RE - 1764 - Sessão: 20/04/2020 às 14:00

 

RELATÓRIO

Trata-se de recurso interposto pelo Diretório Municipal do Partido Democrático Trabalhista (PDT) de Porto Alegre/RS contra sentença que desaprovou sua prestação de contas referente à movimentação financeira do exercício de 2017, determinou o recolhimento ao Tesouro Nacional de R$ 8.340,00, acrescido de multa de 20%, e ordenou a destinação de 12,5% dos recursos recebidos do Fundo Partidário, no exercício subsequente, para a promoção e difusão da participação política das mulheres.

Em suas razões, afirma que foram juntados aos autos todos os documentos comprobatórios da movimentação financeira realizada e que os dados foram desconsiderados pelo juízo a quo. Alega que as contas apresentam erros formais que não comprometem a confiabilidade e a aprovação. Aponta que o investimento na participação da mulher na política foi custeado pelo diretório nacional, inexistindo obrigatoriedade de os programas de incentivo ocorrerem no âmbito municipal e que, nesse ponto, é inviável o cumprimento da determinação de emprego de 12,5% do Fundo Partidário para tal finalidade no exercício financeiro subsequente, correspondente ao ano de 2018. Invoca o projeto de lei que propôs anistiar as obrigações impostas na sentença – PL n. 1.321/19, posteriormente convertido na Lei n. 13.831, de 17.5.19 – e reproduz o art. 2º, que acresce dispositivos à Lei n. 9.096/95 (arts. 55-A, 55-B, 55-C e 55-D), requerendo sua aplicação por constituir novatio legis in mellius. Assevera que as contribuições consideradas como procedentes de fontes vedadas foram repassadas por pessoas físicas filiadas à agremiação, em observância às normas estatutárias, com a identificação do respectivo CPF. Reporta-se ao julgamento da ADI n. 439 e afirma que a decisão não pode se fundamentar na interpretação dada pelo TSE à legislação. Postula a reforma da sentença para que as contas sejam aprovadas, ainda que com ressalvas (fls. 411-433). Junta documentos (fls. 434-461).

A Procuradoria Regional Eleitoral suscitou, preliminarmente, a declaração da inconstitucionalidade incidental dos arts. 55-A, 55-C e 55-D da Lei dos Partidos Políticos, Lei n. 9.096/95, incluídos pela Lei. n. 13.831/19, e opinou, no mérito, pelo desprovimento do recurso.

Após a conclusão do feito para julgamento, este Tribunal, na sessão de 19.8.19, declarou, no âmbito do controle difuso, a inconstitucionalidade do art. 55-D da Lei n. 9.096/95 (TRE-RS, RE n. 35-92, de minha relatoria, DEJERS 23.8.19).

Devido à propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 6.230 pela Procuradoria-Geral da República, postulando, na esfera do controle concentrado de competência do Supremo Tribunal Federal, a declaração da inconstitucionalidade dos dispositivos invocados no recurso, o processo foi suspenso por cerca de 30 (trinta) dias (fl. 494).

A seguir, foi oportunizada ao recorrente a manifestação sobre a arguição de inconstitucionalidade suscitada pelo Parquet Eleitoral (fl. 501), e o prazo transcorreu em branco (fl. 505).

Depois da conclusão dos autos, determinei a realização de novo cálculo das contribuições partidárias efetuadas após a vigência da Lei n. 13.488, de 06.10.17, a qual deu nova redação ao inc. V do art. 31 da Lei n. 9.096/95, para excluir da vedação os repasses provenientes de pessoas físicas que exerçam função ou cargo público de livre nomeação e exoneração, ou cargo ou emprego público temporário, quando filiados ao partido político (fl. 507).

À fl. 512, foi informado que, das contribuições recebidas pelo partido e consideradas procedentes de fontes vedadas pelo juízo a quo, no montante de R$ 8.340,00, apenas repasses que totalizam R$ 340,00 não estão abrangidos pela nova disposição legislativa, a qual alcança contribuições no total de R$ 8.000,00.

É o relatório.

VOTO

1. Preliminar

Analiso, como matéria preliminar, a arguição incidental de inconstitucionalidade dos arts. 55-A, 55-C e 55-D da Lei dos Partidos Políticos, Lei n. 9.096/95, suscitada pela Procuradoria Regional Eleitoral.

Os dispositivos legais objeto do incidente de inconstitucionalidade foram incluídos na Lei dos Partidos Políticos pela Lei n. 13.831, de 17 de maio de 2019, sendo que o art. 55-D foi promulgado em 19 de junho de 2019, após a derrubada de veto presidencial pelo Congresso Nacional, e estão assim redigidos:

Art. 55-A. Os partidos que não tenham observado a aplicação de recursos prevista no inciso V do caput do art. 44 desta Lei nos exercícios anteriores a 2019, e que tenham utilizado esses recursos no financiamento das candidaturas femininas até as eleições de 2018, não poderão ter suas contas rejeitadas ou sofrer qualquer outra penalidade. (Incluído pela Lei n. 13.831, de 2019.)

Art. 55-B. Os partidos que, nos termos da legislação anterior, ainda possuam saldo em conta bancária específica conforme o disposto no § 5º-A do art. 44 desta Lei poderão utilizá-lo na criação e na manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres até o exercício de 2020, como forma de compensação. (Incluído pela Lei n. 13.831, de 2019.)

Art. 55-C. A não observância do disposto no inciso V do caput do art. 44 desta Lei até o exercício de 2018 não ensejará a desaprovação das contas. (Incluído pela Lei n. 13.831, de 2019.)

Art. 55-D. Ficam anistiadas as devoluções, as cobranças ou as transferências ao Tesouro Nacional que tenham como causa as doações ou contribuições feitas em anos anteriores por servidores públicos que exerçam função ou cargo público de livre nomeação e exoneração, desde que filiados a partido político. (Incluído pela Lei n. 13.831, de 2019.)

Os arts. 55-A e 55-C referem-se à determinação estabelecida no art. 44, inc. V, da Lei n. 9.096/95 quanto à aplicação do Fundo Partidário na criação e manutenção de programas para promover e difundir a participação política das mulheres. A norma sofreu alterações em 2019, mas, ao tempo do exercício financeiro objeto das presentes contas, 2017, apresentava a seguinte redação – dada pela Lei n. 13.165/15 e considerada pela sentença recorrida –, a qual deve ser analisada em conjunto com o § 5° do mesmo artigo:

Art. 44. Os recursos oriundos do Fundo Partidário serão aplicados:

(...)

V - na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, criados e mantidos pela secretaria da mulher do respectivo partido político ou, inexistindo a secretaria, pelo instituto ou fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política de que trata o inciso IV, conforme percentual que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 5% (cinco por cento) do total; (Redação dada pela Lei n. 13.165, de 2015.)

(...)

§ 5o O partido político que não cumprir o disposto no inciso V do caput deverá transferir o saldo para conta específica, sendo vedada sua aplicação para finalidade diversa, de modo que o saldo remanescente deverá ser aplicado dentro do exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5% (doze inteiros e cinco décimos por cento) do valor previsto no inciso V do caput, a ser aplicado na mesma finalidade. (Redação dada pela Lei n 13.165, de 2015.)

O art. 55-D, por sua vez, refere-se ao art. 31, inc. II, da Lei n. 9.096/95, dispositivo que veda aos partidos o recebimento de contribuições de servidores públicos investidos em cargos com poder de autoridade.

Art. 31. É vedado ao partido receber, direta ou indiretamente, sob qualquer forma ou pretexto, contribuição ou auxílio pecuniário ou estimável em dinheiro, inclusive através de publicidade de qualquer espécie, procedente de:

(...)

