PC - 2796 - Sessão: 16/10/2020 às 14:00

RELATÓRIO

O DIRETÓRIO REGIONAL do PARTIDO DOS TRABALHADORES (PT) no RIO GRANDE DO SUL apresentou prestação de contas referente ao exercício financeiro de 2016 (fls. 02-15 e 23-1134).

A Secretaria de Auditoria Interna (SAI) realizou exame preliminar das contas, apontando a necessidade de complementação da documentação (fls. 1137-1138).

Intimados os dirigentes partidários para constituírem mandatários para representá-los nos autos (fl. 1151-v.), deixaram o prazo transcorrer in albis. Por seu turno, notificada, a agremiação juntou petição (fls. 1157-1158).

Com autorização para acesso às contas e aos extratos bancários da agremiação (fls. 1151-v.), o órgão técnico realizou exame da contabilidade (fls. 1172-1191), e abriu-se novo prazo para os interessados se manifestarem sobre as irregularidades constatadas, o que ocorreu com a juntada de petição e dos documentos de fls. 1199-1459.

Em parecer conclusivo, o órgão técnico opinou pela desaprovação das contas e pelo recolhimento de valores ao Tesouro Nacional, diante dos seguintes apontamentos: a) recebimento de recursos de fonte vedada, nos termos art. 14, § 1º, da Resolução TSE n. 23.464/15, no total de R$ 32.018,78 (trinta e dois mil, dezoito reais e setenta e oito centavos), a ser recolhido ao Tesouro Nacional; b) não aplicação dos valores para a criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, nos termos do art. 44, inc. V, c/c o § 5º, da Lei n. 9.096/95; e c) aplicação irregular de recursos oriundos do Fundo Partidário, no valor de R$ 6.651,71 (fls. 1462-1470).

Com vista dos autos, a Procuradoria Regional Eleitoral opinou, inicialmente, pelo reconhecimento, incidental, da inconstitucionalidade do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, incluído pela Lei n. 13.831/19 (fl. 1479v.), e, ao final, manifestou-se pela aprovação das contas com ressalvas, com o recolhimento de R$ 32.018,78 ao Tesouro Nacional, a suspensão do repasse das quotas do Fundo Partidário pelo período de 1 (um) mês e a aplicação do valor de R$ 11.000,00 para a criação e manutenção de programas visando promover a participação política das mulheres (fls. 1473-1485).

Intimados os interessados a manifestarem-se sobre o pedido da Procuradoria Regional Eleitoral de reconhecimento, incidental, de inconstitucionalidade do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, incluído pela Lei n. 13.831/19 (fl. 1479v.), bem como considerando as recentes decisões desta Corte Eleitoral sobre as disposições dos arts. 55-A e 55-C da Lei n. 9.096/95, tendo em vista o princípio da não surpresa, apresentaram peça nas fls. 1494-1512.

É o breve relatório.

VOTO

Senhor Presidente,

Eminentes colegas:

Trata-se do exame da contabilidade do exercício de 2016 do DIRETÓRIO REGIONAL do PARTIDO DOS TRABALHADORES (PT) no RIO GRANDE DO SUL, disciplinado, quanto ao mérito, pela Resolução TSE n. 23.464/15.

No primeiro momento, cumpre esclarecer que os interessados foram intimados para dizer sobre os apontamentos do órgão técnico, tendo a grei prestado esclarecimentos e fornecido documentos complementares para provar suas alegações. Assim, oportunizada manifestação nos presentes autos, deixei de abrir novo prazo para indicação de provas e/ou apresentação de novas alegações finais, nos termos do rito da Resolução TSE n. 23.604/19. Na hipótese, o deferimento de tal medida poderia implicar alongamento indevido da marcha processual, cabendo destacar que, na espécie, o exame do mérito está sujeito a prazos decadenciais em favor do prestador de contas.

Passo à análise da contabilidade.

Inicialmente, deve ser examinada a possibilidade de aplicação ao feito dos arts. 55-A e  55-D da Lei n. 9.096/95, por serem questões prejudiciais à análise do mérito.

Principio, ex officio, com o exame do art. 55-A da Lei n. 9.096/95, por ser norma que trata da aplicação de valores para a criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, regra a ser analisada no caso dos autos e que decorreu de recente alteração legislativa sobre a matéria, tendo sido incluída pela Lei n. 13.831, de 2019, restando assim disciplinada, verbis:

Art. 55-A.  Os partidos que não tenham observado a aplicação de recursos prevista no inciso V do caput do art. 44 desta Lei nos exercícios anteriores a 2019, e que tenham utilizado esses recursos no financiamento das candidaturas femininas até as eleições de 2018, não poderão ter suas contas rejeitadas ou sofrer qualquer outra penalidade.  (Incluído pela Lei nº 13.831, de 2019)

Ocorre que o art. 55-A da Lei n. 9.096/95 foi considerado inconstitucional pelo TRE-RS nos autos do RE n. 17-64.2018.6.21.0114, da relatoria do Des. El. Gerson Fischmann, julgado na sessão de 20.4.2020, cuja ementa cumpre transcrever:

RECURSO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. PARTIDO POLÍTICO. DIRETÓRIO MUNICIPAL. EXERCÍCIO FINANCEIRO 2017. DESAPROVAÇÃO. PRELIMINAR DE ARGUIÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE DOS ARTS. 55-A, 55-C E 55-D DA LEI DOS PARTIDOS POLÍTICOS ACOLHIDA. AFASTADA A APLICAÇÃO DOS REFERIDOS DISPOSITIVOS NO CASO CONCRETO. MÉRITO. FONTES VEDADAS. DESCUMPRIMENTO DA NORMA QUE PREVÊ A DESTINAÇÃO DE RECURSOS DO FUNDO PARTIDÁRIO PARA A CRIAÇÃO E DIFUSÃO DE PROGRAMAS VISANDO A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DAS MULHERES. REDUÇÃO DO VALOR A SER RECOLHIDO AO TESOURO NACIONAL. AFASTADA A MULTA. PARCIAL PROVIMENTO.

1. Prefacial de arguição de inconstitucionalidade dos arts. 55-A, 55-C e 55-D, incluídos na Lei n. 9.096/95 pela Lei n. 13.831/19. 1.1. O art. 55-D, o qual refere-se à anistia das devoluções, cobranças ou transferências ao erário feitas em anos anteriores por servidores públicos ocupantes de cargos com poder de autoridades, desde que filiados a partidos políticos, já foi declarado inconstitucional por esta Corte. Verificada a ocorrência de vício de inconstitucionalidade formal e material, porquanto não apresentada estimativa de impacto orçamentário, além da violação dos princípios da prestação de contas, da moralidade administrativa e da integridade legislativa. 1.2. Os arts. 55-A e 55-C determinam que as agremiações que descumpriram, nos exercícios anteriores a 2019, a obrigação de aplicar o percentual mínimo de 5% dos recursos do Fundo Partidário na criação e manutenção de programas promovendo e difundindo a participação política das mulheres, mas que tenham utilizado tal verba no financiamento de candidaturas femininas até as eleições de 2018, não poderão ter suas contas rejeitadas ou sofrer qualquer outra penalidade. Os referidos dispositivos estabelecem, ainda, que a não observância da regra até o exercício de 2018 não enseja a desaprovação das contas. 1.2.1. Disposições que limitam a atuação do Poder Judiciário Eleitoral no julgamento das contas partidárias, em contrariedade ao inc. III do art. 17 da Constituição Federal, que prevê o dever de os partidos políticos prestarem contas à Justiça Eleitoral. Ao dispensar as agremiações de pagamento da multa e vedar ao órgão julgador a possibilidade de desaprovação das contas, o legislador interferiu na atuação do Poder Judiciário Eleitoral, a quem compete decidir pela regularidade, ou não, da movimentação financeira apresentada pelos partidos políticos, impedindo a apreciação integral das contas. 1.2.2. A autonomia partidária deve estar alinhada aos princípios e às regras tendentes a aperfeiçoar o regime democrático, que tem por base o pluralismo político e a diversidade de representação, especialmente no que concerne à proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana, mormente quando focados na promoção da igualdade de gênero, uma vez que mais da metade da população brasileira é constituída por mulheres. Para a agremiação partidária que descumpre o dispositivo, o § 5º do art. 44 da Lei n. 9.096/95 prevê que o saldo da verba oriunda do Fundo Partidário deverá ser transferido para conta bancária específica e utilizado para a finalidade legalmente estabelecida, dentro do exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5%, sujeitando-se o partido à desaprovação das contas, devolução da quantia ao Tesouro Nacional e ao pagamento da multa de até 20% sobre o valor, na forma do art. 37 da Lei n. 9.096/95. 1.2.3. Os arts. 55-A e 55-C da Lei n. 9.096/95 representam afronta ao princípio da igualdade insculpido na Constituição Federal, assim como ao princípio da vedação do retrocesso social, por caracterizarem manifesta restrição a direito fundamental, em virtude do tratamento desigual ao beneficiar os partidos políticos que descumpriram o comando legal de destinação de recursos do Fundo Partidário ao fomento à participação política das mulheres. 1.3. Acolhimento do incidente de inconstitucionalidade, afastando, no caso concreto, a aplicação dos arts. 55-A e 55-C da Lei n. 9.096/95, por violação à Constituição Federal, afronta aos princípios da igualdade, da inafastabilidade do Judiciário e da vedação do retrocesso, e desrespeito ao inc. III do art. 17 da Constituição Federal, bem como a aplicação do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, devido à ausência de previsão de estimativa de impacto orçamentário e financeiro da renúncia de receita, desatenção ao art. 113 do ADCT, inobservância do devido processo legislativo e violação ao art. 14 da Lei Complementar n. 101/00 e aos arts. 69 e 163 da Constituição Federal, além de descumprimento do princípio da anualidade ou anterioridade eleitoral insculpido no art. 16 da Constituição Federal.

