Cta - 0600098-44.2020.6.21.0000 - Voto Relator(a) - Sessão: 11/05/2020 às 14:00

 VOTO

Conforme o art. 30, inc. VIII, do Código Eleitoral, compete aos Tribunais Regionais Eleitorais “responder, sobre matéria eleitoral, às consultas que lhes forem feitas, em tese, por autoridade pública ou partido político”.

O texto normativo requer, para o conhecimento da consulta, a presença simultânea de três requisitos: legitimidade do consulente, pertinência temática (matéria eleitoral) e formulação em tese.

Na espécie, o requisito subjetivo está preenchido, pois o consulente é prefeito do município de Porto Alegre, sendo considerado “autoridade pública” para fins de consulta eleitoral.

No que refere à pertinência temática, a matéria é eleitoral, pois a indagação diz respeito à possível prática da conduta tipificada no art. 73, § 10, da Lei n. 9.504/97, que veda, no ano em que se realizar eleição, a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da administração pública.

Quanto ao requisito da formulação em tese, o questionamento envolve conduta vedada cujo período de incidência da norma iniciou em 1º de janeiro de 2020, hipótese em que a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral sufragou entendimento no sentido de que eventual resposta não atenderia à abstração inerente à atividade consultiva da Justiça Eleitoral. Nessa linha de intelecção, a análise a respeito da configuração ou não da conduta vedada seria possível apenas diante das circunstâncias próprias do caso concreto:

CONSULTA. REQUISITOS. LEGITIMIDADE. SENADOR. TRATAMENTO TRIBUTÁRIO DIFERENCIADO. ANO DE ELEIÇÃO. ART. 73, § 10, DA LEI N. 9.504/97. CONDUTA VEDADA. NÃO CONHECIMENTO.

1. Conforme reiterada orientação deste Tribunal, “a análise da configuração ou não de conduta vedada somente é possível a partir dos fatos concretos que revelem suas circunstâncias próprias e o contexto em que inseridos” (Cta n. 154-24/DF, Rel. Min. Henrique Neves da Silva, DJe de 5.6.2014). No mesmo sentido: Cta n. 415-18/DF, Rel. Min. Rosa Weber, DJe de 12.12.2016; Cta n. 1036-83/DF, Rel. Min. Luciana Lóssio, DJe de 7.10.2014; Cta n. 98-59, de 26.4.2012, Rel. Min. Arnaldo Versiani, DJe de 30.5.2012.

2. As concessões de benefícios tributários apresentam diversas nuances e, por

implicarem renúncia ou redução da receita pública, sofrem vários condicionamentos e limitações, devendo basear-se em motivação que reflita a satisfação do interesse público e a consecução das finalidades previstas em diplomas específicos, por exemplo, o desenvolvimento de determinado setor econômico ou região. Desta feita, não há como examinar, pela via abstrata da consulta, ante a simples premissa de estar previsto em legislação específica vigente no ano que antecede a eleição, que determinado benefício tributário escaparia ao alcance da norma prevista no art. 73, § 10, da Lei das Eleições.

3. Consulta não conhecida.

(Consulta n. 060424166, Acórdão, Relator Min. Tarcisio Vieira De Carvalho Neto, Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Tomo 49, Data 12.03.2018.) (Grifo nosso)

Também é esta a orientação perfilhada pela Corte:

Consulta. Programa municipal de regularização fundiária. Art. 30, inc. VIII, do Código Eleitoral.

1. Consulente, prefeito municipal, detentor de legitimidade para formular consulta. Requisito subjetivo satisfeito.

2. Indagações que versam acerca de condutas vedadas, previstas no art. 73, § 10, da Lei n. 9.504/97. Formulação a destempo, quando já iniciado o período de incidência da norma. Requisito temporal não satisfeito.

3. A sequência de questionamentos apresentados, a permitir uma série de soluções jurídicas cogitáveis, também obsta a elaboração de respostas, sob pena de enfrentamento de caso concreto. Requisito objetivo não preenchido.

4. Exceção feita à primeira indagação, formulada em tese, possibilitando a superação dos obstáculos mencionados para o seu esclarecimento.

Consulta conhecida em parte.

