RC - 44694 - Sessão: 09/03/2020 às 11:00

VOTO-VISTA

Trago em mesa voto-vista nos autos do recurso criminal interposto pelo Ministério Público Eleitoral contra a sentença que julgou improcedente a denúncia criminal promovida em face de Rozelaine Pereira, Edite Rodrigues e Maria Cristina Fernandes.

Na sessão de 10.12.2019, o ilustre relator, Desembargador Eleitoral Roberto Carvalho Fraga, votou pelo provimento do recurso manejado pelo Ministério Público Eleitoral, no sentido de condenar Edite Rodrigues Lisboa e Rozelaine Pereira pela prática do delito tipificado no art. 299 do Código Eleitoral, fixando a pena de cada uma em 01 (um) ano de reclusão, em regime aberto, e multa em 05 (cinco) dias-multa, ao valor unitário de 1/30 (um trinta avos) do salário-mínimo vigente ao tempo do fato, corrigida monetariamente até o efetivo recolhimento. De ofício, reconheceu a incompetência da Justiça Eleitoral para julgamento dos delitos descritos no aditamento à denúncia das fls. 353-357v. (falso testemunho e coação no curso do processo), de modo a declinar da competência para julgamento para a Justiça Federal de 1ª Instância.

Pedi vista dos autos para melhor examinar a matéria relativa ao reconhecimento, de ofício, da incompetência da Justiça Eleitoral para apreciar os crimes de falso testemunho e corrupção de testemunha no curso do processo, assim como o mérito propriamente dito das práticas delituosas.

Do reconhecimento de ofício da competência da Justiça Federal, para o julgamento dos delitos de falso testemunho e corrupção de testemunha no curso do processo em prejuízo às recorridas

Após a distribuição da ação penal contra EDITE RODRIGUES LISBOA e ROZELAINE PEREIRA, em razão de conduta supostamente praticada na instrução deste processo criminal, o MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL aditou a inicial acusatória para incluir fatos novos: aqueles tipificados no art. 342, § 1º, c/c o art. 29, e art. 343, caput e parágrafo único, na forma do art. 69, todos do Código Penal, em desfavor de EDITE RODRIGUES LISBOA; além disso, incluiu o Ministério Público Eleitoral a imputação do delito de falso testemunho, tipificado no art. 342, § 1º, c/c o art. 29 do Código Penal, contra MARIA CRISTINA FERNANDES, entendendo existir lastro probatório mínimo para iniciar a persecução penal em juízo (fls. 353 - 357).

O relator, de ofício, reconheceu a incompetência da Justiça Eleitoral para julgar os delitos de falso testemunho e de corrupção de testemunha no curso do processo, porque não teriam relação com o processo eleitoral ou influência sobre ele, mesmo entendendo de forma abrangente e considerando quaisquer ações que pudessem favorecer, prejudicar ou estar relacionadas a atos praticados durante a campanha eleitoral ou em razão dela.

Entretanto, com a mais respeitosa vênia, tenho que a matéria em relação à competência para julgamento dos delitos de falso testemunho e corrupção da testemunha no curso do processo não poderia ter sido suscitada de ofício, em prejuízo às recorridas.

Nesse sentido, julgados do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça:

EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSO PENAL. ESTELIONATO E CONCUSSÃO. DENÚNCIA ÚNICA. INCOMPETÊNCIA. NULIDADE RELATIVA. PRECLUSÃO. CONCUSSÃO. JUSTIÇA FEDERAL. CONEXÃO. COMPETÊNCIA. REVOGAÇÃO DE LIMINAR.

1. Vários delitos cometidos de forma continuada em concurso material, narrados em uma só denúncia. Procedimento correto. Precedentes.

2. O juiz recebe a denúncia por um simples despacho. Porém, se entender que um dos crimes tipificados não é de sua competência, determinará, fundamentadamente, a cisão processual para que o fato seja processado no juízo competente. Se o juiz não declarar sua incompetência, cabe à defesa suscitá-la na primeira oportunidade processual. Se não fizer, eventual nulidade, por ser relativa, preclui.

3. O crime de concussão praticado contra particulares conveniados com o SUS/INAMPS é de competência da Justiça Comum. Porém, em conexão com estelionato cometido contra a Previdência Social, essa competência se desloca para a Justiça Federal. Habeas conhecido e indeferido.