(...)

4. Acolhido o incidente de inconstitucionalidade suscitado pela Procuradoria Regional Eleitoral. Parcial provimento ao recurso.

(TRE-RS, RE n. 17-64.2018.6.21.0114, rel. Des. El. Gerson Fischmann, julgado na sessão de 20.4.2020.)

Reproduzo, por oportuno, as razões do ilustre relator, às quais me filio, pois o dispositivo também merece ser declarado inconstitucional no caso dos autos, com base nos mesmos fundamentos:

Além disso, cumpre analisar a arguição de inconstitucionalidade dos arts. 55-A e 55-C da Lei n. 9.096/95.

Segundo a Procuradoria Regional Eleitoral, tais disposições foram incluídas na legislação de forma a mitigar as sanções previstas no § 5° do art. 44 da Lei n. 9.096/95 e são inconstitucionais à luz do art. 5º, inc. I, da Constituição Federal, “na medida em que, a um só tempo, incrementam a desigualdade já existente entre candidatos e promovem o retrocesso das ações até aqui realizadas”.

De fato, conforme antes referido, a norma, na redação vigente ao tempo do exercício financeiro de 2017, determinava ao partido a transferência de saldo do Fundo Partidário para a conta específica e sua utilização no exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5% quando os 5% não tenham sido investidos na promoção da participação das mulheres na política.

Os arts. 55-A e 55-C da Lei n. 9.096/95 estabelecem que os partidos que descumpriram, nos exercícios anteriores a 2019, a obrigação de aplicar o mínimo de 5% dos recursos do Fundo Partidário na criação e manutenção de programas promovendo e difundindo a participação política das mulheres, mas que tenham utilizado essa verba no financiamento de candidaturas femininas até as eleições de 2018, não poderão ter suas contas rejeitadas ou sofrer qualquer outra penalidade. Além disso, a não observância da regra até o exercício de 2018 não ensejará a desaprovação das contas.

Portanto, acompanho a argumentação do Parquet no sentido de que essas disposições limitam a atuação do Poder Judiciário Eleitoral no julgamento das contas partidárias, violando o inc. III do art. 17 da Constituição Federal, dispositivo que prevê o dever de os partidos políticos prestarem contas de suas finanças à Justiça Eleitoral.

Com efeito, ao dispensar as agremiações de pagamento da multa e vedar ao órgão julgador a possibilidade de desaprovar das contas, o legislador interferiu e limitou a plena atuação do Poder Judiciário Eleitoral, a quem compete decidir pela regularidade, ou não, da movimentação financeira apresentada pelos partidos políticos, impedindo a apreciação integral das contas.

O Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos, mais conhecido como Fundo Partidário, é constituído de dotações orçamentárias da União, multas e penalidades pecuniárias aplicadas nos termos do Código Eleitoral e das leis conexas, doações de pessoas físicas ou jurídicas, sendo, portanto, uma forma de financiamento público, não exclusivo, dos partidos políticos do Brasil.

Na regulamentação do emprego desses valores, a Lei n. 9.096/95 estabelece destinações específicas e vinculadas ao dever de prestar contas da sua aplicação à Justiça Eleitoral, defendendo o órgão ministerial que “a constitucional autonomia partidária, portanto, não proíbe a entrega de recursos públicos atrelados à sustentação de política pública de promoção de igualdade de gênero na política”.

Veja-se que, em verdade, o inc. V do art. 44 da Lei n. 9.096/95 nada mais fez que conferir concretude à política pública de igualdade de gênero na seara partidária e nas campanhas eleitorais, ao determinar que essa modalidade de ação afirmativa seja financiada com recursos públicos.

É certo que a autonomia partidária deve estar alinhada aos princípios e às regras tendentes a aperfeiçoar o regime democrático – que tem por base o pluralismo político e se alicerça na diversidade de representação –, especialmente no que concerne à proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana, mormente quando focados na promoção da igualdade de gênero, em um quadro generalizado de sub-representação feminina na política, verificado, nada obstante, que mais da metade da população brasileira seja constituída por mulheres.

Ora, as legendas que não observam a legislação, ao incluir em sua agenda a política afirmativa de criação e manutenção de programas promovendo e difundindo a participação política das mulheres, devem arcar com as consequências previstas no § 5° do art. 44 da Lei n. 9.096/95 quando do descumprimento: transferência do saldo de recursos do Fundo Partidário para conta específica destinada à ação afirmativa – sendo vedada sua aplicação para finalidade diversa –, para dispêndio dentro do exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5% do valor equivalente aos 5% previstos no inc. V do caput do mesmo dispositivo legal, a ser destinado para os mesmos fins.

As ações afirmativas são medidas que podem ser definidas como:

[…] um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional, bem como para corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.

(GOMES, Joaquim B. Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo direito constitucional brasileiro. In: SANTOS, Sales Augusto. (Org.). Ações afirmativas e combate ao racismo nas Américas. Brasília: MEC/SECAD, 2005, p. 55.)

Flávia Piovesan define as políticas públicas afirmativas como “discriminações positivas, um meio de exteriorização do princípio da solidariedade e um estímulo ao desenvolvimento social e à diversidade, elementos de suma importância para alavancar a inserção populacional no cenário do sistema capitalista de forma mais humanizada e comprometida com o desenvolvimento de uma sociedade justa, livre e solidária” (PIOVESAN, Flávia. As ações afirmativas sob a perspectiva dos direitos humanos. In: SANTOS, Sales Augusto. (Org.). Ações afirmativas e combate ao racismo nas Américas. Brasília: MEC/SECAD, 2005, p. 35-36).

Efetivamente, o desenvolvimento de uma sociedade justa, livre e solidária é objetivo fundamental da República brasileira, ditado pela Constituição Federal de 1988 a partir de uma inspiração pautada nos ideais de justiça e democracia, e que atuam, no mínimo, como vetores interpretativos da ordem jurídica como um todo (cf. SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2006. p. 295).

Desse modo, o objetivo da previsão de uma ação afirmativa nunca poderá ser o de restringir direitos, uma vez que o instituto visa, justamente, ao acolhimento, à correção das desigualdades, à proteção de direitos e nunca ao banimento ou à diminuição.

Por essas razões, o tema relaciona-se diretamente com o princípio da proibição do retrocesso, definido pelo jurista Ingo Wolfgang Sarlet como “toda e qualquer forma de proteção de direitos fundamentais em face de medidas do poder público, com destaque para o legislador e o administrador, que tenham por escopo a supressão ou mesmo restrição de direitos fundamentais (sejam eles sociais, ou não)”. (A assim designada proibição de retrocesso social e a construção de um direito constitucional comum latino-americano. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC. Belo Horizonte: Fórum, v. 3, n. 11, p. 167–204, jul./set., 09.)

Bem se evidencia que, no caso dos autos, a declaração da inconstitucionalidade é medida impositiva.

Ao tratar da normatividade dos princípios constitucionais e da sua eficácia negativa, o Ministro Luís Roberto Barroso leciona que “a eficácia negativa implica a paralisação da aplicação de qualquer norma ou ato jurídico que esteja em contrariedade com o princípio constitucional em questão. Dela pode resultar a declaração de inconstitucionalidade de uma lei, seja em ação direta – com sua retirada do sistema –, seja em controle incidental de constitucionalidade – com sua não incidência no caso concreto”. (Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5. ed., São Paulo: Saraiva, 2015, p. 359.)

O Parquet acrescenta, em sua manifestação, que, em 2015, o legislador, ciente de que a reserva de cotas de gênero nas listas de candidatos não basta para a superação da desigualdade representativa verificada entre homens e mulheres, “houve por bem obrigar a destinação, para promoção e difusão de participação política feminina, até o ano de 2024, de percentuais de 20% e 15% do tempo de acesso 'gratuito' dos partidos políticos ao rádio e à televisão. Desde 1995, a lei previa que os órgãos nacionais de direção partidária fixassem o tempo, respeitado o limite de 10%”.

E pondera que, efetivamente, o inc. V do art. 44 da Lei dos Partidos Políticos, ao obrigar a aplicação de recursos na promoção da participação feminina na política, faz cair por terra a alegação de “inexistência de mulheres vocacionadas, em quantidade necessária, para concorrer aos pleitos eleitorais”.

