados à eleição de 2014.

Em verdade, verifiquei que a lacuna oculta trazida a lume pelo voto condutor também pode ser observada nas resoluções que regulamentaram as contas de campanha das eleições municipais de 2012 (Res. TSE n. 23376/2012), eleições gerais de 2010 (Res. TSE n. 23.217/2010) e os pleitos anteriores a estes. Nesses atos normativos a literalidade também foi limitada à exigência da mera apresentação das contas para o levantamento da ausência de quitação eleitoral dos candidatos omissos.

Sobre a temática da evolução jurisprudencial ou da superação de precedentes, anoto que o entendimento que tenho reiteradamente expressado nesta Corte tem se pautado pela convicção de que a jurisprudência é obra viva de determinado momento histórico que, por sua própria natureza, reclama mutabilidade de acordo com a evolução da sociedade e do pensamento jurídico (TRE-RS, PC n. 0602520-60, j. 2.6.2020). Tal fato se deve à própria natureza da atividade jurisdicional de interpretar a legislação.

Em sua Teoria Pura do Direito, Hans Kelsen já dizia que o ideal de que só há interpretação jurídica “correta” é uma ficção “realizável aproximativamente” (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed.. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 396). E, no mesmo sentido, Maria Helena Dinz, ao citar Francesco Degni, refere que “A clareza de um texto legal é coisa relativa” (DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 381).

Aqui permito-me trazer ensinamentos, e os tenho por basilares, do saudoso mestre Prof. Ovídio A. Baptista da Silva. Sem pretender aprofundar até porque se trata de mera declaração de voto, creio que o debate, de forma tão oportuna instigado pelo nobre Relator em seu destacado voto, e até mesmo em homenagem ao seu labor, porquanto perfilho em gênero, número e espécie com a aplicação da norma a partir dos quadrantes delineados pela hermenêutica jurídica, é que transcrevo passagens do inesquecível mestre:

“É uma graça divina – como pensou ouvir José Saramago, no diálogo mantido entre Deus e Jesus – que a lei não tenha uma vontade invariável, mas inúmeras vontades, ou inúmeros "sentidos" que essa "vontade" poderá assumir, em momentos diferentes de seu percurso histórico, a serem revelados pelo intérprete, segundo suas "circunstâncias" e as exigências políticas e sociais de seu tempo, de modo a harmonizar o texto – imperfeita expressão gráfica da norma – com as expectativas humanas contemporâneas ao intérprete que o deva aplicar.

O divino diálogo teria revelado que nós, homens, somos induzidos a "acreditar somente no que vemos", embora se saiba que "vemos as mesmas coisa de maneira diferente", o que, diz o escritor, "tem-se mostrado excelente para a sobrevivência e relativa sanidade mental da espécie" (O Evangelho segundo Jesus Cristo, Companhia das Letras, 1991, São Paulo, p. 378).

Se o texto deve ser "compreendido" pelo intérprete, sabendo-se que ele pode conter, na imensa maioria dos casos concretos, duas ou mais soluções possíveis e legítimas a consequência será o reconhecimento de que a jurisdição jamais será apenas declaratória da única "vontade do legislador"; ou da "única " vontade contida na lei.

A abertura do texto, permitindo que, hermeneuticamente, o interpretemos e os magistrados verdadeiramente "decidam" – por isso que detentores de poder discricionário –, decidindo-se entre as alternativas autorizadas pelo norma –, será transformá-los em juízes responsáveis”.

(Baptista da Silva, Ovídio A. “Fundamentação das Sentenças como garantia constitucional” in Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica (RIHJ), Belo Horizonte, ano 1, n. 4, jan/dez 2006).

 

Apesar do novo entendimento proposto pelo nobre Relator afigurar-se inegavelmente salutar e necessário à efetividade da atuação da Justiça Eleitoral na análise dos pedidos de regularização da situação de inadimplência dos candidatos, entendo que em atenção aos princípios da segurança jurídica, da proteção à confiança e da isonomia, que a conclusão do julgamento deve seguir, por coerência e simetria, a linha de entendimento adotada pelo TRE-RS para as prestações de contas das eleições de 2014 e pleitos anteriores.

Tais máximas restarão violadas caso esta Corte adote, para a candidata Jaqueline Pereira Silveira, um tratamento que não foi dado a nenhum dos demais candidatos que não apresentaram as contas de campanha das eleições de 2014 e de todas as que lhe antecederam, e posteriormente postularam a esta Corte, e aos respectivos juízes eleitorais de primeiro grau, a regularização da omissão.

A adoção da nova proposição conduziria à possibilidade de que um candidato omisso e que depois obteve decisão pela regularização da quitação eleitoral, nas mesmas circunstâncias fáticas da ora requerente, venha a concorrer nas próximas eleições sem ter recolhido ao erário eventuais valores irregularmente recebidos durante a campanha, não se mostrando equânime a alteração do entendimento até então consolidado para que somente após o pagamento seja regularizada a quitação eleitoral da candidata.

Assim, embora eu concorde integralmente com os fundamentos apresentados pelo nobre Relator para indeferir o pedido de regularização das contas da candidata, entendo que deve prevalecer, no caso concreto, a posição divergente inaugurada pelo ilustre Des. Eleitoral Silvio Ronaldo Santos de Moraes, o qual decide pela condenação da requerente ao recolhimento de valores ao Tesouro Nacional e deferimento do pedido de regularização.

Friso que os valores irregularmente recebidos poderão ser recolhidos pela interessada após o trânsito em julgado da decisão, ou ser objeto de cobrança por intermédio do procedimento de cumprimento de sentença previsto no CPC.

Agrego, também, às razões do voto divergente, que o Plenário do Supremo Tribunal Federal ressaltou que a relevância do princípio da segurança jurídica, para o regular transcurso dos processos eleitorais, está fulcrada no princípio da anterioridade eleitoral positivado no art. 16 da Constituição Federal, determinando que as decisões da Justiça Eleitoral que “no curso do pleito eleitoral (ou logo após o seu encerramento), impliquem mudança de jurisprudência (e dessa forma repercutam sobre a segurança jurídica), não têm aplicabilidade imediata ao caso concreto e somente terão eficácia sobre outros casos no pleito eleitoral posterior”(RE: 637485, Re. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe 21.5.2013).

Sob esse prisma, ainda que seja inegável que a jurisprudência possa e deva evoluir, tal modificação deve ser realizada de forma prospectiva, especialmente no caso da Justiça Eleitoral, pois cada eleição funciona como um certame, e nele a disputa entre partidos e candidatos deve ser realizada com regras certas e com interpretação judicial uniforme de modo a garantir a isonomia entre os atores envolvidos no pleito.

Com esses fundamentos, acompanho o voto divergente.