II - autoridade ou órgãos públicos, ressalvadas as dotações referidas no art. 38;

A norma foi regulamentada pela Resolução TSE n. 23.464/15 – que dispõe sobre as regras a serem observadas no julgamento do mérito das presentes contas, por força do disposto no inc. III do § 3° do art. 65 da Resolução TSE n. 23.546/17 –, em seu art. 12, inc. IV, § 1°:

Art. 12. É vedado aos partidos políticos e às suas fundações receber, direta ou indiretamente, sob qualquer forma ou pretexto, doação, contribuição ou auxílio pecuniário ou estimável em dinheiro, inclusive por meio de publicidade de qualquer espécie, procedente de:

(...)

IV – autoridades públicas.

§ 1º Consideram-se como autoridades públicas, para os fins do inciso IV do caput deste artigo, aqueles, filiados ou não a partidos políticos, que exerçam cargos de chefia ou direção na administração pública direta ou indireta.

Posteriormente, foi alterada a redação do inc. II do art. 31 da Lei n. 9.096/95 pela Lei n. 13.488, de 6 de outubro de 2017, norma que também incluiu no dispositivo o inc. V:

Art. 31. É vedado ao partido receber, direta ou indiretamente, sob qualquer forma ou pretexto, contribuição ou auxílio pecuniário ou estimável em dinheiro, inclusive através de publicidade de qualquer espécie, procedente de:

(...)

II - entes públicos e pessoas jurídicas de qualquer natureza, ressalvadas as dotações referidas no art. 38 desta Lei e as provenientes do Fundo Especial de Financiamento de Campanha; (Redação dada pela Lei n. 13.488, de 2017.)

(…)

V - pessoas físicas que exerçam função ou cargo público de livre nomeação e exoneração, ou cargo ou emprego público temporário, ressalvados os filiados a partido político. (Incluído pela Lei n. 13.488, de 2017.)

No caso em apreço, a sentença consigna que as contas foram desaprovadas em razão das seguintes irregularidades: a) ausência de comprovação de despesas realizadas com recursos provenientes do Fundo Partidário, no montante de R$ 7.914,60; b) infringência ao art. 44, inc. V, da Lei n. 9.096/95, por falta de aplicação do percentual mínimo de 5% da verba recebida do Fundo Partidário, equivalente a R$ 14.160,00, na promoção e difusão da participação política da mulher; e c) violação ao art. 31, inc. II, da Lei n. 9.096/95, em virtude do recebimento de recursos de fonte vedada provenientes de autoridades, no valor de R$ 8.340,00.

Nas razões de reforma, o PDT sustenta que os arts. 55-A, 55-B, 55-C e 55-D da Lei n. 9.096/95 constituem novatio legis in mellius, instituto afeto à retroatividade da norma penal mais benéfica, disciplinado no art. 2º do Código Penal: “A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.”

Segundo o recorrente, as contribuições consideradas como procedentes de fontes vedadas pela sentença foram repassadas por pessoas físicas filiadas à agremiação, atraindo a incidência dos referidos dispositivos legais.

Todavia, no parecer ofertado perante esta instância recursal, a Procuradoria Regional Eleitoral alega que, à exceção do art. 55-B, os arts. 55-A, 55-C e 55-D da Lei n. 9.096/95 violam diversos dispositivos da Constituição, a saber: art. 1º, art. 2º, art. 3º, art. 5º, incs. I, II, XXXV, XXXVI, XLI, LV, LIV, art. 17, inc. III, art. 37 e art. 113 do ADCT.

O órgão ministerial sustenta a inconstitucionalidade do art. 55-D da Lei n. 9.096/95 com base nos seguintes fundamentos: a) falta dos dados relativos à previsão de estimativa de impacto orçamentário e financeiro da renúncia de receita em questão, em desrespeito ao art. 113 do ADCT; b) inobservância do devido processo legislativo e consequente violação ao art. 14 da Lei Complementar n. 101/00 e aos arts. 69 e 163 da Constituição Federal, que exigem lei complementar para as alterações das alíquotas dos impostos previstos nos incs. I, II, IV e V do art. 153 da Constituição, na forma do seu § 1º, e cancelamento de débito cujo montante seja inferior ao dos respectivos custos de cobrança; e c) descumprimento do princípio da anualidade ou anterioridade eleitoral insculpido no art. 16 da Constituição Federal.

Na arguição de inconstitucionalidade dos arts. 55-A e 55-C da Lei n. 9.096/95, por sua vez, afirma-se que os dispositivos afastaram o sancionamento até o exercício de 2018, dispensaram as agremiações de pagamento da multa e vedaram a possibilidade de julgamento pela desaprovação das contas, em caso de não observância do percentual respectivo, acarretando: a) violação à Constituição Federal por afronta ao princípio da igualdade ou isonomia, devido à adoção de tratamento desigual aos partidos políticos, pois as legendas que não executaram corretamente a política afirmativa de incentivar a participação feminina foram beneficiadas, o mesmo não ocorrendo com as cumpridoras da legislação; b) afrontamento ao princípio da prestação de contas, ao princípio da inafastabilidade do Judiciário – mais especificamente da Justiça Eleitoral – e ao princípio da vedação do retrocesso, seja porque não se executou corretamente ação de natureza afirmativa, seja porque se resolveu premiar aqueles que a desacataram; c) desrespeito ao inc. III do art. 17 da Constituição Federal ao não permitir a apreciação integral das contas pela Justiça Eleitoral, dado que limitam as possibilidades de provimento jurisdicional e de aplicação de sanções decorrentes de processo.

Inicialmente, consigno, conforme referido na decisão das fls. 494-495 dos autos, que este Tribunal, na sessão de julgamento de 19.8.19, acolheu arguição igualmente suscitada pela Procuradoria Regional Eleitoral e declarou a inconstitucionalidade do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, nos termos transcritos abaixo:

RECURSO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. PARTIDO POLÍTICO. EXERCÍCIO DE 2015. DESAPROVAÇÃO. MATÉRIA PRELIMINAR ACOLHIDA. INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 55-D DA LEI N. 9.096/95, INCLUÍDO PELA LEI N. 13.831/19. MÉRITO. RECEBIMENTO DE RECURSOS DE ORIGEM NÃO IDENTIFICADA E DE FONTE VEDADA. PORCENTAGEM REPRESENTATIVA DAS IRREGULARIDADES DIANTE DA TOTALIDADE DOS RECURSOS ARRECADADOS NO PERÍODO. AFASTADA A APLICAÇÃO DOS POSTULADOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE. MANUTENÇÃO DO JUÍZO DE DESAPROVAÇÃO. REDUZIDO O PERÍODO DE SUSPENSÃO DO FUNDO PARTIDÁRIO. AFASTADA A CONDIÇÃO DE QUE A SANÇÃO SUBSISTA ATÉ QUE OS ESCLARECIMENTOS SEJAM ACEITOS PELA JUSTIÇA ELEITORAL. PROVIMENTO PARCIAL.

1. Incidente de inconstitucionalidade suscitado pelo Procurador Regional Eleitoral. 1.1. O art. 55-D da Lei n. 9.096/95, norma legal objeto do aludido incidente, incluído pela Lei n. 13.831/19, assinala a anistia das devoluções, cobranças ou transferências ao Tesouro Nacional que tenham como causa as doações ou contribuições efetuadas, em anos anteriores, por servidores públicos os quais exerçam função ou cargo público de livre nomeação e exoneração, desde que filiados a partido político. Ausência de notícia de que tenha havido oferecimento dos dados relativos à previsão de estimativa de impacto orçamentário e financeiro quando da tramitação da proposta legislativa prevendo a renúncia da receita. Omissão que afronta a exigência constitucional incluída pela EC n. 95/16 no art. 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. A legislação infraconstitucional igualmente exige seja comprovado o impacto orçamentário e financeiro à concessão de benefício que gere a diminuição de receita da União, nos termos do art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal e arts. 114 e 116 da Lei n. 13.707/18. 1.2. A anistia das verbas consideradas como oriundas de fontes vedadas - benefício instituído em causa própria e sem qualquer finalidade pública subjacente - atenta ao princípio da moralidade administrativa e desvirtua a natureza jurídica do instituto. 1.3. Vício de inconstitucionalidade formal e material. Acolhimento da preliminar. Afastada, no caso concreto, a aplicação do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, incluído pela Lei n. 13.831/19.