Esse dispositivo estabelece a alocação de recursos públicos do Fundo Partidário em benefício de mulheres, na consideração de pertencentes a um grupo discriminado e vitimado pela exclusão na participação da vida política brasileira.

Para a agremiação partidária que descumpre o dispositivo, o § 5º do art. 44 prevê que o saldo deverá ser transferido para uma conta bancária específica e utilizado para a finalidade legalmente estabelecida, dentro do exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5%, sujeitando-se o partido à desaprovação das contas, devolução da quantia ao Tesouro Nacional e ao pagamento da multa de até 20% sobre o valor, na forma do art. 37 da Lei n. 9.096/95.

Sobre o apenamento, o órgão ministerial, com propriedade, traz à colação excerto de ementa de um precedente do Tribunal Superior Eleitoral nos autos da prestação de contas de diretório nacional PC 292-88, da relatoria do Min. Og Fernandes, publicado em 8.5.19, no qual se assentou que “o reiterado descumprimento das normas de incentivo à participação política da mulher caracteriza falha grave, apta a ensejar a desaprovação das contas”:

PRESTAÇÃO DE CONTAS DE PARTIDO POLÍTICO. DEMOCRATAS (DEM) - DIRETÓRIO NACIONAL. EXERCÍCIO FINANCEIRO DE 2013. IRREGULARIDADES QUE TOTALIZAM R$ 1.304.484,60, EQUIVALENTE A 7,2% DO VALOR RECEBIDO DO FUNDO PARTIDÁRIO. REITERAÇÃO NO DESCUMPRIMENTO DA DESTINAÇÃO DE RECURSOS DO FUNDO PARTIDÁRIO À PARTICIPAÇÃO FEMININA NA POLÍTICA. FALHA GRAVE. DESAPROVAÇÃO. IMPOSIÇÃO DE RESSARCIMENTO AO ERÁRIO DAS QUANTIAS RECEBIDAS DO FUNDO PARTIDÁRIO E IRREGULARMENTE APLICADAS. SANÇÕES DE ACRÉSCIMO DE 2,5% NO GASTO COM O INCENTIVO À PARTICIPAÇÃO DA MULHER NA POLÍTICA E DE SUSPENSÃO DA COTA DO FUNDO PARTIDÁRIO POR 1 MÊS, DIVIDIDO EM QUATRO PARCELAS. SANÇÃO MÍNIMA. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE. PRECEDENTES.

(...)

7.3. Desaprovação das contas. Falha grave. Apesar de o percentual da aplicação irregular de recursos recebidos do Fundo Partidário não ser significativo, o reiterado descumprimento das normas de incentivo à participação política da mulher caracteriza falha grave, apta a ensejar, na linha da orientação desta Corte, a desaprovação das contas.

Precedentes.

8. Determinação

8.1. Devolução ao erário de R$ 398.642,99, devidamente atualizados, que devem ser pagos com recursos próprios do partido.

8.2. Aplicação de 5% do total do Fundo Partidário para o incentivo à participação feminina na política, acrescido de 2,5%, devendo essa implementação ocorrer no exercício seguinte ao do julgamento destas contas - salvo se o tiver feito em exercícios anteriores a este marco -, para garantir a efetiva aplicação da norma, sem prejuízo do valor a ser destinado a esse fim no ano respectivo. Precedentes.

8.3. Suspensão do repasse de uma única cota do Fundo Partidário - patamar mínimo, conforme dispõe o art. 37, § 3º, da Lei nº 9.096/95 -, a ser cumprida de forma parcelada, em quatro vezes, com valores iguais e consecutivos, a fim de manter o regular funcionamento do partido.

(TSE, PC 292-88.2014.6.00.0000, Rel. Min. Og Fernandes. DJE 8.5.2019.) (Grifei.)

Ademais, ainda que os arts. 55-A e 55-C da Lei dos Partidos Políticos sejam compreendidos como reação legislativa – enquanto modalidade de “ativismo congressual” amparada pelo princípio da separação entre os poderes –, não seria possível a invocação do instituto, pois esses dispositivos representam, na hipótese vertente, violação aos princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade e da vedação do retrocesso social, por interferirem de forma prejudicial na eficácia do cumprimento da ação afirmativa, premiando os partidos políticos que a desrespeitaram.

Os postulados da igualdade e da vedação do retrocesso social dialogam com o princípio da segurança jurídica, pois as disposições legais sob exame apresentam-se com o claro propósito de salvaguarda ao descumprimento do inc. V do art. 44 da Lei n. 9.096/95 e, conforme defende a Procuradoria Regional Eleitoral, “de violação à autoridade de julgados do STF –, ao permitir uma postergação de futura execução de decisão que reconheceu a não aplicação do percentual destinado às candidaturas femininas”.

Nos judiciosos argumentos apresentados, a Procuradoria Regional Eleitoral ressalta que, em 15.3.18, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5617, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu que a distribuição de recursos do Fundo Partidário destinados ao financiamento das campanhas de mulheres deve ser idêntica à realizada para os homens, respeitado o patamar mínimo de 30% para as candidatas, sendo inconstitucional a fixação de prazo para a regra, como determinava o art. 9º da Lei n. 13.165/15, e que a distribuição não discriminatória deve perdurar enquanto for justificada a necessidade de composição mínima das candidaturas femininas:

Ora, não pode o legislador criar hipótese de dispensa de princípio constitucional nem fragilizar sentença proferida na esfera eleitoral. Em suma, desconsidera o dever constitucional de prestar contas e retira sanção de eventual não efetivação do dever constitucional de prestar contas.

Assim, o art. 55-A inserido pela nova lei não tornou regular o que é irregular, mas afastou o sancionamento até o exercício de 2018 e dispensou o pagamento da multa.

O art. 55-C afirma que a não observância do percentual não ensejará a desaprovação das contas.

Cumpre dizer, mais uma vez, que a nova lei não retirou o caráter ilícito da conduta de não aplicar o percentual da participação feminina na política. A lei não tornou regular o que é irregular; não convalidou – nem poderia – prática ilegal e inconstitucional (já que desrespeita a autoridade do julgado proferido pelo STF na ADIn 5617). A lesão observada – de não cumprimento da aplicação do percentual feminino – permanece incólume.

É fundamental que a Justiça Eleitoral continue afirmando sobre a ilicitude da conduta de não aplicar o percentual da participação feminina na política.

Admitir como válida e legítima tal criação legislativa é desconsiderar a sentença no plano da teoria do direito.

Assim, não pode o legislador transformar a sentença que julga a prestação de contas em algo sem imperatividade, sem coercibilidade. Seria postergar ainda mais a decisão do STF na qual se já fez a modulação dos efeitos (ED na ADIn 5617, j.02.10.18). Afirmar que não é possível a desaprovação das contas vai contra a própria jurisprudência – recente – do Tribunal Superior Eleitoral que consigna: “7.3. Desaprovação das contas. Falha grave. Apesar de o percentual da aplicação irregular de recursos recebidos do Fundo Partidário não ser significativo, o reiterado descumprimento das normas de incentivo à participação política da mulher caracteriza falha grave, apta a ensejar, na linha da orientação desta Corte, a desaprovação das contas. Precedentes.” (Trecho da ementa do acórdão da PC n. 292- 88.2014.6.00.0000/DF, j. 28.03.19.)

Segundo o Parquet, essas disposições, acaso mantidas, representarão inequívoco prejuízo à democracia em que vivemos, onde metade da população é sub-representada e patologicamente organizada, pois a sub-representação política é fator de dominação, inferioridade e sujeição:

Em uma república estabelecida por uma sociedade justa, fraterna e solidária, não deve haver a possibilidade de um contingente humano equivalente à metade da população não se fazer presente de forma marcante na amostra política dos representantes de toda a sociedade nos parlamentos.

A gravidade desse quadro exigiu e exige políticas públicas de promoção de igualdade de gênero na representação política da sociedade.

Na seara das mais explícitas políticas de promoção de paritário acesso para promoção de igualdade, houve opção legislativa por percentuais mínimos e máximos de gênero nas candidaturas legislativas proporcionais.

Tal política pública – sem o suficiente financiamento – não produziu o efeito esperado. Houve 16.000 candidaturas femininas nas eleições municipais que não receberam nem mesmo um voto12. Em muitos casos nem as próprias candidatas votaram em si por não acreditarem em sua viabilidade.

Toda política pública exige financiamento que a sustente.

O Supremo Tribunal Federal, em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade, explicitou que na utilização dos recursos públicos do fundo partidário em campanhas devem ser observadas as proporções de gênero dos candidatos.

Ao apreciar a referida ação, decidiu a Suprema Corte “dar interpretação conforme a Constituição ao art. 9º da Lei 13.165/15 de modo a equiparar o patamar legal mínimo de candidaturas femininas (hoje o do art. 10, §3º, da Lei n. 9.504/97, isto é, ao menos 30% de cidadãs), ao mínimo de recursos do Fundo Partidário a lhes serem destinados, que deve ser interpretado como também de 30% do montante do Fundo alocado a cada partido, para as eleições majoritárias e proporcionais, e fixar que, havendo percentual mais elevado de candidaturas femininas, o mínimo de recursos globais do partido destinados a campanhas lhe seja alocado na mesma proporção”.

