RE - 38215 - Sessão: 21/05/2020 às 14:00

Com a vênia ao voto do ilustre relator, estou aderindo à divergência quanto ao reenquadramento jurídico do fato, inaugurada pelo eminente Des. Eleitoral Villarinho.

Como se percebe, o objeto fático em análise consiste na arrecadação irregular de recursos pelo tesoureiro de campanha, Guilherme Ortiz de Souza, junto a empresas que mantinham contratos com a administração pública do município.

A conduta descrita pode, em tese, caracterizar duas figuras jurídico-eleitorais diversas, com requisitos e efeitos próprios: a primeira representada pela captação ilícita de recursos em campanha eleitoral, sancionada nos termos do art. 30-A da Lei n. 9.504/97, e a segunda consistente no abuso de poder econômico, previsto no art. 22, caput, da Lei Complementar n. 64/90.

Sob a ótica do caput do art. 22 da Lei Complementar n. 64/90, o abuso de poder representa um instituto de textura aberta e não se limita por condutas taxativas ou verbos predefinidos na lei. Trata-se, na dicção de José Jairo Gomes, “de conceito fluido, indeterminado, que, na realidade fenomênica, pode assumir contorno diversos” (Direito eleitoral. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 655).

Desse modo, a jurisprudência do TSE admite, conforme as circunstâncias fáticas, que a captação ilícita de recursos configure, igualmente, o abuso de poder econômico, desde que evidenciada a gravidade das circunstâncias para romper a normalidade e legitimidade da eleição.

É assim o preceito contido no art. 22, inc. XVI, da Lei Complementar n. 64/90, consoante o qual, “para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam”.

Sobre o tema, destaco a elucidativa lição de Rodrigo Lópes Zilio (Direito eleitoral. 6. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2018, p. 649):

A AIJE visa proteger a normalidade e legitimidade do pleito, na forma prevista pelo art. 14, §9°, da CF. Por conseguinte, para a procedência da AIJE é necessária a incidência de uma das hipóteses de cabimento (abuso do poder econômico, abuso do poder de autoridade ou político, utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social e transgressão de valores pecuniários), além da prova de que o ato abusivo rompeu o bem jurídico tutelado, ou seja, teve potencialidade de influência na lisura do pleito (ou, na dicção legal do art. 22, XVI, da LC nº 64/90, a prova da “gravidade das circunstâncias” do ato abusivo).

Embora a expressão “gravidade das circunstâncias” revele, a princípio, também um conceito jurídico indeterminado, a jurisprudência da Corte Superior esclarece que o desatendimento às regras de arrecadação pode ser examinado sob o prisma do abuso “quando o excesso das irregularidades e seu montante estão aptos a demonstrar a existência de abuso de poder econômico” (REspe 130-68, Rel. Min. Henrique Neves, DJe 4.9.2013), bem como “ante a proporção de recursos ilícitos” (REspe 76064, Rel. Min. Antônio Herman de Vasconcelos e Benjamin, DJe 29.09.2016).

Nesse sentido, resta claro que a formação de “caixa 2” de campanha, no montante de R$ 456.950,00 - recebidos de pessoas não identificadas e de pessoas jurídicas, inclusive em moeda estrangeira, correspondendo a 41,31% do total de receitas efetivamente declarado à Justiça Eleitoral -, coloca os candidatos em posição econômica privilegiada, de maneira a comprometer gravemente a isonomia do processo eleitoral e a igualdade entre os concorrentes ao pleito.

Com essas singelas considerações, acompanho o nobre relator quanto à solução das demais preliminares e, com as devidas vênias, alinho-me à divergência no tocante ao enquadramento jurídico do fato, entendendo suficientemente caracterizado o abuso de poder econômico.

Quanto ao mérito, acompanho integralmente o criterioso voto lançado pelo douto relator.

Apenas ressalto que, em relação ao abuso de poder, a procedência da ação pode acarretar a cassação do diploma e a decretação da inelegibilidade, de acordo com a condição do sujeito passivo de autor da conduta ou de mero beneficiário, em consonância com o art. 22, inc. XIV, da Lei Complementar n. 64/90.

A cassação do mandato contenta-se com a mera condição de beneficiário do ato abusivo, sendo despicienda a prova de sua contribuição ou anuência com o fato para a aplicação da drástica consequência, uma vez que o que se busca é o reestabelecimento da normalidade e legitimidade das eleições.

Porém, cuidando-se de candidatos não eleitos, não se falará em cassação de diploma, porque este não existe.

Por outro lado, para a incidência da sanção de inelegibilidade, imprescindível a comprovação da efetiva participação, direta ou indireta, dos agentes.

Deveras, nesta hipótese, adota-se a teoria da responsabilização subjetiva na aplicação da inelegibilidade, ou seja, são imprescindíveis elementos probatórios que revelem, no mínimo, o prévio conhecimento ou a anuência dos candidatos sobre o ato ilícito praticado.

Nesse aspecto, o TSE enuncia que “A sanção de inelegibilidade tem natureza personalíssima, razão pela qual incide somente perante quem efetivamente praticou a conduta” (MS 370-82, Relator Min. Henrique Neves da Silva, DJe de 02.09.2016).

No caso em análise, de todo o conjunto probatório coligido aos autos, não se verifica qualquer conduta abusiva que possa ser atribuída de forma objetiva e cabal aos recorrentes Beth Colombo e Mário Cardoso ou a eles imputada, não cabendo a atração da responsabilidade com fundamento na mera condição de beneficiários ou em juízos de presunção quanto ao conhecimento da prática perpetrada.

Por outro lado, o contexto da apreensão dos valores e os contatos mantidos por Guilherme Ortiz de Souza com as empresas envolvidas confirmam de maneira induvidosa a autoria do ato abusivo, de modo que, quanto ao aludido recorrente, deve ser mantida a sanção de inelegibilidade pelo prazo de 8 anos.

 

ANTE O EXPOSTO, VOTO com a divergência quanto à prefacial de reenquadramento jurídico do fato e, quanto às demais preliminares e ao mérito, acompanho integralmente o bem-lançado voto do eminente relator.