(...)

6. Parcial provimento.

(TRE-RS, RE n. 35-92, Rel. Des. Eleitoral Gerson Fischmann, julgado em 19.8.2019, DEJERS de 23.8.2019.)

O art. 55-D foi incluído na Lei dos Partidos Políticos em 19 de junho de 2019, mediante republicação da Lei n. 13.831, de 17 de maio de 2019, em razão da derrubada, pelo Congresso Nacional, de veto presidencial lançado nos seguintes termos:

A propositura legislativa ao estabelecer, por intermédio da inclusão do art. 55-D na Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995, que ficam anistiadas as devoluções, cobranças ou as transferências ao Tesouro Nacional que tenham como causa as doações ou contribuições feitas em anos anteriores por servidores públicos que exerçam função ou cargo público de livre nomeação e exoneração, desde que filiados a partido político, acaba por renunciar receitas para a União, sem a devida previsão de estimativa de impacto orçamentário e financeiro, em infringência ao art. 113 do ADCT, art. 14 da LRF e arts. 114 e 116 da LDO de 2019.

Na hipótese dos autos, o referido artigo, invocado pelo recorrente em suas razões, deve ser declarado inconstitucional pelos mesmos fundamentos traçados no RE 35-92, motivo pelo qual reproduzo as razões por mim lançadas no precedente em questão:

Como muito bem apontado pelo suscitante, não se tem notícia de que tenha havido apresentação dos dados relativos à previsão de estimativa de impacto orçamentário e financeiro por ocasião da tramitação da proposição legislativa prevendo a renúncia da receita em questão.

A exigência da mencionada estimativa tem sede constitucional, incluída pela EC n. 95/16 no ADCT:

Art. 113. A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro.

Além disso, a legislação infraconstitucional igualmente exige a devida comprovação do impacto orçamentário e financeiro à concessão de benefício que gere a diminuição de receita da União (art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal e arts. 114 e 116 da Lei n. 13.707/18).

Assim, no ponto, o dispositivo legal em questão possui vício de inconstitucionalidade na origem.

O constituinte de 1988 foi contundente ao demonstrar a intenção de dedicar papel central aos partidos políticos no Estado Democrático de Direito, elegendo como fundamento da República Federativa do Brasil o pluralismo político.

As funções das agremiações partidárias, na dicção de Mario Justo López (Partidos Políticos: teoría general y régimen legal, p. 40-41), são: a) dar coerência à vontade popular; b) realizar a educação cívica dos cidadãos; c) servir de elo entre o governo e a opinião pública; d) selecionar aqueles que devem dirigir os destinos do Estado; e e) projetar a política de governo e controlar a sua execução.

Como eixo fundante da democracia representativa, os partidos devem respeitar a soberania popular, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e são obrigados a prestar contas à Justiça Eleitoral.

O instituto da prestação de contas tem como escopo emprestar transparência à atividade partidária, identificar a origem e a destinação dos recursos utilizados nas disputas eleitorais, tudo com o propósito de evitar o aporte de dividendos ilícitos no processo eleitoral e evitar o abuso do poder econômico.

Nessa medida, quando esses mesmos organismos que deveriam ser os protagonistas da democracia representativa, em uma verdadeira queda de braço com o Poder Executivo, instituem anistia de todas as verbas consideradas oriundas de fontes vedadas, forçoso reconhecer ofensa direta ao princípio da prestação de contas. Não só isso, sendo o benefício em causa própria e sem qualquer finalidade pública, para dizer o mínimo, há inequívoca violação ao princípio da moralidade administrativa (art. 37, caput, da CF).

A anistia igualmente coloca em situação não isonômica e em posição desfavorável aquelas agremiações partidárias que adimpliram suas obrigações com o recolhimento de importâncias glosadas pela Justiça Eleitoral quando do exame e fiscalização de suas contas.

Significa dizer, nas palavras do eminente Procurador Regional Eleitoral, depois do jogo jogado, mudam as regras e, de forma benevolente e casuísta, concede-se anistia aos que se encontram em mora.

Para além disso, subverte a natureza jurídica do instituto da Anistia, realizando uma aplicação retroativa da Lei n. 13.488/17, que autorizou as doações daqueles que exercem cargo ou função demissível ad nutum, desde que filiados.

Com efeito, a jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de não ser possível a aplicação retroativa das disposições da Lei n. 13.488/17:

 

RECURSO. PRESTAÇÃO DE CONTAS ANUAL. PARTIDO POLÍTICO. EXERCÍCIO DE 2015. PRELIMINAR. MANUTENÇÃO DOS DIRIGENTES PARTIDÁRIOS NO POLO PASSIVO. ILEGITIMIDADE NÃO CONFIGURADA. MÉRITO. RECEBIMENTO DE DOAÇÕES DE FONTES VEDADAS. ALTERAÇÃO LEGISLATIVA. PERMITIDA A CONTRIBUIÇÃO DE FILIADOS. INAPLICABILIDADE AO CASO CONCRETO. APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO VIGENTE À ÉPOCA DOS FATOS. PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. MANUTENÇÃO DO JUÍZO DE IRREGULARIDADE DA DOAÇÃO. REDUÇÃO DO PRAZO DE SUSPENSÃO DO RECEBIMENTO DAS QUOTAS DO FUNDO PARTIDÁRIO. PARCIAL PROVIMENTO.

(...)

3. A Lei n. 13.488/17, publicada em 06.10.17, alterou a redação do art. 31 da Lei n. 9.096/95 - Lei dos Partidos Políticos -, excluindo a vedação de doação de pessoa física que exerça função ou cargo público demissível ad nutum, desde que filiada ao partido beneficiário.

4. Inaplicabilidade ao caso concreto. Incidência da legislação vigente à época dos fatos. Prevalência do princípio da segurança jurídica e da paridade de armas no processo eleitoral, em detrimento da aplicação pontual da retroatividade in bonam partem. Manutenção do juízo de irregularidade das contribuições advindas de cargos demissíveis ad nutum, ainda que os contribuintes sejam filiados à agremiação.

(...)

6. Provimento parcial.

(TRE-RS; Recurso Eleitoral n. 14-97, Relator: Dr. Luciano André Losekann, julgado em 04.12.2017, por unanimidade.)

 

Ressalto que esse entendimento é adotado pelo Tribunal Superior Eleitoral: a legislação que regula a prestação de contas é aquela que vigorava na data em que apresentada a contabilidade, por força do princípio da anualidade eleitoral, da isonomia, do tempus regit actum, e das regras que disciplinam o conflito de leis no tempo (ED-ED-PC 96183/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJE de 18.3.2016).

Portanto, como reação à interpretação dada pelos Tribunais, o legislador, por meio de expediente nada republicano, moral e ético, aprova regramento anistiando todas doações advindas de servidores demissíveis ad nutum filiados, atribuindo eficácia imediata nos processos de prestação de contas e de criação dos órgãos partidários em andamento, a partir de sua publicação, ainda que julgados (art. 3º da Lei n. 13.831/19).

De outra banda, a palavra anistia é derivada do grego amnestía, que significa esquecimento. Na atualidade, anistiar significa um esquecimento das infrações cometidas, isto é, como se as condutas ilícitas nunca tivessem sido praticadas.