(Consulta n. 120-93, ACÓRDÃO de 22.08.2016, Relatora DRA. GISELE ANNE VIEIRA DE AZAMBUJA, Publicação: DEJERS - Diário de Justiça Eletrônico do TRE-RS, Tomo 154, Data 24.8.2016, Página 5.) (Grifo nosso)

Dessarte, a solução jurídica ordinária seria pelo não conhecimento da consulta, pois não preenchido o parâmetro da abstração, e em vigência o período da vedação.

Contudo, a situação posta nos autos é excepcional, o que exige o tratamento de forma extraordinária, diferenciada.

Como pontuado pelo douto Procurador Eleitoral, não há como olvidar o grave momento pelo qual estão passando o Brasil e o mundo diante da pandemia do novo coronavírus (Covid-19), que trouxe desafios para os governos quanto aos cuidados com a saúde coletiva, com a necessidade de atendimento da população por meio da distribuição de alimentos, serviços e recursos para evitar a convulsão social.

O ingrediente extra: o novo coronavírus surge em pleno ano eleitoral, período no qual a administração pública está submetida a restrições por meio da legislação eleitoral, que coíbe condutas que possam caracterizar promoção pessoal de gestores públicos e proveito político da distribuição gratuita de bens e serviços à população.

Para ilustrar a excepcionalidade do momento, registro que, em relação às restrições orçamentárias e fiscais impostas aos gestores públicos, em 29.03.2020, o Ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, concedeu medida cautelar, no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.357/DF, para afastar a incidência de dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal durante o estado de calamidade pública, em relação às medidas para a prevenção e combate aos efeitos da pandemia do novo coronavírus.

Por oportuno, transcrevo trecho do que constou na decisão liminar:

O surgimento da pandemia de COVID-19 representa uma condição superveniente absolutamente imprevisível e de consequências gravíssimas, que afetará, drasticamente, a execução orçamentária anteriormente planejada, exigindo atuação urgente, duradoura e coordenada de todos as autoridades federais, estaduais e municipais em defesa da vida, da saúde e da própria subsistência econômica de grande parcela da sociedade brasileira, tornando, por óbvio, lógica e juridicamente impossível o cumprimento de determinados requisitos legais compatíveis com momentos de normalidade.

[…]

A Constituição Federal, em diversos dispositivos, prevê princípios informadores e regras de competência no tocante à proteção da vida e da saúde pública, destacando, desde logo, no próprio preâmbulo a necessidade de o Estado Democrático assegurar o bem-estar da sociedade. Logicamente, dentro da ideia de bem-estar, deve ser destacada como uma das principais finalidades do Estado a efetividade de políticas públicas destinadas à saúde.

O direito à vida e à saúde aparecem como consequência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil. Nesse sentido, a Constituição Federal consagrou, nos artigos 196 e 197, a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantindo sua universalidade e igualdade no acesso às ações e serviços de saúde.

A gravidade da emergência causada pela pandemia do COVID-19 (Coronavírus) exige das autoridades brasileiras, em todos os níveis de governo, a efetivação concreta da proteção à saúde pública, com a adoção de todas as medidas possíveis para o apoio e manutenção das atividades do Sistema Único de Saúde.

O desafio que a situação atual coloca à sociedade brasileira e às autoridades públicas é da mais elevada gravidade, e não pode ser minimizado. (Grifo nosso)

Nesse cenário, de extrema gravidade e excepcionalidade, é que tenho por ultrapassar eventual óbice ao conhecimento da consulta e avançar no mérito, com o escopo colaborativo de oferecer subsídio para guiar a atuação do gestor público neste momento de dificuldades de todas as ordens, econômica, social e sanitária.

A propósito, registro que o Tribunal Superior Eleitoral possui precedente no qual agasalhou a posição de abrandar obstáculos formais para adentrar na análise de mérito de consulta que indagava acerca da possibilidade de doação, à população carente, de alimentos perecíveis (pescados) apreendidos em razão de infração legal:

CONSULTA. MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL. ART. 73, § 10, DA LEI Nº 9.504/1997. ALIMENTOS PERECÍVEIS APREENDIDOS EM RAZÃO DE INFRAÇÃO LEGAL. PERDIMENTO.

1. É possível, em ano de eleição, a realização de doação de pescados ou de produtos perecíveis quando justificada nas situações de calamidade pública ou estado de emergência ou, ainda, se destinada a programas sociais com autorização específica em lei e com execução orçamentária já no ano anterior ao pleito. No caso dos programas sociais, deve haver correlação entre o seu objeto e a coleta de alimentos perecíveis apreendidos em razão de infração legal.