A Procuradoria Regional Eleitoral reforça a sua argumentação mencionando os indicadores de desigualdade de gênero dos ocupantes de cargos eletivos do Brasil, quando comparados a outros países, e salientando que o percentual de 5% dos recursos do Fundo Partidário, tal qual a obrigação de lançar ao menos 30% de candidatas aos cargos do pleito proporcional, “se inserem numa política de ação afirmativa, tendente a minorar a histórica desigualdade de gênero na composição das casas legislativas:

O Brasil ocupa posição vexatória nas estruturas partidárias e, notadamente, de suas direções. Deixadas à própria conta, essas instâncias lançam apenas candidatos homens; se lançam mulheres, é em menor número; quando lançam, não financiam. Foi preciso uma decisão do Supremo Tribunal Federal para obrigar os partidos a utilizar ao menos 30% dos recursos (de novo, públicos) em prol de suas candidatas (ADI 5.617) e outra do TSE (Consulta 0600252-18) para exigir que, do 1,7 bilhão de reais do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas Eleitorais, se respeitasse a quota-parte das mulheres.

Essas posições de vantagem, as quotas, não tem a vocação da perenidade.

Devem ir se atenuando na medida em que as condições materiais e sociais que traziam a desigualdade forem, por igual, se atenuando. No caso da participação política feminina, tal atenuação ainda não se apresenta. Os avanços têm sido discretos, ainda que constantes. O total de deputados federais é 513. Destes, eram 55 mulheres na legislatura de 2015/2018 (10,72%¨) e 77 para o período 2019/2022 (15%). Não temos dúvida em indicar que, para esse resultado, as ações afirmativas vigentes foram de grande valia. Entretanto, sem desmerecer o avanço efetivamente ocorrido, ele fica tímido se considerarmos que as mulheres representam cerca de 51% do total da população brasileira. Em síntese, não é a hora, ainda, de relaxar ou diminuir a ação afirmativa. Uma atuação do poder público, inclusive normativa, que enfraquece uma ação de combate à desigualdade, é equivalente a uma ação que a amplia. Deste modo, a Lei 13.831/19 padece de inconstitucionalidade. Outro modo de apresentar essa eiva é fazer referência à proibição do retrocesso. Uma política pública que buscava cumprir a Constituição – e vinha obtendo êxito nesse caminho – não pode ser descontinuada, a não ser que razões igualmente ponderáveis e constitucionais se apresentem. Não é o caso. Trata-se da destinação de recursos públicos, dados a instituições privadas (os partidos políticos), com vinculação muito moderada: 5%.

Não nos impressiona o argumento de que a anistia é condicionada. Afinal, não ocorrerá a reprovação das contas se aqueles valores tiverem sido utilizados em campanhas femininas. É importante destacar que, mesmo com as quotas de lançamento de candidatas e utilização dos recursos, 70% deles continuam a ser utilizados nas campanhas dos candidatos homens. Mesmo com o emprego total daqueles 5%, ter-se-ia, então, a metade do valor masculino: 35%. É uma diminuição da garantia mínima representada pela ação afirmativa.

Ademais, a lei não distingue se o emprego se deu em candidaturas majoritárias ou proporcionais femininas. O risco é que se procure aplicar a anistia mesmo que os recursos tenham sido empregados em prol de candidatas a senador, presidente, prefeito ou governador, enquanto as quotas são, claramente, orientadas para as candidaturas proporcionais. Vão querer dizer que os recursos dados a candidatos majoritários homens, desde que o suplente ou o vice sejam mulheres, justificará a anistia. Essa argumentação é pragmática, mas também avança no sentido da inconstitucionalidade da norma.

As ações afirmativas oferecem posições de vantagem para setores que, por variadas razões, competem em desigualdade de condições. O objetivo é, portanto, a promoção da igualdade, princípio e finalidade constitucional seguidamente reiterada."

Efetivamente, os arts. 55-A e 55-C da Lei n. 9.096/95 representam afronta ao princípio da igualdade insculpido na Constituição Federal, assim como ao princípio da vedação do retrocesso social, por caracterizarem manifesta restrição a direito fundamental, em virtude do tratamento desigual ao beneficiar os partidos políticos que descumpriram a determinação expressa em lei de aplicação de recursos do Fundo Partidário no fomento à participação política das mulheres.

Conforme ressaltou o Ministro Edson Fachin, relator da ADI 5617, “apesar de atualmente as mulheres serem mais da metade da população e do eleitorado brasileiro, apenas 9,9% do Congresso Nacional é formado por mulheres e apenas 11% das prefeituras é comandada por elas”.

Em 2019, a ONU Mulheres, organização das Nações Unidas dedicada à igualdade de gênero e ao empoderamento feminino, divulgou que, no ranking de 35 países latino-americanos e caribenhos sobre mulheres nos parlamentos nacionais, o Brasil ocupa a 28ª posição devido aos 15% de parlamentares eleitas, estando muito distante da primeira e segunda posições, ocupadas, respectivamente, por Cuba (53,2%) e Bolívia (53,1%) (https://oig.cepal.org/pt/indicadores/poder-legislativo-porcentagem-mulheres-no-orgao-legislativo-nacional-camara-baixa-ou).

O órgão informa que o Parlatino (Parlamento Latino-americano e Caribenho) adotou a “Norma Marco para Consolidar a Democracia Paritária”, elaborada em cooperação com a ONU Mulheres para Américas e Caribe, para impulsionar o aumento da participação das mulheres na política na região, estabelecendo a democracia paritária como modelo, no qual a paridade e a igualdade substantiva entre mulheres e homens são os eixos estruturantes do Estado inclusivo.

Ao tratar da histórica exclusão das mulheres no âmbito do Poder Legislativo brasileiro, a doutora em ciência política Daniela Leandro Rezende refere que, diante da estabilidade do baixo percentual de eleitas para a Câmara dos Deputados, mesmo com a adoção de ações dirigidas ao asseguramento de cotas de gênero nas candidaturas eleitorais, a reserva de recursos do Fundo Partidário para a promoção da participação política feminina tem sido insuficiente para garantir a inserção das mulheres em espaços de poder:

Verifica-se, pois, que a existência de cotas, apesar de necessária, não é suficiente para garantir a eleição de maior contingente de mulheres ou a transformação ou reorganização das instituições políticas em direção à igualdade de gênero, e tampouco a possibilidade de que as mulheres eleitas possam influenciar o processo decisório.

(…)

O Brasil se encontra na 155a posição (no total de 188 posições) no ranking de mulheres em legislativos nacionais da Inter-Parliamentary Union.3 A sub-representação de mulheres no país se mantém estável e o percentual de eleitas para a Câmara dos Deputados permanece inferior a 10% desde a década de 1940. Esse cenário se mantém inalterado a despeito de iniciativas como cotas de gênero nas listas eleitorais e da obrigatoriedade de que os partidos políticos destinem parte de seus recursos ao fomento da participação política de mulheres. Apesar de ineficazes, tais estratégias explicitam a centralidade dos partidos políticos para a eleição de mulheres e seu papel como mediadores da distribuição de recursos eleitorais no Brasil (ARAÚJO, 2005; Maria Luiza Miranda ÁLVARES, 2008; Teresa SACCHET; Bruno W. SPECK, 2012; Fabiano SANTOS; Carolina Almeida de PAULA; Joana SEABRA, 2012; Larissa Peixoto Vale GOMES, 2016).

(Desafios à representação política de mulheres na Câmara dos Deputados. Revista Estudos Feministas. Vol. 25, n. 3, Florianópolis Sept./Dec. 2017. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2017000301199>. Acesso em 16.1.20.)

Com essas considerações, entendo que merece acolhimento o incidente de inconstitucionalidade suscitado, afastando, no caso concreto, a aplicação dos arts. 55-A e 55-C da Lei n. 9.096/95 – por violação à Constituição Federal, afronta aos princípios da igualdade, da inafastabilidade do Judiciário e da vedação do retrocesso, e desrespeito ao inc. III do art. 17 da Constituição Federal –, bem como a aplicação do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, devido à ausência de previsão de estimativa de impacto orçamentário e financeiro da renúncia de receita, desatenção ao art. 113 do ADCT, inobservância do devido processo legislativo e violação ao art. 14 da Lei Complementar n. 101/00 e aos arts. 69 e 163 da Constituição Federal, além de descumprimento do princípio da anualidade ou anterioridade eleitoral insculpido no art. 16 da Constituição Federal.

Assim, também na hipótese dos autos, deve ser declarada a inconstitucionalidade do art. 55-A da Lei n. 9.096/95.