Desde a Grécia, vem sendo implementada a anistia como medida geral de clemência, benevolência, posteriormente a acontecimentos ocorridos por lutas, conflitos, provocados por motivos e circunstâncias de caráter político.

Tem por fundamento razões de ordem pública e não pode ser utilizada como favorecimento egoístico ou em causa própria, pressupõe a ocorrência de fatos que foram punidos mas, por motivos de conveniência, são esquecidos, com o objetivo do restabelecimento da tranquilidade do Estado.

Rui Barbosa ensina que vem sendo aplicada desde Solon, 594 anos antes da era cristã, sendo instituto de ampla incidência ao longo da história, sempre em caráter geral e imbuída de finalidade pública.

Como adverte João Barbalho, a anistia não se inspira só nos sentimentos de humanidade e clemência, mas não menos ou principalmente no bem do Estado, em ponderosas razões de ordem pública.

Na espécie, quando o legislador refere que a anistia deve incidir inclusive em relação aos processos em andamento, ou seja, antes da condenação, e se dirige apenas aos partidos políticos (individual), sem qualquer finalidade pública subjacente, evidente o desvio da própria natureza jurídica do tão importante instrumento de pacificação social.

Não é demais lembrar que o poder concedido ao legislador não é ilimitado e está sujeito a controle.

Lênio Streck, na sua obra Hermenêutica Jurídica em Crise, adverte para o que se pode chamar de integridade legislativa, significa dizer, o legislador igualmente há de fazer leis de modo coerente, observando uma sequência lógica e histórica.

Desse tema também se ocupou Ronald Dworkin, na sua obra O Império do Direito, no sentido de que a integridade legislativa deve ser concebida como limite de possibilidades de criação do direito pelos legisladores. Daí a assertiva de que as normas devem ser concebidas de forma a constituir um sistema único e coerente de justiça e equidade.

Nessa quadra, cabe lembrar que também deve ser imposto aos legisladores a construção da história legislativa como na metáfora de Dworkin do romance em cadeia, no sentido de que cada lei criada deve representar o capítulo seguinte da mesma obra.

Por derradeiro, acrescento que há outros dispositivos nessa mesma Lei n. 13.831/19 de constitucionalidade e integridade duvidosa, como é o caso daqueles que retiram a possibilidade de a Justiça Eleitoral rejeitar contas ou aplicar penalidade às agremiações partidárias que deixaram de aplicar o percentual mínimo de recursos para o financiamento das candidaturas femininas. Entretanto, deixo de avançar no tema, pois não é objeto do presente incidente.

Em resumo, o art. 55-D, inserido na Lei dos Partidos Políticos pela Lei n. 13.831/19, padece de vício de inconstitucionalidade formal e material, na medida em que deixou de ser apresentada estimativa de impacto orçamentário, violou os princípios da prestação de contas, da moralidade administrativa e da integridade legislativa.

Com essas considerações, entendo que merece acolhimento o incidente de inconstitucionalidade suscitado, afastando, no caso concreto, a aplicação do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, incluído pela Lei n. 13.831/19.

Além disso, cumpre analisar a arguição de inconstitucionalidade dos arts. 55-A e 55-C da Lei n. 9.096/95.

Segundo a Procuradoria Regional Eleitoral, tais disposições foram incluídas na legislação de forma a mitigar as sanções previstas no § 5° do art. 44 da Lei n. 9.096/95 e são inconstitucionais à luz do art. 5º, inc. I, da Constituição Federal, “na medida em que, a um só tempo, incrementam a desigualdade já existente entre candidatos e promovem o retrocesso das ações até aqui realizadas”.

De fato, conforme antes referido, a norma, na redação vigente ao tempo do exercício financeiro de 2017, determinava ao partido a transferência de saldo do Fundo Partidário para a conta específica e sua utilização no exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5% quando os 5% não tenham sido investidos na promoção da participação das mulheres na política.

Os arts. 55-A e 55-C da Lei n. 9.096/95 estabelecem que os partidos que descumpriram, nos exercícios anteriores a 2019, a obrigação de aplicar o mínimo de 5% dos recursos do Fundo Partidário na criação e manutenção de programas promovendo e difundindo a participação política das mulheres, mas que tenham utilizado essa verba no financiamento de candidaturas femininas até as eleições de 2018, não poderão ter suas contas rejeitadas ou sofrer qualquer outra penalidade. Além disso, a não observância da regra até o exercício de 2018 não ensejará a desaprovação das contas.

Portanto, acompanho a argumentação do Parquet no sentido de que essas disposições limitam a atuação do Poder Judiciário Eleitoral no julgamento das contas partidárias, violando o inc. III do art. 17 da Constituição Federal, dispositivo que prevê o dever de os partidos políticos prestarem contas de suas finanças à Justiça Eleitoral.

Com efeito, ao dispensar as agremiações de pagamento da multa e vedar ao órgão julgador a possibilidade de desaprovar das contas, o legislador interferiu e limitou a plena atuação do Poder Judiciário Eleitoral, a quem compete decidir pela regularidade, ou não, da movimentação financeira apresentada pelos partidos políticos, impedindo a apreciação integral das contas.

O Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos, mais conhecido como Fundo Partidário, é constituído de dotações orçamentárias da União, multas e penalidades pecuniárias aplicadas nos termos do Código Eleitoral e das leis conexas, doações de pessoas físicas ou jurídicas, sendo, portanto, uma forma de financiamento público, não exclusivo, dos partidos políticos do Brasil.

Na regulamentação do emprego desses valores, a Lei n. 9.096/95 estabelece destinações específicas e vinculadas ao dever de prestar contas da sua aplicação à Justiça Eleitoral, defendendo o órgão ministerial que “a constitucional autonomia partidária, portanto, não proíbe a entrega de recursos públicos atrelados à sustentação de política pública de promoção de igualdade de gênero na política”.

Veja-se que, em verdade, o inc. V do art. 44 da Lei n. 9.096/95 nada mais fez que conferir concretude à política pública de igualdade de gênero na seara partidária e nas campanhas eleitorais, ao determinar que essa modalidade de ação afirmativa seja financiada com recursos públicos.

É certo que a autonomia partidária deve estar alinhada aos princípios e às regras tendentes a aperfeiçoar o regime democrático – que tem por base o pluralismo político e se alicerça na diversidade de representação –, especialmente no que concerne à proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana, mormente quando focados na promoção da igualdade de gênero, em um quadro generalizado de sub-representação feminina na política, verificado, nada obstante, que mais da metade da população brasileira seja constituída por mulheres.

Ora, as legendas que não observam a legislação, ao incluir em sua agenda a política afirmativa de criação e manutenção de programas promovendo e difundindo a participação política das mulheres, devem arcar com as consequências previstas no § 5° do art. 44 da Lei n. 9.096/95 quando do descumprimento: transferência do saldo de recursos do Fundo Partidário para conta específica destinada à ação afirmativa – sendo vedada sua aplicação para finalidade diversa –, para dispêndio dentro do exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5% do valor equivalente aos 5% previstos no inc. V do caput do mesmo dispositivo legal, a ser destinado para os mesmos fins.

As ações afirmativas são medidas que podem ser definidas como:

[…] um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional, bem como para corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.

(GOMES, Joaquim B. Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo direito constitucional brasileiro. In: SANTOS, Sales Augusto. (Org.). Ações afirmativas e combate ao racismo nas Américas. Brasília: MEC/SECAD, 2005, p. 55.)