(STF - HC n. 80751, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Relator p/ Acórdão: Min. NELSON JOBIM, Segunda Turma, julgado em 09.4.2002, DJ 29-08-2003 PP-00035 EMENT VOL-02121-15 PP-03096.)

PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO DA ACUSAÇÃO. NULIDADE ABSOLUTA NÃO ARGUIDA. ACÓRDÃO. RECONHECIMENTO EX OFFICIO. SÚMULA N.º 160 DO STF. 1. É nulo o acórdão que reconhece, de ofício, contra o réu, nulidade não arguida no recurso de acusação, nos termos da Súmula n.º 160 do STF, ainda que se trate de nulidade absoluta. 2. Ordem concedida para que, excluída a nulidade de ofício reconhecida, prossiga a Corte a quo no julgamento de mérito da apelação ministerial.
(STJ - HC - HABEAS CORPUS n. 48213 2005.01.57588-1, NEFI CORDEIRO, STJ - SEXTA TURMA, DJE DATA: 16.5.2014.)

Assim, não sendo a matéria evocada no apelo ministerial, não é dado ao Tribunal, de ofício, arguir nulidade em prejuízo às recorridas, absolvidas em relação a todos os delitos a elas imputados (crime eleitoral e conexos).

Aliás, esse o teor da Súmula 160 do STF:

É nula a decisão do Tribunal que acolhe, contra o réu, nulidade não arguida no recurso da acusação, ressalvados os casos de recurso de ofício.

Dessarte, tenho por suscitar a preclusão da matéria no que se refere à incompetência do juiz eleitoral para julgamento dos crimes conexos.

Destaco.

Superada a preliminar, divirjo do entendimento da relatoria, a fim de reconhecer a competência desta Justiça Especializada para julgar os delitos conexos.

Explico.

Observe-se a descrição de tais condutas delitivas:

Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa

§ 1º As penas aumentam-se de um sexto a um terço, se o crime é praticado mediante suborno ou se cometido com o fim de obter prova destinada a produzir efeito em processo penal, ou em processo civil em que for parte entidade da administração pública direta ou indireta.

Art. 343. Dar, oferecer ou prometer dinheiro ou qualquer outra vantagem a testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete, para fazer afirmação falsa, negar ou calar a verdade em depoimento, perícia, cálculos, tradução ou interpretação:

Pena - reclusão, de três a quatro anos, e multa

Parágrafo único. As penas aumentam-se de um sexto a um terço, se o crime é cometido com o fim de obter prova destinada a produzir efeito em processo penal ou em processo civil em que for parte entidade da administração pública direta ou indireta.

A descrição do fato tipificado no art. 342 do Código Penal, imputado a Edite e a Maria Cristina está assim vazada no aditamento da denúncia (fls. 353v.-357):

Após o recebimento da denúncia e antes das audiências de instrução designadas para as datas de 11 de abril de 2017, as denunciadas Edite Rodrigues Lisboa, conhecida por "Cigana", vereadora eleita na eleição de 2016, e Maria Cristina Fernandes, testemunha arrolada pelo Ministério Público, em união de vontades, finalidades e ações, concorreram para a prática de crime de falso testemunho prestado pela segunda na data de 16 de maio de 2017, na ação penal eleitoral n° 446-94.2016.6.21.0051, ambas com a finalidade de não confirmar em juízo fato penalmente relevante imputado à denunciada Edite Rodrigues Lisboa.

Ao agir, a denunciada Edite, de forma pessoal e também por interpostas pessoas, induziu e instigou a denunciada Maria Cristina a negar em juízo as informações que prestara na Promotoria de Justiça Eleitoral na data de 14 de setembro de 2016, juntamente com Jair Silva de Mello, seu então companheiro, que deram causa ao oferecimento de denúncia por corrupção eleitoral contra a primeira e Rozelaine Pereira, crime apurado nesta ação penal.