Em sequência, sigo por examinar, como questão preliminar, o art. 55-D, introduzido na Lei n. 9.096/95 pela Lei n. 13.831, de 17 de maio de 2019, frente ao pedido da Procuradoria Regional Eleitoral para o seu reconhecimento, incidental, de inconstitucionalidade (fl. 1479v.), norma com o seguinte teor:

Art. 55-D. Ficam anistiadas as devoluções, as cobranças ou as transferências ao Tesouro Nacional que tenham como causa as doações ou contribuições feitas em anos anteriores por servidores públicos que exerçam função ou cargo público de livre nomeação e exoneração, desde que filiados a partido político.

Como a questão do recebimento de recursos oriundos de fonte vedada - doações ou contribuições feitas, no exercício financeiro em questão, por servidores públicos que exerciam função ou cargo público de livre nomeação e exoneração – será examinada neste julgamento, cabe a apreciação incidental da constitucionalidade do mencionado dispositivo.

Em relação ao recolhimento dos valores ao Tesouro Nacional, neste momento considerado decorrência possível se verificada, concretamente, a irregularidade, esta Corte Eleitoral já se manifestou sobre a existência de vício na instituição da anistia, tendo reconhecido, à unanimidade, a inconstitucionalidade do dispositivo legal em comento, consoante ementa que transcrevo no ponto que interessa:

RECURSO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. PARTIDO POLÍTICO. EXERCÍCIO DE 2015. DESAPROVAÇÃO. MATÉRIA PRELIMINAR ACOLHIDA. INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 55-D DA LEI N. 9.096/95, INCLUÍDO PELA LEI N. 13.831/19. MÉRITO. RECEBIMENTO DE RECURSOS DE ORIGEM NÃO IDENTIFICADA E DE FONTE VEDADA. PORCENTAGEM REPRESENTATIVA DAS IRREGULARIDADES DIANTE DA TOTALIDADE DOS RECURSOS ARRECADADOS NO PERÍODO. AFASTADA A APLICAÇÃO DOS POSTULADOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE. MANUTENÇÃO DO JUÍZO DE DESAPROVAÇÃO. REDUZIDO O PERÍODO DE SUSPENSÃO DO FUNDO PARTIDÁRIO. AFASTADA A CONDIÇÃO DE QUE A SANÇÃO SUBSISTA ATÉ QUE OS ESCLARECIMENTOS SEJAM ACEITOS PELA JUSTIÇA ELEITORAL. PROVIMENTO PARCIAL.

1. Incidente de inconstitucionalidade suscitado pelo Procurador Regional Eleitoral. 1.1. O art. 55-D da Lei n. 9.096/95, norma legal objeto do aludido incidente, incluído pela Lei n. 13.831/19, assinala a anistia das devoluções, cobranças ou transferências ao Tesouro Nacional que tenham como causa as doações ou contribuições efetuadas, em anos anteriores, por servidores públicos os quais exerçam função ou cargo público de livre nomeação e exoneração, desde que filiados a partido político. Ausência de notícia de que tenha havido oferecimento dos dados relativos à previsão de estimativa de impacto orçamentário e financeiro quando da tramitação da proposta legislativa prevendo a renúncia da receita. Omissão que afronta a exigência constitucional incluída pela EC n. 95/16 no art. 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. A legislação infraconstitucional igualmente exige seja comprovado o impacto orçamentário e financeiro à concessão de benefício que gere a diminuição de receita da União, nos termos do art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal e arts. 114 e 116 da Lei n. 13.707/18. 1.2. A anistia das verbas consideradas como oriundas de fontes vedadas - benefício instituído em causa própria e sem qualquer finalidade pública subjacente - atenta ao princípio da moralidade administrativa e desvirtua a natureza jurídica do instituto. 1.3. Vício de inconstitucionalidade formal e material. Acolhimento da preliminar. Afastada, no caso concreto, a aplicação do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, incluído pela Lei n. 13.831/19. (...) (grifo nosso)

(...)

(TRE/RS, Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade, RE n. 35-92.2016.6.21.0005, Rel. Des. Eleitoral Gerson Fischmann, DEJERS de 23.8.2019.)

Pelas razões acima elencadas, o art. 55-D da Lei n. 9.096/95 é inconstitucional por instituir hipótese de incidência destoante das normas extraídas da Constituição Federal, devendo ser afastada sua aplicação no caso concreto.

Assim, declaro incidentalmente a inconstitucionalidade do dispositivo do art. 55-D da Lei n. 9.096/95.

Em decorrência da conclusão supracitada, como já houve manifestação desta Corte sobre a inconstitucionalidade da norma em questão, resta esclarecer que a invocação dos termos do precedente ocorreu também no intuito de evitar a monótona e interminável repetição do entendimento consagrado por ocasião daquele julgado paradigma. Assim, todas as proposições trazidas pelos prestadores em sua manifestação de fls. 1494-1512 restam superadas, pois abrangem questões já discutidas como fundamentos adotados como razão de decidir do acórdão RE n. 35-92; e, mesmo que se considerassem possíveis argumentos novos, ainda assim não teriam o condão de reverter a decisão consagrada, tais como os elencados para rechaçar as argumentações da Procuradoria Regional Eleitoral, especificamente:

- da violação da Lei de Responsabilidade Fiscal e da Constituição Federal;

- das doações realizadas e o patrimônio da União Federal;

- das doações e do patrimônio das contribuições;

- da violação ao princípio da anualidade ou anterioridade eleitoral;

- da violação dos princípios da moralidade administrativa e da obrigação de prestação de contas à justiça eleitoral;

- da alegação do princípio da isonomia, da segurança jurídica, da soberania popular e da separação dos Poderes.

Ademais, no controle de constitucionalidade, ainda que existam diversos aspectos sob os quais a norma possa ser reputada válida, a existência de uma mácula é suficiente para a declaração de sua inconstitucionalidade – de modo que os argumentos trazidos pelos prestadores não consubstanciam juízo de razão para alterar o julgado.

No exame sobre a constitucionalidade da norma, que constou na razão de decidir do acórdão RE n. 35-92, são identificadas violações ao processo legislativo e ao princípio da moralidade administrativa. Na análise pormenorizada do voto proferido no precedente, é possível verificar o reconhecimento também da violação aos princípios da prestação de contas e da integridade legislativa.

Assim, mesmo que o art. 55-D da Lei dos Partidos Políticos fosse constitucional sob o ponto de vista das normas orçamentárias, tributárias e financeiras, ou cotejado com princípios diversos, teses dos prestadores, o reconhecimento da falha no processo legislativo –pela não observância da apresentação da estimativa de impacto orçamentário – é suficiente para a declaração de inconstitucionalidade.

Nessa toada, não se vislumbra interesse dos prestadores na realização de digressões sobre aspectos que não terão, por si sós, aptidão para influir no julgamento quando da existência de um fator preponderante.

Desse modo, repriso: declaro incidentalmente a inconstitucionalidade do dispositivo do art. 55-D da Lei n. 9.096/95.

Passando ao exame do mérito, consigno que, com a análise da documentação relativa ao exercício de 2016 encaminhada pelo DIRETÓRIO ESTADUAL DO PARTIDO DOS TRABALHADORES – PT, a Secretaria de Controle Interno e Auditoria apontou (fls. 1462-1470):

a) o recebimento de recursos de fonte vedada, nos termos art. 14, § 1º, da Resolução TSE n. 23.464/15, no total de R$ 32.018,78 (trinta e dois mil, dezoito reais e setenta e oito centavos), a ser recolhido ao Tesouro Nacional;

b) a não aplicação dos valores para a criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, nos termos do art. 44, inc. V, c/c § 5º, da Lei n. 9.096/95;

c) a aplicação irregular de recursos oriundos do Fundo Partidário, na quantia de R$ 6.651,71.

Passo, então, ao exame de cada uma das irregularidades apontadas.

 

Recebimento de recursos de fonte vedada

A unidade técnica apurou a existência de arrecadação de recursos advindos de contribuintes considerados autoridades pela Lei n. 9.096/95, caracterizando fontes vedadas, no exercício de 2016, no montante de R$ 32.018,78.

A redação do dispositivo aplicável da Lei dos Partidos Políticos era a seguinte, por ocasião do exercício em exame:

Art. 31. É vedado ao partido receber, direta ou indiretamente, sob qualquer forma ou pretexto, contribuição ou auxílio pecuniário ou estimável em dinheiro, inclusive através de publicidade de qualquer espécie, procedente de:

I - entidade ou governo estrangeiros;

II - autoridade ou órgãos públicos, ressalvadas as dotações referidas no art. 38;

[…]

 

Por seu turno, a Resolução TSE n. 23.464/15 estabelecia que:

Art. 12. É vedado aos partidos políticos e às suas fundações receber, direta ou indiretamente, sob qualquer forma ou pretexto, doação, contribuição ou auxílio pecuniário ou estimável em dinheiro, inclusive por meio de publicidade de qualquer espécie, procedente de:

I – origem estrangeira;

II – pessoa jurídica;

III – pessoa física que exerça atividade comercial decorrente de concessão ou permissão; ou

IV – autoridades públicas.