 

Flávia Piovesan define as políticas públicas afirmativas como “discriminações positivas, um meio de exteriorização do princípio da solidariedade e um estímulo ao desenvolvimento social e à diversidade, elementos de suma importância para alavancar a inserção populacional no cenário do sistema capitalista de forma mais humanizada e comprometida com o desenvolvimento de uma sociedade justa, livre e solidária” (PIOVESAN, Flávia. As ações afirmativas sob a perspectiva dos direitos humanos. In: SANTOS, Sales Augusto. (Org.). Ações afirmativas e combate ao racismo nas Américas. Brasília: MEC/SECAD, 2005, p. 35-36).

Efetivamente, o desenvolvimento de uma sociedade justa, livre e solidária é objetivo fundamental da República brasileira, ditado pela Constituição Federal de 1988 a partir de uma inspiração pautada nos ideais de justiça e democracia, e que atuam, no mínimo, como vetores interpretativos da ordem jurídica como um todo (cf. SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2006. p. 295).

Desse modo, o objetivo da previsão de uma ação afirmativa nunca poderá ser o de restringir direitos, uma vez que o instituto visa, justamente, ao acolhimento, à correção das desigualdades, à proteção de direitos e nunca ao banimento ou à diminuição.

Por essas razões, o tema relaciona-se diretamente com o princípio da proibição do retrocesso, definido pelo jurista Ingo Wolfgang Sarlet como “toda e qualquer forma de proteção de direitos fundamentais em face de medidas do poder público, com destaque para o legislador e o administrador, que tenham por escopo a supressão ou mesmo restrição de direitos fundamentais (sejam eles sociais, ou não)”. (A assim designada proibição de retrocesso social e a construção de um direito constitucional comum latino-americano. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC. Belo Horizonte: Fórum, v. 3, n. 11, p. 167–204, jul./set., 09.)

Bem se evidencia que, no caso dos autos, a declaração da inconstitucionalidade é medida impositiva.

Ao tratar da normatividade dos princípios constitucionais e da sua eficácia negativa, o Ministro Luís Roberto Barroso leciona que “a eficácia negativa implica a paralisação da aplicação de qualquer norma ou ato jurídico que esteja em contrariedade com o princípio constitucional em questão. Dela pode resultar a declaração de inconstitucionalidade de uma lei, seja em ação direta – com sua retirada do sistema –, seja em controle incidental de constitucionalidade – com sua não incidência no caso concreto”. (Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5. ed., São Paulo: Saraiva, 2015, p. 359.)

O Parquet acrescenta, em sua manifestação, que, em 2015, o legislador, ciente de que a reserva de cotas de gênero nas listas de candidatos não basta para a superação da desigualdade representativa verificada entre homens e mulheres, “houve por bem obrigar a destinação, para promoção e difusão de participação política feminina, até o ano de 2024, de percentuais de 20% e 15% do tempo de acesso 'gratuito' dos partidos políticos ao rádio e à televisão. Desde 1995, a lei previa que os órgãos nacionais de direção partidária fixassem o tempo, respeitado o limite de 10%”.

E pondera que, efetivamente, o inc. V do art. 44 da Lei dos Partidos Políticos, ao obrigar a aplicação de recursos na promoção da participação feminina na política, faz cair por terra a alegação de “inexistência de mulheres vocacionadas, em quantidade necessária, para concorrer aos pleitos eleitorais”.

Esse dispositivo estabelece a alocação de recursos públicos do Fundo Partidário em benefício de mulheres, na consideração de pertencentes a um grupo discriminado e vitimado pela exclusão na participação da vida política brasileira.

Para a agremiação partidária que descumpre o dispositivo, o § 5º do art. 44 prevê que o saldo deverá ser transferido para uma conta bancária específica e utilizado para a finalidade legalmente estabelecida, dentro do exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5%, sujeitando-se o partido à desaprovação das contas, devolução da quantia ao Tesouro Nacional e ao pagamento da multa de até 20% sobre o valor, na forma do art. 37 da Lei n. 9.096/95.

Sobre o apenamento, o órgão ministerial, com propriedade, traz à colação excerto de ementa de um precedente do Tribunal Superior Eleitoral nos autos da prestação de contas de diretório nacional PC 292-88, da relatoria do Min. Og Fernandes, publicado em 8.5.19, no qual se assentou que “o reiterado descumprimento das normas de incentivo à participação política da mulher caracteriza falha grave, apta a ensejar a desaprovação das contas”:

PRESTAÇÃO DE CONTAS DE PARTIDO POLÍTICO. DEMOCRATAS (DEM) - DIRETÓRIO NACIONAL. EXERCÍCIO FINANCEIRO DE 2013. IRREGULARIDADES QUE TOTALIZAM R$ 1.304.484,60, EQUIVALENTE A 7,2% DO VALOR RECEBIDO DO FUNDO PARTIDÁRIO. REITERAÇÃO NO DESCUMPRIMENTO DA DESTINAÇÃO DE RECURSOS DO FUNDO PARTIDÁRIO À PARTICIPAÇÃO FEMININA NA POLÍTICA. FALHA GRAVE. DESAPROVAÇÃO. IMPOSIÇÃO DE RESSARCIMENTO AO ERÁRIO DAS QUANTIAS RECEBIDAS DO FUNDO PARTIDÁRIO E IRREGULARMENTE APLICADAS. SANÇÕES DE ACRÉSCIMO DE 2,5% NO GASTO COM O INCENTIVO À PARTICIPAÇÃO DA MULHER NA POLÍTICA E DE SUSPENSÃO DA COTA DO FUNDO PARTIDÁRIO POR 1 MÊS, DIVIDIDO EM QUATRO PARCELAS. SANÇÃO MÍNIMA. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE. PRECEDENTES.

(...)

7.3. Desaprovação das contas. Falha grave. Apesar de o percentual da aplicação irregular de recursos recebidos do Fundo Partidário não ser significativo, o reiterado descumprimento das normas de incentivo à participação política da mulher caracteriza falha grave, apta a ensejar, na linha da orientação desta Corte, a desaprovação das contas.

Precedentes.

8. Determinação

8.1. Devolução ao erário de R$ 398.642,99, devidamente atualizados, que devem ser pagos com recursos próprios do partido.

8.2. Aplicação de 5% do total do Fundo Partidário para o incentivo à participação feminina na política, acrescido de 2,5%, devendo essa implementação ocorrer no exercício seguinte ao do julgamento destas contas - salvo se o tiver feito em exercícios anteriores a este marco -, para garantir a efetiva aplicação da norma, sem prejuízo do valor a ser destinado a esse fim no ano respectivo. Precedentes.

8.3. Suspensão do repasse de uma única cota do Fundo Partidário - patamar mínimo, conforme dispõe o art. 37, § 3º, da Lei nº 9.096/95 -, a ser cumprida de forma parcelada, em quatro vezes, com valores iguais e consecutivos, a fim de manter o regular funcionamento do partido.

(TSE, PC 292-88.2014.6.00.0000, Rel. Min. Og Fernandes. DJE 8.5.2019.) (Grifei.)

Ademais, ainda que os arts. 55-A e 55-C da Lei dos Partidos Políticos sejam compreendidos como reação legislativa – enquanto modalidade de “ativismo congressual” amparada pelo princípio da separação entre os poderes –, não seria possível a invocação do instituto, pois esses dispositivos representam, na hipótese vertente, violação aos princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade e da vedação do retrocesso social, por interferirem de forma prejudicial na eficácia do cumprimento da ação afirmativa, premiando os partidos políticos que a desrespeitaram.

Os postulados da igualdade e da vedação do retrocesso social dialogam com o princípio da segurança jurídica, pois as disposições legais sob exame apresentam-se com o claro propósito de salvaguarda ao descumprimento do inc. V do art. 44 da Lei n. 9.096/95 e, conforme defende a Procuradoria Regional Eleitoral, “de violação à autoridade de julgados do STF –, ao permitir uma postergação de futura execução de decisão que reconheceu a não aplicação do percentual destinado às candidaturas femininas”.