Para tanto, a denunciada Edite, através de servidores do órgão público Municipal SEMAE - um homem e uma mulher - passou a pressionar a testemunha Maria Cristina e também a sua mãe, Gema Bonetti, mediante mais de uma abordagem na residência da família, orientando-a no sentido de que deveria vir a juízo e afirmar que não viu nada a respeito dos fatos narrados ao Ministério Público Eleitoral, mandando-a não se meter nessa história. Além disso, dias antes da audiência de instrução na qual depôs a testemunha Maria Cristina, mais uma vez esse casal de servidores do SEMAE esteve na sua casa, pegaram sua mãe, Gema, e a conduziram até um prédio próximo da rodoviária para falar com a denunciada Edite, onde novamente foi orientada a afirmar em juízo que não a conhecia que nunca a tinha visto antes e que Jair nunca tinha morado na casa dela.

Cedendo à pressão, a testemunha Maria Cristina, se sentindo ameaçada e com receio de ser prejudicada em face do assédio indevido que estava sofrendo por parte da denunciada Edite, mentiu na audiência de instrução do dia 16 de maio de 2016, afirmando em juízo que não viu, não estava presente no momento em que seu ex-companheiro Jair marcou a consulta e recebeu os "santinhos" da funcionária do posto de saúde, pessoa que não é capaz de reconhecer e que ninguém lhe pediu voto (mídia de fls. 286), assim contrariando as informações que dera na Promotoria Eleitoral na companhia de seu então companheiro, Jair Silva de Mello (documentos de fls. 12/13), com quem, na época, coabitava em regime de união familiar.

Após essa audiência, já na data de 24 de maio de 2016, a testemunha Maria Cristina Fernandes compareceu na sede das Promotorias de Justiça de São Leopoldo e solicitou à servidora Leda Rambo, na triagem da Secretaria-Geral, atendimento com Promotor de Justiça Eleitoral, a quem afirmou ter mentido na audiência por conta da pressão que sofrera por parte da denunciada Edite, pedindo para ser novamente inquirida na ação penal com o fim de se retratar e falar a verdade sobre o que sabe e o que viu ocorrer no posto de saúde quando a denunciada Edite tentou comprar o voto. (Grifo nosso)

No que diz respeito ao crime de corrupção no curso do processo (art. 343 do Código Penal), constou no aditamento da denúncia (fls. 353v. - 357):

[...]

Após o recebimento da denúncia e antes das audiências de instrução designadas para as datas de 11 de abril de 2017, 02 de maio de 2017 e 16 de maio de 2017, a denunciada Edite Rodrigues Lisboa, conhecida por "Cigana", vereadora eleita na eleição de 2016, ofereceu dinheiro e vantagem à testemunha Jair Silva de Mello, arrolada pelo Ministério Público na ação penal eleitoral nº 446-94.2016.6.21.0051, para esta fazer afirmação falsa e negar a verdade sobre fato penalmente relevante em depoimento judicial no processo criminal que apura a prática de crime eleitoral imputado à denunciada.

Ao agir, a denunciada Edite, de forma pessoal e também por interposta pessoa, um servidor público vinculado à Secretaria Municipal de Esportes de Lazer, identificado por Jair como Rogério, ofereceu à testemunha o valor R$ 600,00 (seiscentos reais) para pagar um conserto do seu automóvel, bem como prometeu lhe dar um emprego no ginásio de esportes do município, especificamente uma obra de reforma de banheiros e grades da quadra de esporões, em troca orientando-lhe a afirmar no depoimento judicial que não a conhecia e que a pessoa que lhe alcançou o “santinho” dentro do posto de saúde também não era sua conhecida. Ainda, mandou a testemunha afirmar em juízo que tinha encontrado os santinhos na rua e que no dia em que esteve na promotoria fazendo a denúncia estava muito nervoso e que tinha se enganado em relação à entrega do “santinho”.

[…]

Como se verifica, as condutas de falso testemunho e corrupção de testemunha no curso do processo teriam o objetivo de não confirmar em juízo a prática, pela ré Edite, do crime previsto no art. 299 do Código Eleitoral. Ambos os delitos teriam como núcleo enfraquecer ou esvaziar a prova de compra de votos, quer pelo depoimento no sentido de que Maria Cristina não presenciara ou tivera conhecimento do agendamento da consulta médica de Gema Bonetti em troca de voto para Edite (falso testemunho), quer para que a testemunha Jair Silva de Mello dissesse que os “santinhos foram encontrados na rua e que no dia em que esteve na promotoria estava muito nervoso e que tinha se enganado em relação à entrega do santinho”.