§ 1º Consideram-se como autoridades públicas, para os fins do inciso IV do caput deste artigo, aqueles, filiados ou não a partidos políticos, que exerçam cargos de chefia ou direção na administração pública direta ou indireta.

§ 2º As vedações previstas neste artigo atingem todos os órgãos partidários, inclusive suas fundações, observado o disposto no § 2º do art. 20 desta resolução.

§ 3º Entende-se por doação indireta, a que se refere o caput deste artigo, aquela efetuada por pessoa interposta que se inclua nas hipóteses previstas nos incisos deste artigo. (Grifei.)

 

 

Diante da proibição de recebimento de doações provenientes de ocupantes de cargos de chefia ou direção na administração pública direta ou indireta, foi identificado o ingresso de recursos oriundos de doadores ocupantes de cargos de gerente, chefe de setor, diretor, coordenador, assessor e secretário, dentre outros cargos de órgãos da administração pública direta e indireta, no valor de R$ 32.018,78 (tabela das fls. 1185-1190).

Em suas alegações finais (fls. 1199-1459), a agremiação invoca as recentes alterações legislativas, querendo indicar que caberia ao caso a aplicação da Lei n. 13.488/17, que consagrou a faculdade de os filiados contribuírem para a manutenção dos partidos políticos, e da Lei n. 13.831/19, que introduziu o art. 55-D na Lei dos Partidos Políticos, anistiando as devoluções determinadas em razão de “doações ou contribuições feitas em anos anteriores por servidores públicos que exerçam função ou cargo público de livre nomeação e exoneração, desde que filiados ao partido político”.

Inicialmente, é incontroverso que os cargos comissionados ocupados pelos doadores ao tempo das liberalidades inserem-se no conceito de autoridade pública previsto no art. 31, inc. II, da Lei n. 9.096/95, com a redação vigente ao tempo dos fatos, conforme regulamentação insculpida no art. 12, inc. IV e § 1°, da Resolução TSE n. 23.464/15, acima transcritos, bem como que a redação do art. 31, inc. II, da Lei n. 9.096/95, à época dos acontecimentos, coibia aos partidos receber doações procedentes de autoridades públicas.

Quanto à aplicação retroativa das disposições previstas pela Lei n. 13.488/17, é de se ressaltar que as prestações de contas são regidas pela lei vigente à época dos fatos – tempus regit actum, em prol, resumidamente, dos princípios da isonomia e da segurança jurídica.

Nesse sentido:

AGRAVO REGIMENTAL. DIRETÓRIO ESTADUAL DE PARTIDO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. EXECUÇÕES. INVIÁVEL O PARCELAMENTO MEDIANTE DESCONTOS DOS REPASSES DO FUNDO PARTIDÁRIO. POSSIBILIDADE COM RECURSOS PRÓPRIOS. ART. 44 DA LEI 9.096/95. RESOLUÇÃO TSE N. 21.841/04. EXERCÍCIO FINANCEIRO DE 2012.

1. As alterações introduzidas pela Lei n. 13.165/15 ao art. 37 da Lei 9.096/95 não se aplicam às prestações de contas partidárias de exercícios anteriores. A nova redação dada retirou a suspensão de quotas do Fundo Partidário e estabeleceu exclusivamente a imposição de multa de até 20% sobre o valor a ser recolhido. Tratando-se de prestação de contas do exercício financeiro de 2012, devem ser observadas as normas de direito material previstas na Resolução TSE n. 21.841/04.

2. Irretroatividade da Lei n. 13.488/17, in casu, por ser processo de exercício anterior a sua vigência. Obediência aos princípios do tempus regit actum, da isonomia e da segurança jurídica.

3. Agremiação condenada a recolher valores ao Fundo Partidário e ao Tesouro Nacional. Possibilidade de parcelamento. Vedado o uso de recursos do Fundo Partidário na medida em que o art. 44 da lei 9.096/95 prevê hipóteses taxativas de sua aplicação.

4. Negado provimento.

(TRE-RS, PC n. 6380, Acórdão de 31.01.2018, Relator DES. CARLOS CINI MARCHIONATTI, Publicação: DEJERS - Diário de Justiça Eletrônico do TRE-RS.)

 

Na hipótese, as doações realizadas no exercício de 2016, antes da edição da Lei n. 13.488/17, devem ser caracterizadas como recursos oriundos de autoridades – fontes vedadas pela legislação eleitoral.

Assim,  não cabe aplicar a nova disposição à hipótese, porque ocorrida antes da sua vigência.

Nessa linha de raciocínio, aliás, já há precedente deste Tribunal, cuja relatoria coube ao d. Des. Fed. João Batista Pinto Silveira:

RECURSO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. PARTIDO POLÍTICO. EXERCÍCIO FINANCEIRO DE 2017. DESAPROVAÇÃO. RECURSOS PROCEDENTES DE FONTES VEDADAS. DETENTORES DE CARGOS DEMISSÍVEIS AD NUTUM. IRRETROATIVIDADE DA LEI N. 13.488/17. DUPLO TRATAMENTO JURÍDICO DAS DOAÇÕES DE PESSOAS FÍSICAS EXERCENTES DE CARGOS DE CHEFIA E DIREÇÃO. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA DE DESAPROVAÇÃO DAS CONTAS. RETIFICAÇÃO DO MONTANTE A SER RECOLHIDO AO TESOURO NACIONAL. REDUÇÃO DAS PENALIDADES DE SUSPENSÃO DO REPASSE DE VERBAS DO FUNDO PARTIDÁRIO E DE MULTA. PROVIMENTO PARCIAL.

1. Recebimento de recursos procedentes de fontes vedadas. É proibido aos partidos políticos receberem doações ou contribuições de titulares de cargos demissíveis ad nutum da Administração direta ou indireta, quando ostentarem a condição de autoridades. No caso dos autos, identificado o recebimento de doações de recursos financeiros de ocupantes de funções de direção e chefia.

2. Irretroatividade da Lei n. 13.488/17. 2.1. Posicionamento, deste Tribunal, pela aplicação do art. 31 da Lei n. 9.096/95 em sua redação original, devido à irretroatividade de novas disposições legais, ainda que mais benéficas ao prestador de contas, em homenagem aos princípios do tempus regit actum, da isonomia e da segurança jurídica. 2.2. Duplo tratamento jurídico das doações de pessoas físicas exercentes de cargos de chefia e direção na Administração Pública, em decorrência da sucessão legislativa. Devido ao fato de a Lei n. 13.488/17 ter entrado em vigor no dia 06.10.2017, cumpre aplicar, em relação às contribuições anteriores a esta data, a redação original do art. 31 da Lei dos Partidos Políticos, bem como as prescrições do art. 12, inc. IV e § 1º, da Resolução TSE n. 23.464/15, as quais vedavam as contribuições ainda que provenientes de filiados a partidos políticos. Todavia, as contribuições realizadas a partir de 06.10.2017 devem observar o disposto no art. 31, inc. V, da Lei n. 9.096/95 em sua nova redação, que ressalva a licitude dos auxílios pecuniários quando advindos de filiados a partidos políticos.

[...]

Provimento parcial.

(Recurso Eleitoral n. 14-74. Relator Des. Fed. João Batista Pinto Silveira. Julgado em 04.02.2019, unânime.) (Grifei.)

 

Ainda, cabe apontar que o prestador, além de buscar a aplicação da alteração legislativa trazida pela Lei n. 13.488/17, conforme acima abordado, busca fazer entender que as contribuições consideradas de fonte vedada foram realizadas espontaneamente pelos filiados para custeio das atividades do partido.

Ocorre que, diante do regime jurídico aplicável, não cabe indagar o caráter de liberalidade da doação ou qualquer outra circunstância de cunho subjetivo em relação ao ingresso das aludidas receitas, uma vez que a regra proibitiva incide objetivamente, bastando a ocorrência do aporte dos recursos.

Portanto, reconheço como provenientes de fonte vedada as doações efetuadas por autoridades ao partido político no valor de R$ 32.018,78.

Conforme já exposto, declarada incidentalmente a inconstitucionalidade do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, fica afastada a possibilidade de reconhecimento da anistia, devendo ser determinado o recolhimento de R$ 32.018,78 ao Tesouro Nacional, com fundamento no art. 14, § 1º, da Resolução TSE n. 23.464/15.

 

Da aplicação dos valores para a criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres

Passo à análise do apontamento de que não houve, pelo Diretório Estadual do PT/RS, no exercício de 2016, a devida comprovação de gasto mínimo de 5% dos recursos recebidos do Fundo Partidário “na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres”, conforme prevê o art. 44 da Lei n. 9.096/95, em seu inc. V, c/c o § 5º, na redação vigente ao tempo do exercício financeiro, dada pela Lei n. 13.165/15:

Art. 44. Os recursos oriundos do Fundo Partidário serão aplicados:

 

(…)

 

V - na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, criados e mantidos pela secretaria da mulher do respectivo partido político ou, inexistindo a secretaria, pelo instituto ou fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política de que trata o inciso IV, conforme percentual que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 5% (cinco por cento) do total; (Redação dada pela Lei nº.13.165, de 2015)

 

(…)

 

§ 5º O partido político que não cumprir o disposto no inciso V do caput deverá transferir o saldo para conta específica, sendo vedada sua aplicação para finalidade diversa, de modo que o saldo remanescente deverá ser aplicado dentro do exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5% (doze inteiros e cinco décimos por cento) do valor previsto no inciso V do caput, a ser aplicado na mesma finalidade.