Nos judiciosos argumentos apresentados, a Procuradoria Regional Eleitoral ressalta que, em 15.3.18, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5617, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu que a distribuição de recursos do Fundo Partidário destinados ao financiamento das campanhas de mulheres deve ser idêntica à realizada para os homens, respeitado o patamar mínimo de 30% para as candidatas, sendo inconstitucional a fixação de prazo para a regra, como determinava o art. 9º da Lei n. 13.165/15, e que a distribuição não discriminatória deve perdurar enquanto for justificada a necessidade de composição mínima das candidaturas femininas:

Ora, não pode o legislador criar hipótese de dispensa de princípio constitucional nem fragilizar sentença proferida na esfera eleitoral. Em suma, desconsidera o dever constitucional de prestar contas e retira sanção de eventual não efetivação do dever constitucional de prestar contas.

Assim, o art. 55-A inserido pela nova lei não tornou regular o que é irregular, mas afastou o sancionamento até o exercício de 2018 e dispensou o pagamento da multa.

O art. 55-C afirma que a não observância do percentual não ensejará a

desaprovação das contas.

Cumpre dizer, mais uma vez, que a nova lei não retirou o caráter ilícito da conduta de não aplicar o percentual da participação feminina na política. A lei não tornou regular o que é irregular; não convalidou – nem poderia – prática ilegal e inconstitucional (já que desrespeita a autoridade do julgado proferido pelo STF na ADIn 5617). A lesão observada – de não cumprimento da aplicação do percentual feminino – permanece incólume.

É fundamental que a Justiça Eleitoral continue afirmando sobre a ilicitude da conduta de não aplicar o percentual da participação feminina na política.

Admitir como válida e legítima tal criação legislativa é desconsiderar a sentença no plano da teoria do direito.

Assim, não pode o legislador transformar a sentença que julga a prestação de contas em algo sem imperatividade, sem coercibilidade. Seria postergar ainda mais a decisão do STF na qual se já fez a modulação dos efeitos (ED na ADIn 5617, j.02.10.18). Afirmar que não é possível a desaprovação das contas vai contra a própria jurisprudência – recente – do Tribunal Superior Eleitoral que consigna: “7.3. Desaprovação das contas. Falha grave. Apesar de o percentual da aplicação irregular de recursos recebidos do Fundo Partidário não ser significativo, o reiterado descumprimento das normas de incentivo à participação política da mulher caracteriza falha grave, apta a ensejar, na linha da orientação desta Corte, a desaprovação das contas. Precedentes.” (Trecho da ementa do acórdão da PC n. 292- 88.2014.6.00.0000/DF, j. 28.03.19.)

Segundo o Parquet, essas disposições, acaso mantidas, representarão inequívoco prejuízo à democracia em que vivemos, onde metade da população é sub-representada e patologicamente organizada, pois a sub-representação política é fator de dominação, inferioridade e sujeição:

Em uma república estabelecida por uma sociedade justa, fraterna e solidária, não deve haver a possibilidade de um contingente humano equivalente à metade da população não se fazer presente de forma marcante na amostra política dos representantes de toda a sociedade nos parlamentos.

A gravidade desse quadro exigiu e exige políticas públicas de promoção de igualdade de gênero na representação política da sociedade.

Na seara das mais explícitas políticas de promoção de paritário acesso para promoção de igualdade, houve opção legislativa por percentuais mínimos e máximos de gênero nas candidaturas legislativas proporcionais.

Tal política pública – sem o suficiente financiamento – não produziu o efeito esperado. Houve 16.000 candidaturas femininas nas eleições municipais que não receberam nem mesmo um voto12. Em muitos casos nem as próprias candidatas votaram em si por não acreditarem em sua viabilidade.

Toda política pública exige financiamento que a sustente.

O Supremo Tribunal Federal, em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade, explicitou que na utilização dos recursos públicos do fundo partidário em campanhas devem ser observadas as proporções de gênero dos candidatos.

Ao apreciar a referida ação, decidiu a Suprema Corte “dar interpretação conforme a Constituição ao art. 9º da Lei 13.165/15 de modo a equiparar o patamar legal mínimo de candidaturas femininas (hoje o do art. 10, §3º, da Lei n. 9.504/97, isto é, ao menos 30% de cidadãs), ao mínimo de recursos do Fundo Partidário a lhes serem destinados, que deve ser interpretado como também de 30% do montante do Fundo alocado a cada partido, para as eleições majoritárias e proporcionais, e fixar que, havendo percentual mais elevado de candidaturas femininas, o mínimo de recursos globais do partido destinados a campanhas lhe seja alocado na mesma proporção”.

A Procuradoria Regional Eleitoral reforça a sua argumentação mencionando os indicadores de desigualdade de gênero dos ocupantes de cargos eletivos do Brasil, quando comparados a outros países, e salientando que o percentual de 5% dos recursos do Fundo Partidário, tal qual a obrigação de lançar ao menos 30% de candidatas aos cargos do pleito proporcional, “se inserem numa política de ação afirmativa, tendente a minorar a histórica desigualdade de gênero na composição das casas legislativas:

O Brasil ocupa posição vexatória nas estruturas partidárias e, notadamente, de suas direções. Deixadas à própria conta, essas instâncias lançam apenas candidatos homens; se lançam mulheres, é em menor número; quando lançam, não financiam. Foi preciso uma decisão do Supremo Tribunal Federal para obrigar os partidos a utilizar ao menos 30% dos recursos (de novo, públicos) em prol de suas candidatas (ADI 5.617) e outra do TSE (Consulta 0600252-18) para exigir que, do 1,7 bilhão de reais do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas Eleitorais, se respeitasse a quota-parte das mulheres.

Essas posições de vantagem, as quotas, não tem a vocação da perenidade. Devem ir se atenuando na medida em que as condições materiais e sociais que traziam a desigualdade forem, por igual, se atenuando. No caso da participação política feminina, tal atenuação ainda não se apresenta. Os avanços têm sido discretos, ainda que constantes. O total de deputados federais é 513. Destes, eram 55 mulheres na legislatura de 2015/2018 (10,72%¨) e 77 para o período 2019/2022 (15%). Não temos dúvida em indicar que, para esse resultado, as ações afirmativas vigentes foram de grande valia. Entretanto, sem desmerecer o avanço efetivamente ocorrido, ele fica tímido se considerarmos que as mulheres representam cerca de 51% do total da população brasileira. Em síntese, não é a hora, ainda, de relaxar ou diminuir a ação afirmativa. Uma atuação do poder público, inclusive normativa, que enfraquece uma ação de combate à desigualdade, é equivalente a uma ação que a amplia. Deste modo, a Lei 13.831/19 padece de inconstitucionalidade. Outro modo de apresentar essa eiva é fazer referência à proibição do retrocesso. Uma política pública que buscava cumprir a Constituição – e vinha obtendo êxito nesse caminho – não pode ser descontinuada, a não ser que razões igualmente ponderáveis e constitucionais se apresentem. Não é o caso. Trata-se da destinação de recursos públicos, dados a instituições privadas (os partidos políticos), com vinculação muito moderada: 5%.

Não nos impressiona o argumento de que a anistia é condicionada. Afinal, não ocorrerá a reprovação das contas se aqueles valores tiverem sido utilizados em campanhas femininas. É importante destacar que, mesmo com as quotas de lançamento de candidatas e utilização dos recursos, 70% deles continuam a ser utilizados nas campanhas dos candidatos homens. Mesmo com o emprego total daqueles 5%, ter-se-ia, então, a metade do valor masculino: 35%. É uma diminuição da garantia mínima representada pela ação afirmativa.