Nessa linha de intelecção, tenho que ambos os delitos possuíam a finalidade de garantir a impunidade do delito de corrupção eleitoral, estando presentes as causas de modificação da competência pela conexão previstas no art. 76, incs. II e III, do Código de Processo Penal:

Art. 76. A competência será determinada pela conexão:

II - se, no mesmo caso, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas;

III - quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.

Nessas hipóteses, a competência para julgar a infração comum é dessa Especializada, conforme entendimento firmado pelo egrégio Tribunal Superior Eleitoral:

HABEAS-CORPUS. ARTS. 5º, LXVIII, DA CF E 648, III, DO CPP. PEDIDO DE LIMINAR. DEFERIDO. SUSPENSÃO AUDIÊNCIA ADMONITÓRIA. CRIMES CONEXOS. ALEGAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL, NULIDADE POR NÃO-OBSERVÂNCIA DE RITO ESPECIAL (ART. 513 DO CPP) E ILEGALIDADE DA PRISÃO. NÃO-CARACTERIZAÇÃO. ORDEM DENEGADA. LIMINAR CASSADA.

- Verificada a conexão entre crime eleitoral e comum, a competência para processar e julgar ambos os delitos é da Justiça Eleitoral. (CF, art. 109, inciso IV, e CPP, art. 78, inciso IV).

- O procedimento previsto nos arts. 513 e seguintes do CPP se reserva aos casos em que a denúncia veicula tão-somente crimes funcionais típicos.

O habeas corpus não é meio próprio para exame aprofundado de questões envolvendo fatos complexos, dependentes de prova.

Ordem denegada. Liminar cassada.

(TSE, HABEAS CORPUS n. 567, Acórdão de 18.3.2008, Relator Min. MARCELO HENRIQUES RIBEIRO DE OLIVEIRA, Publicação: DJ - Diário da justiça, Data: 08.4.2008, p. 7.)

Esse o entendimento também desta Corte:

Recurso Criminal. Inscrição fraudulenta de eleitor. Art. 289 do Código Eleitoral. Falso testemunho. Art. 342 do Código Penal. Improcedência da denúncia.

Cabe à Justiça Federal a apuração do crime de falso testemunho realizado perante órgãos da Justiça Eleitoral. Presença, entretanto, das causas de modificação da competência pela conexão, previstas no art. 76, incs. II e III, do Código de Processo Penal, atraindo o julgamento para o âmbito desta especializada.

1. Inscrição fraudulenta. O conceito de domicílio eleitoral é mais amplo que o de domicílio civil, não exigindo a residência permanente do eleitor no local, mas apenas a comprovação de vínculos com o município, como laços familiares, profissionais, econômicos ou patrimoniais. Demonstrado no conjunto probatório o cumprimento do requisito de ligação pessoal com o município, a permitir a inscrição eleitoral realizada.

2. Falso testemunho. Declarações prestadas na fase de inquérito coerentes com a produção da prova em juízo, não evidenciando a ocorrência de falso testemunho.

Provimento negado.

(TRE-RS, RC n. 48-36.2015.6.21.0067, Relator: Dr. Jamil Andraus Hanna Bannura, julgado em 07.3.2017.)

Essa temática foi recentemente apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, em março de 2019, no Inquérito n. 4.435, ocasião em que o Plenário do STF reafirmou a aplicabilidade plena do art. 35 do Código Eleitoral, que diz competir ao juiz eleitoral o julgamento dos crimes eleitorais e de outros que lhes sejam conexos, inclusive quanto a eventuais crimes contra a administração pública, de organização criminosa e de lavagem de capitais, investigados no contexto da operação “lava-jato”, e seus desdobramentos.

Com essas considerações, tenho por reconhecer a competência da Justiça Eleitoral para processar e julgar a acusação de falso testemunho e de corrupção de testemunha no curso do processo, por considerá-los conexos ao crime previsto no art. 299 do Código Eleitoral.

Destaco.

 

Des. André Luiz Planella Villarinho:

Acompanho, na preliminar, o voto do Des. Thompson Flores.