(Redação dada pela Lei n. 13.165, de 2015)

 

Ainda, a obrigação infringida também está disciplinada no art. 22, caput, da Resolução TSE n. 23.464/15, de onde se retira que é dever do partido político a plena comprovação da alocação do recurso. Vejamos:

Art. 22. Os órgãos partidários devem destinar, em cada esfera, no mínimo, 5% (cinco por cento) do total de recursos do Fundo Partidário recebidos no exercício financeiro para a criação ou manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, a serem realizados de acordo com as orientações e responsabilidade do órgão nacional do partido político.

§ 1º O partido político que não cumprir o disposto caput deve transferir o saldo para conta bancária de que trata o inciso IV do art. 6º desta resolução, sendo vedada sua aplicação para finalidade diversa, de modo que o saldo remanescente deve ser aplicado dentro do exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5% (doze inteiros e cinco décimos por cento) do valor previsto no inciso V do caput, a ser aplicado na mesma finalidade (Lei nº 9.096/95, art. 44, § 5º).

§ 2º Na hipótese do § 1º deste artigo, o partido fica impedido de utilizar qualquer dos valores mencionados para finalidade diversa.

§ 3º A aplicação de recursos a que se refere este artigo, além da contabilização em rubrica própria do plano de contas aprovado pelo Tribunal Superior Eleitoral, deve estar comprovada mediante a apresentação de documentos fiscais em que conste expressamente a finalidade da aplicação.

§ 4º A infração às disposições previstas neste artigo implica irregularidade grave a ser apreciada no julgamento das contas.

§ 5º A critério da secretaria da mulher ou, inexistindo a secretaria, a critério da fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política, os recursos a que se refere o caput podem ser acumulados em diferentes exercícios financeiros, mantidos em contas bancárias específicas, para utilização futura em campanhas eleitorais de candidatas do partido, não se aplicando, neste caso, o disposto no § 2º deste artigo.

§ 6º Nas três eleições que se seguirem ao dia 29 de setembro de 2015, os partidos reservarão, em contas bancárias específicas para este fim, no mínimo 5% (cinco por cento) e no máximo 15% (quinze por cento) do montante do Fundo Partidário destinado ao financiamento das campanhas eleitorais para aplicação nas campanhas de suas candidatas, incluídos nesse valor os recursos a que se refere o inciso V do art. 44 da Lei nº 9.096, de 1995 (Lei nº 13.165/2015, art. 9º).

§ 7º Para fins de aferição do limite mínimo legal, devem ser considerados os gastos efetivos no programa e as transferências financeiras realizadas para as contas bancárias específicas de que trata o inciso IV do art. 6º desta resolução.

(Grifo nosso.)

 

No ponto, o parecer conclusivo do exame técnico constatou o descumprimento da obrigação (fls. 1462-1470).

Por sua vez, o prestador trouxe discordância do quadro apresentado pelo órgão técnico, por entender que o valor de R$ 350.000,00 foi indevidamente acrescido, pois teria sido recebido extraordinariamente do Fundo Partidário.

Sobre essa falha, a unidade técnica referiu no parecer conclusivo:

Em que pese a manifestação do prestador de contas, o art. 44, V, da Lei n. 9.096/95, não estabelece distinção entre recursos ordinários e extraordinários referindo-se unicamente ao valor total recebido pela agremiação, a saber:

 

V - na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, criados e mantidos pela secretaria da mulher do respectivo partido político ou, inexistindo a secretaria, pelo instituto ou fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política de que trata o inciso IV, conforme percentual que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 5% (cinco por cento) do total; (Redação dada pela Lei nº 13.165, de 2015) (GRIFO NOSSO)

 

Pela análise da Prestação de Contas Eleitorais do ano de 2016, verificou-se que a agremiação repassou R$ 15.000,00 para campanha de candidatas mulheres e efetuou o pagamento de uma GRU de R$ 6.500,00, haja vista que com valor inicial não havia sido comprovado a aplicação do percentual mínimo das mulheres.

[...]

Dessa maneira, permanece não comprovado a aplicação mínima de 5% do valor do Fundo Partidário na participação política das mulheres, sendo o valor de R$ 11.000,00 equivalente a 0,64% do valor total de recursos do Fundo Partidário no exercício de 2016. (Grifei.)

 

Logo, corretos os critérios de cálculo utilizados pela unidade técnica, considerando que o art. 44, inc. V, da Lei n. 9.096/95 não estabelece distinção entre recursos ordinários e extraordinários, referindo-se unicamente ao valor total recebido pela agremiação.

Como se percebe, embora o partido político tenha procurado demonstrar a escorreita aplicação dos percentuais previstos na norma, não conseguiu tal intento.

Não havendo qualquer controvérsia sobre a não aplicação integral do percentual mínimo de 5% (cinco por cento) do Fundo Partidário para a criação ou manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, deve ser declarado o descumprimento parcial das regras dos arts. 44, inc. V, da Lei n. 9.096/95, e 22 da Resolução TSE n. 23.464/15.

Trata-se, em resumo, de ação afirmativa delineada legalmente que não foi observada. Importante sublinhar que a Lei n. 13.165/15 é aplicável à época dos fatos, conforme o postulado do tempus regit actum, aplicado de forma pacífica nos precedentes que integram a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral.

Ocorre que esta ação afirmativa buscou ser redesenhada pela Lei n. 13.877/19. Entretanto, conforme já exposto, declarada incidentalmente a inconstitucionalidade do art. 55-A da Lei n. 9.096/95, fica afastada a possibilidade de sua aplicação no caso concreto. Logo, no caso específico dos autos, seu conteúdo não socorre a agremiação e, apesar da tentativa de demonstração de que a grei utilizou um percentual dos recursos no financiamento das candidaturas femininas até as eleições de 2018, fica afastada a possibilidade de seu reconhecimento.

Assim, a falha permanece nas contas.

Desse modo, a questão está então em equacionar o valor a ser cumprido. Na hipótese, a agremiação recebeu R$ 1.724.620,04 em recursos do Fundo Partidário no exercício em análise, sendo que o valor a repassar (5%) seria de R$ 86.231,00, porém a quantia efetivamente alcançada foi de R$ 68.731,00, de forma que a cifra a ser aplicada deve ser o de R$ 17.500,00.

Logo, no caso específico dos autos, repriso: por ter sido declarada incidentalmente a inconstitucionalidade do art. 55-A da Lei n. 9.096/95, seu conteúdo não socorre a agremiação, e, apesar da tentativa de demonstração de que a grei utilizou um percentual desses recursos no financiamento das candidaturas femininas até as eleições de 2018, fica afastada a possibilidade de seu reconhecimento, sendo que o valor a ser aplicado deve ser de R$ 17.500,00.

Por outro lado, considerando que houve o pagamento, por meio de GRU de R$ 6.500,00, descabe o enriquecimento sem causa da União. Assim, após o trânsito em julgado da decisão e antes da remessa de elementos à Fazenda Pública, devem os autos ser enviados ao setor técnico para exame da adequação do documento, qual seja, a GRU de R$ 6.500,00, para fins de consolidação do valor a ser recolhido ao Tesouro Nacional.

Dessa forma, tenho que não restou comprovada a alocação do valor de R$ 17.500,00 para a criação ou manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres (art. 44, inc. V, da Lei n. 9.096/95), de forma que tal montante deverá ser aplicado no exercício subsequente ao trânsito em julgado da presente decisão, sob pena de acréscimo de 12,5% (doze inteiros e cinco décimos por cento) do valor (art. 44, inc. V e § 5º, da Lei n. 9.096/95) a ser investido na mesma finalidade.

Enfim, como a grei não logrou comprovar a aplicação do valor retrorreferido na citada política de fomento, a irregularidade remanesce, nos termos da fundamentação acima.

 

Aplicação irregular de recursos oriundos do Fundo Partidário no valor de R$ 6.651,71

Em relação a este apontamento, assiste razão à Procuradoria Regional ao consignar que, ao contrário da conclusão técnica, o valor de R$ 6.651,71, utilizado para pagamento de fornecedores distintos por meio da emissão de um único cheque, e custeado com recursos do Fundo Partidário, restou comprovado por meio de documentos fiscais idôneos, permitindo aferir com precisão a origem e destinação dos recursos públicos empregados. Reproduzo o conteúdo do parecer ministerial:

Mister sublinhar que, conforme se extrai da documentação analisada, não houve saque, pois a agremiação não realizou pagamento em dinheiro, razão pela qual não é possível afirmar que houve pagamento de despesa com fundo de caixa. Portanto, a inconsistência apontada não viola a previsão do art. 19 da Res. 23.464/2015.