Ademais, a lei não distingue se o emprego se deu em candidaturas majoritárias ou proporcionais femininas. O risco é que se procure aplicar a anistia mesmo que os recursos tenham sido empregados em prol de candidatas a senador, presidente, prefeito ou governador, enquanto as quotas são, claramente, orientadas para as candidaturas proporcionais. Vão querer dizer que os recursos dados a candidatos majoritários homens, desde que o suplente ou o vice sejam mulheres, justificará a anistia. Essa argumentação é pragmática, mas também avança no sentido da inconstitucionalidade da norma.

As ações afirmativas oferecem posições de vantagem para setores que, por variadas razões, competem em desigualdade de condições. O objetivo é, portanto, a promoção da igualdade, princípio e finalidade constitucional seguidamente reiterada."

 

Efetivamente, os arts. 55-A e 55-C da Lei n. 9.096/95 representam afronta ao princípio da igualdade insculpido na Constituição Federal, assim como ao princípio da vedação do retrocesso social, por caracterizarem manifesta restrição a direito fundamental, em virtude do tratamento desigual ao beneficiar os partidos políticos que descumpriram a determinação expressa em lei de aplicação de recursos do Fundo Partidário no fomento à participação política das mulheres.

Conforme ressaltou o Ministro Edson Fachin, relator da ADI 5617, “apesar de atualmente as mulheres serem mais da metade da população e do eleitorado brasileiro, apenas 9,9% do Congresso Nacional é formado por mulheres e apenas 11% das prefeituras é comandada por elas”.

Em 2019, a ONU Mulheres, organização das Nações Unidas dedicada à igualdade de gênero e ao empoderamento feminino, divulgou que, no ranking de 35 países latino-americanos e caribenhos sobre mulheres nos parlamentos nacionais, o Brasil ocupa a 28ª posição devido aos 15% de parlamentares eleitas, estando muito distante da primeira e segunda posições, ocupadas, respectivamente, por Cuba (53,2%) e Bolívia (53,1%) (https://oig.cepal.org/pt/indicadores/poder-legislativo-porcentagem-mulheres-no-orgao-legislativo-nacional-camara-baixa-ou).

O órgão informa que o Parlatino (Parlamento Latino-americano e Caribenho) adotou a “Norma Marco para Consolidar a Democracia Paritária”, elaborada em cooperação com a ONU Mulheres para Américas e Caribe, para impulsionar o aumento da participação das mulheres na política na região, estabelecendo a democracia paritária como modelo, no qual a paridade e a igualdade substantiva entre mulheres e homens são os eixos estruturantes do Estado inclusivo.

Ao tratar da histórica exclusão das mulheres no âmbito do Poder Legislativo brasileiro, a doutora em ciência política Daniela Leandro Rezende refere que, diante da estabilidade do baixo percentual de eleitas para a Câmara dos Deputados, mesmo com a adoção de ações dirigidas ao asseguramento de cotas de gênero nas candidaturas eleitorais, a reserva de recursos do Fundo Partidário para a promoção da participação política feminina tem sido insuficiente para garantir a inserção das mulheres em espaços de poder:

Verifica-se, pois, que a existência de cotas, apesar de necessária, não é suficiente para garantir a eleição de maior contingente de mulheres ou a transformação ou reorganização das instituições políticas em direção à igualdade de gênero, e tampouco a possibilidade de que as mulheres eleitas possam influenciar o processo decisório.

(…)

O Brasil se encontra na 155a posição (no total de 188 posições) no ranking de mulheres em legislativos nacionais da Inter-Parliamentary Union.3 A sub-representação de mulheres no país se mantém estável e o percentual de eleitas para a Câmara dos Deputados permanece inferior a 10% desde a década de 1940. Esse cenário se mantém inalterado a despeito de iniciativas como cotas de gênero nas listas eleitorais e da obrigatoriedade de que os partidos políticos destinem parte de seus recursos ao fomento da participação política de mulheres. Apesar de ineficazes, tais estratégias explicitam a centralidade dos partidos políticos para a eleição de mulheres e seu papel como mediadores da distribuição de recursos eleitorais no Brasil (ARAÚJO, 2005; Maria Luiza Miranda ÁLVARES, 2008; Teresa SACCHET; Bruno W. SPECK, 2012; Fabiano SANTOS; Carolina Almeida de PAULA; Joana SEABRA, 2012; Larissa Peixoto Vale GOMES, 2016).

(Desafios à representação política de mulheres na Câmara dos Deputados. Revista Estudos Feministas. Vol. 25, n. 3, Florianópolis Sept./Dec. 2017. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2017000301199>. Acesso em 16.1.20.)

Com essas considerações, entendo que merece acolhimento o incidente de inconstitucionalidade suscitado, afastando, no caso concreto, a aplicação dos arts. 55-A e 55-C da Lei n. 9.096/95 – por violação à Constituição Federal, afronta aos princípios da igualdade, da inafastabilidade do Judiciário e da vedação do retrocesso, e desrespeito ao inc. III do art. 17 da Constituição Federal –,  bem como a aplicação do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, devido à ausência de previsão de estimativa de impacto orçamentário e financeiro da renúncia de receita, desatenção ao art. 113 do ADCT, inobservância do devido processo legislativo e violação ao art. 14 da Lei Complementar n. 101/00 e aos arts. 69 e 163 da Constituição Federal, além de descumprimento do princípio da anualidade ou anterioridade eleitoral insculpido no art. 16 da Constituição Federal.

Destaco.

 

2. Mérito

O recorrente teve suas contas partidárias relativas ao exercício de 2017 julgadas desaprovadas, em razão das seguintes irregularidades: a) falta de aplicação do percentual de 5% do total de recursos do Fundo Partidário recebidos durante o exercício, à razão de R$ 283.211,30, na promoção e difusão da participação das mulheres na política, correspondente à quantia de R$ 14.160,55; b) ausência de comprovação de que os gastos com combustíveis, no valor de R$ 7.714,60, relacionam-se a serviços prestados à legenda em veículo de um funcionário do partido; c) falta de comprovação de despesa com hospedagem, no valor de R$ 200,00; e d) recebimento de recursos provenientes de fontes vedadas, no valor de R$ 8.340,00.

A sentença, ao desaprovar as contas do partido, ordenou, tão somente, o recolhimento do valor de R$ 8.340,00, acrescido de multa de 20%, ao Tesouro Nacional, nos termos do art. 49 da Resolução n. 23.546/17, e determinou à agremiação a destinação adicional de 12,5%, no exercício subsequente, dos recursos recebidos do Fundo Partidário, em adição ao percentual legal, para fins do disposto no art. 44, § 5º, da Lei n. 9.096/95, na redação vigente no exercício 2017.

Quanto aos recursos provenientes de fontes vedadas recebidos pelo partido, determinei, de ofício, a elaboração de novo cálculo das contribuições advindas de pessoas físicas durante o exercício, considerando que a Lei n. 13.488 entrou em vigor no dia 06.10.2017, revogando a vedação absoluta de doações provenientes de autoridades públicas ao incluir o inc. V ao art. 31 da Lei n. 9.096/95, com a seguinte redação:

Art. 31. É vedado ao partido receber, direta ou indiretamente, sob qualquer forma ou pretexto, contribuição ou auxílio pecuniário ou estimável em dinheiro, inclusive através de publicidade de qualquer espécie, procedente de:

(…)

V - pessoas físicas que exerçam função ou cargo público de livre nomeação e exoneração, ou cargo ou emprego público temporário, ressalvados os filiados a partido político. (Incluído pela Lei nº 13.488, de 2017)

Nos termos da jurisprudência deste Tribunal, a norma deve ser considerada, a partir de sua vigência, para as contribuições realizadas no exercício de 2017:

RECURSO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. PARTIDO POLÍTICO. EXERCÍCIO FINANCEIRO DE 2017. DESAPROVAÇÃO. RECEBIMENTO DE RECURSOS ADVINDOS DE FONTES VEDADAS. AUTORIDADE. RECONHECIDA A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 55-D DA LEI N. 9.096/95. INCIDÊNCIA DAS DISPOSIÇÕES DA LEI N. 13.488/17 COM RELAÇÃO A PARTE DAS CONTRIBUIÇÕES. BAIXA REPRESENTATIVIDADE DA IRREGULARIDADE FRENTE AO TOTAL MOVIMENTADO NO PERÍODO. APLICAÇÃO DOS POSTULADOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE. RECOLHIMENTO DA QUANTIA IMPUGNADA AO TESOURO NACIONAL. AFASTADA A SANÇÃO DE MULTA. APROVAÇÃO COM RESSALVAS. PROVIMENTO.