2. Consulta respondida afirmativamente.

(TSE - Consulta n. 5639, Acórdão, Relator Min. Gilmar Mendes, Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Tomo 194, Data 13.10.2015, Página 84.)

Com essas considerações, tenho por conhecer da presente consulta e passo ao exame de mérito.

 

Mérito.

A consulta foi formulada nos seguintes termos:

A legislação eleitoral veda que um Município, em ano eleitoral, venha a editar lei prevendo benefícios gratuitos à população, em especial isenção de tarifa de água e esgoto e concessão de benefícios assistenciais, no contexto de um estado de calamidade pública declarado via Decreto Municipal e reconhecido nacionalmente?

A solução do questionamento envolve a incidência do § 10 do art. 73 da Lei n. 9.504/97:

Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:

[…]

§ 10. No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa. (Grifo nosso)

A dicção legal é clara ao estabelecer que a regra é a vedação de que haja distribuição gratuita de bens em ano eleitoral. Excepcionam-se, modo objetivo e taxativo, as hipóteses de calamidade pública, estado de emergência ou existência de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior.

Entretanto, como ressalvado pelo douto Procurador Eleitoral, em face do caráter de excludente legal, e diante da urgência e necessidade configuradoras da calamidade pública, os benefícios concedidos gratuitamente devem guardar estrita e justificada pertinência, seja no seu conteúdo, nos prazos, ou no que tange aos seus beneficiários, com a causa que motivou a decretação do estado de calamidade pública, sob pena de, caso contrário, operar-se desvio do interesse público emergencial que justificou a exceção em comento.

Esta é a orientação doutrinária de Rodrigo López Zilio acerca da matéria:

As hipóteses de calamidade pública e estado de emergência devem estar previstas em lei específica ou no respectivo decreto, de forma a configurar a exceção da conduta vedada pelo § 10 do art. 73 da LE. A autoridade que decreta a calamidade pública tem o dever de justificar e demonstrar a existência da situação fática excepcional, sob pena de responsabilização. Logo, é insuficiente a mera alegação fática da existência da situação excepcional. Observados os requisitos legais e devidamente comprovada a situação excepcional, torna-se possível a distribuição gratuita de bens, valores e benefícios em ano eleitoral, desde que não haja excesso ou uso eleitoreiro nessa ação. Com efeito, não é possível ao administrador, sob o pretexto de abrigo em uma excludente legal, transmudar o ato de calamidade pública ou estado de emergência em vantagem eleitoral, distribuindo bens para pessoas diversas das necessitadas ou repassando recursos financeiros além do necessário para sofrear a situação excepcional.

(Direito Eleitoral. 6. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2018, pp. 736-737.)

Portanto, na hipótese de decretação do estado de calamidade pública, fica autorizada a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da administração pública. Não há como atribuir valor absoluto às condutas vedadas aos agentes públicos, sem que seja conferida interpretação sistêmica em relação aos demais textos normativos e à realidade da crise vivenciada por conta de uma pandemia.

Todavia, é necessário observar que o administrador público, mesmo em face de situação de calamidade, está adstrito aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, nos termos do comando do art. 37 da Constituição Federal, sem que possa fazer uso da  distribuição gratuita de bens e valores com caráter eleitoreiro ou como forma de promoção pessoal, sob pena de incorrer na conduta vedada prevista no art. 73, inc. IV, da Lei n. 9.504/97:

Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:

[…]

IV - fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo Poder Público;

Ainda, é de ser destacado que a publicidade institucional relativamente a atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos, conforme preconiza o § 1º do art. 37 da CF, cujo descumprimento poderá caracterizar a prática de abuso de poder (art. 74 da Lei 9.504/97).

Em resumo: a calamidade pública é exceção à regra que proíbe, em ano eleitoral, a distribuição de bens, valores ou serviços pela administração pública, mas não isenta o gestor da observância dos princípios constitucionais no trato da coisa pública e não dispensa a adoção de critérios objetivos para estabelecer beneficiários, prazo de duração e motivação estrita relacionada à causa da situação excepcional.

Ante o exposto, VOTO, preliminarmente, pelo conhecimento da consulta e, no mérito, respondo negativamente, observadas as condicionantes constantes da fundamentação.