Pois bem. Embora a emissão de um único cheque para pagamento de fornecedores seja irregular, pois viola o disposto no art. 18 da Resolução TSE n. 23.464/2015, que exige que cada despesa partidária seja identificada em cheque distinto, os documentos fiscais colacionados, no presente caso, permitem aferir com precisão a origem e destinação dos recursos públicos utilizados para pagamento dos fornecedores.

Nesse sentido, a sequência numérica das respectivas autenticações, com o horário do pagamento, emitidas pela agência bancária, permite aferir, no presente caso, a utilização do mesmo cheque para pagamento de fornecedores distintos, vez que as transações ocorreram no mesmo instante ou com diferença de segundos: i) 26/08/2016 – Banco do Brasil – 12:20:18 0263 (à fl. 1239 – Vol. 10); ii) 26/08/2016 – Banco do Brasil – 12:20:18 0264 (à fl. 1240 – Vol. 10); iii) 26/08/2016 – Banco do Brasil – 12:20:19 0265 (à fl. 1241 – Vol. 10); e iv) 26/08/2016 – Banco do Brasil – 12:20:19 0266.

Assim, a irregularidade sob exame não compromete a higidez das contas, sendo possível a aprovação destas, com anotação de ressalva quanto ao ponto, mormente a se considerar que o apontamento representa apenas 0,38% dos recursos recebidos do Fundo Partidário e 0,24% do total de receitas arrecadadas.

 

Desse modo, correto o entendimento exarado pela douta Procuradoria Regional Eleitoral, o qual adoto como razões de decidir, porquanto os documentos comprobatórios apresentados pelo partido demonstram que a irregularidade sob exame não compromete a higidez das contas, sendo possível sua aprovação, com anotação de ressalva quanto ao ponto, mormente considerando que o apontamento representa apenas 0,38% dos recursos recebidos do Fundo Partidário e 0,24% do total de receitas arrecadadas.

Assim, superado o apontamento, restando a anotação da ressalva.

 

À guisa de conclusão, repriso que considerei como:

- ressalva na contabilidade a falta na aplicação de verbas advindas do Fundo Partidário na quantia de R$ 6.651,71, que representa 0,24% do total de receitas arrecadadas;

- irregularidade no aporte de recursos de fonte vedada no valor de R$ 32.018,78, equivalentes a 3,04% do total de Outros Recursos recebidos (R$ 1.051.494,39), impondo-se o recolhimento do montante ao Tesouro Nacional;

- irregular a ausência de comprovação de gasto mínimo de 5% dos recursos oriundos do Fundo Partidário “na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres”, correspondente a R$ 17.500,00, representando 1,01 % do total da receita apurada no exercício (R$ 1.728.492,93 – fl. 68).

Na hipótese, as irregularidades representam menos de 5% da receita arrecadada no exercício financeiro e, nesses casos, esta Corte tem entendido pela aprovação das contas com ressalvas:

RECURSO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. PARTIDO POLÍTICO. EXERCÍCIO FINANCEIRO DE 2017. DESAPROVAÇÃO. RECEBIMENTO DE RECURSOS ORIUNDOS DE FONTES VEDADAS. AUTORIDADES PÚBLICAS. IRRETROATIVIDADE DAS ALTERAÇÕES INSTRODUZIDAS PELA LEI N. 13.488/17. MANTIDO O RECOLHIMENTO AO TESOURO NACIONAL. AFASTADAS A SANÇÃO DE MULTA E A PENALIDADE DE SUSPENSÃO DO FUNDO PARTIDÁRIO. PARCIAL PROVIMENTO.

1. Desaprovação das contas da agremiaçao em razão do recebimento de recursos de fonte vedada, oriundos de contribuições de ocupantes de cargos de chefia demissíveis ad nutum. Escorreita a aplicação, pelo juízo a quo, da legislação vigente à época do exercício financeiro a que se refere a prestação de contas, alinhando-se ao entendimento consolidado por esta Corte e na esteira da jurisprudência do TSE.

2. Irrelevante o argumento de o cargo ocupado por autoridade ser em governo administrado por integrante de partido adversário. Recebida a doação de servidor que se enquadre na categoria de autoridade pública, nos termos da Resolução TSE n. 23.464/2015, aplicável ao exercício em análise, incide o caráter objetivo da norma, sem espaço para eventual análise subjetiva.

3. Valores irregularmente recebidos que representam 2,83% do total de recursos arrecadados pela agremiação no exercício financeiro. Aplicados princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Mantido o recolhimento ao Tesouro Nacional. Afastadas a sanção de multa sobre a quantia a ser recolhida ao Tesouro Nacional e a penalidade de suspensão do repasse de quotas do Fundo Partidário.

4. Parcial provimento.

(Recurso Eleitoral n 5482, ACÓRDÃO de 11.04.2019, Rel. Marilene Bonzanini, DEJERS 22.4.2019.)

 

Nos termos do acórdão na PC n. 0602520-60.2018.6.21.0000, julgado na sessão de 2.6.2020, redigido pelo ilustre Des. El. Gerson Fischmann, prolator do voto divergente vencedor, restou assentado que o Tribunal não abriu discussão sobre a necessidade de se estabelecer “um juízo valorativo entre os vícios constatados nas prestações de contas a fim de fixar uma diretriz sobre quais são os que não comportam atenuação com base nos ditames da razoabilidade e da proporcionalidade, e sobre qual o montante absoluto de irregularidades que pode ser considerado, de per si, uma falha grave o suficiente para atrair o juízo de reprovação”.

No julgado foi consignado que o entendimento desta Corte está pautado na aprovação com ressalvas para irregularidades de até 10% sobre o valor global da arrecadação, “independentemente de seu montante”, com esteio no princípio da proporcionalidade em relação aos seus subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, este último tomado como máxima da necessidade, exigibilidade e adequação:

Entretanto, no julgamento das prestações de contas, seja de exercício financeiro, seja de campanha eleitoral, o TRE-RS não estabelece distinção entre as falhas constatadas ao analisar a possibilidade de aprovação com ressalvas. O critério que vem sendo adotado é exclusivamente objetivo, partindo-se do raciocínio de que, se a legenda ou candidato demonstrou a aplicação regular de 90% ou mais da sua arrecadação, não é razoável ou proporcional, a desaprovação das contas.

 

Não se estabeleceu, até o presente momento, juízo de valor de maior ou menor gravidade entre o desrespeito à política de quotas e, por exemplo, o recebimento de recursos de origem não identificada ou de fonte vedada, ou até mesmo a ausência de comprovação de despesas realizadas com recursos públicos.

 

No atual estágio dos julgamentos ocorridos acerca das eleições de 2018, o entendimento do Tribunal foi pautado na consideração de que se as contas apresentam quaisquer irregularidades de até 10% sobre o valor global da arrecadação, independentemente de seu montante, a conclusão pela desaprovação não atenderia ao princípio da proporcionalidade em relação aos seus subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, este último tomado como máxima da necessidade, exigibilidade e adequação (vide Exames inerentes à proporcionalidade, em: ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 11 ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 167-169).

 

Dessa maneira, na linha da pacífica jurisprudência, as contas devem ser aprovadas com ressalvas.

Ainda, repriso que o reconhecimento do aporte de recursos de fonte vedada impõe a determinação do recolhimento de R$ 32.018,78 (trinta e dois mil, dezoito reais e setenta e oito centavos) ao Tesouro Nacional.

Além desses consectários, fica o partido advertido para que, em exercícios futuros, observe as disposições normativas que impõem a aplicação de recursos nas ações afirmativas.

 

ANTE O EXPOSTO, DECLARO, incidentalmente, a inconstitucionalidade dos arts. 55-A e 55-D da Lei n. 9.096/95, incluídos pela Lei n. 13.831/19. No mérito, VOTO pela aprovação com ressalvas das contas do exercício financeiro de 2016 do DIRETÓRIO ESTADUAL DO PARTIDO DOS TRABALHADORES – PT, pela determinação de recolhimento de R$ 32.018,78 (trinta e dois mil, dezoito reais e setenta e oito centavos) ao Tesouro Nacional, e a transferência de R$ 17.500,00 (dezessete mil e quinhentos reais) para a conta bancária específica do Fundo Partidário destinada à criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres na esfera estadual, sendo vedada sua aplicação para finalidade diversa, devendo a quantia ser investida dentro do exercício financeiro subsequente ao do trânsito em julgado desta decisão, além do percentual previsto para o próprio exercício em que for cumprida a determinação, sob pena de acréscimo de 12,5% ao valor, a ser investido na mesma finalidade, conforme previsto no inc. V e § 5º do art. 44 da Lei n. 9.096/95, nos termos da fundamentação.

 

Após o trânsito em julgado da decisão, e antes da remessa de elementos à Fazenda Pública, devem os autos ser enviados ao setor técnico para exame da adequação do documento, qual seja, a GRU de R$ 6.500,00, para fins de consolidação do valor a ser recolhido ao Tesouro Nacional.

 

É como voto, Senhor Presidente.