1. Postulada, pelo procurador da parte, durante a sustentação oral, a aplicação do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, incluído pela Lei n. 13.831/19. Pedido não conhecido pelo Relator. Em posterior voto-vista, foi reconhecida, por unanimidade, a inconstitucionalidade formal e material do aludido dispositivo, uma vez que a proposta legislativa veio desacompanhada de estimativa de impacto orçamentário, além de afrontar aos princípios da prestação de contas, da moralidade administrativa e da integridade legislativa.

2. Contas desaprovadas em razão do recebimento de recursos oriundos de fonte vedada. Doação efetuada por ocupante de cargo de diretor geral junto ao Tribunal de Justiça Militar, detentor de poderes de chefia e direção e enquadrado no conceito de autoridade pública, conforme art. 12, inc. IV e §1º, da Resolução TSE n. 23.464/15.

3. Duplo tratamento jurídico das doações de pessoas físicas exercentes de cargos de chefia e direção na Administração Pública, em decorrência de sucessão legislativa. Devido ao fato de a Lei n. 13.488/17 ter entrado em vigor no dia 06.10.2017, cumpre aplicar, em relação às contribuições anteriores a esta data, a redação original do art. 31 da Lei dos Partidos Políticos, bem como as prescrições do art. 12, inc. IV e § 1º, da Resolução TSE n. 23.464/15, as quais vedavam as contribuições ainda que provenientes de filiados a partidos políticos. Todavia, as contribuições realizadas a partir de 06.10.2017 devem observar o disposto no art. 31, inc. V, da Lei n. 9.096/95 em sua nova redação, que ressalva a licitude dos auxílios pecuniários quando advindos de filiados a partidos políticos.

4. O valor irregularmente recebido representa 2,1% do total da receita arrecadada no exercício financeiro, possibilitando o juízo de aprovação com ressalvas. Circunstância que não afasta a devolução ao Tesouro Nacional do valor indevidamente recebido, conforme estabelece o art. 14, § 1º, da Resolução TSE n. 23.464/15, afastando-se apenas a aplicação da multa, cabível somente nos casos de desaprovação. Redução do valor a ser recolhido ao erário, em virtude de duas contribuições abrangidas pelas disposições da Lei n. 13.488/17.

5. Provimento.

(TRE-RS, RE 8-05, Rel. Des. El. Miguel Antônio da Silveira Ramos, DEJERS 6.9.2019.) (Grifei.)

 

A nova conta apontou que, das contribuições recebidas pelo partido e consideradas procedentes de fontes vedadas pelo juízo a quo, no montante de R$ 8.340,00, apenas repasses que totalizam R$ 340,00 não estão abrangidos pela nova disposição legislativa, a qual alcança contribuições no total de R$ 8.000,00.

Assim, o recurso comporta parcial provimento nesse ponto, alterando o valor a ser recolhido pela agremiação ao Tesouro Nacional para R$ 340,00, conforme determina o art. 14 da Resolução TSE n. 23.464/15.

No tocante à aplicação de 5% do Fundo Partidário na criação e manutenção de programas promovendo e difundindo a participação política das mulheres, o partido efetivamente descumpriu a determinação estabelecida no art. 44, inc. V, da Lei n. 9.096/95, na redação vigente ao tempo do exercício financeiro objeto das presentes contas, 2017, a qual deve ser analisada em conjunto com o § 5° do mesmo artigo:

Art. 44. Os recursos oriundos do Fundo Partidário serão aplicados:

(...)

V - na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, criados e mantidos pela secretaria da mulher do respectivo partido político ou, inexistindo a secretaria, pelo instituto ou fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política de que trata o inciso IV, conforme percentual que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 5% (cinco por cento) do total; (Redação dada pela Lei nº 13.165, de 2015)

(…)

§ 5o O partido político que não cumprir o disposto no inciso V do caput deverá transferir o saldo para conta específica, sendo vedada sua aplicação para finalidade diversa, de modo que o saldo remanescente deverá ser aplicado dentro do exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5% (doze inteiros e cinco décimos por cento) do valor previsto no inciso V do caput, a ser aplicado na mesma finalidade. (Redação dada pela Lei nº 13.165, de 2015)

Do total recebido, no montante de R$ 283.211,30, o partido deveria ter aplicado o valor de R$ 14.160,55 nesta rubrica específica, seguindo a regulamentação prevista na Resolução TSE n. 23.464/15, em seu art. 22:

Art. 22. Os órgãos partidários devem destinar, em cada esfera, no mínimo, 5% (cinco por cento) do total de recursos do Fundo Partidário recebidos no exercício financeiro para a criação ou manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, a serem realizados de acordo com as orientações e responsabilidade do órgão nacional do partido político.

§ 1º O partido político que não cumprir o disposto caput deve transferir o saldo para conta bancária de que trata o inciso IV do art. 6º desta resolução, sendo vedada sua aplicação para finalidade diversa, de modo que o saldo remanescente deve ser aplicado dentro do exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5% (doze inteiros e cinco décimos por cento) do valor previsto no inciso V do caput, a ser aplicado na mesma finalidade (Lei nº 9.096/95, art. 44, § 5º).

§ 2º Na hipótese do § 1º deste artigo, o partido fica impedido de utilizar qualquer dos valores mencionados para finalidade diversa.

§ 3º A aplicação de recursos a que se refere este artigo, além da contabilização em rubrica própria do plano de contas aprovado pelo Tribunal Superior Eleitoral, deve estar comprovada mediante a apresentação de documentos fiscais em que conste expressamente a finalidade da aplicação.

§ 4º A infração às disposições previstas neste artigo implica irregularidade grave a ser apreciada no julgamento das contas.

§ 5º A critério da secretaria da mulher ou, inexistindo a secretaria, a critério da fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política, os recursos a que se refere o caput podem ser acumulados em diferentes exercícios financeiros, mantidos em contas bancárias específicas, para utilização futura em campanhas eleitorais de candidatas do partido, não se aplicando, neste caso, o disposto no § 2º deste artigo.

§ 6º Nas três eleições que se seguirem ao dia 29 de setembro de 2015, os partidos reservarão, em contas bancárias específicas para este fim, no mínimo 5% (cinco por cento) e no máximo 15% (quinze por cento) do montante do Fundo Partidário destinado ao financiamento das campanhas eleitorais para aplicação nas campanhas de suas candidatas, incluídos nesse valor os recursos a que se refere o inciso V do art. 44 da Lei nº 9.096, de 1995 (Lei nº 13.165/15, art. 9º).

§ 7º Para fins de aferição do limite mínimo legal, devem ser considerados os gastos efetivos no programa e as transferências financeiras realizadas para as contas bancárias específicas de que trata o inciso IV do art. 6º desta resolução.

 

A norma é clara e expressa ao determinar que os órgãos partidários devem destinar, em cada esfera, no mínimo, 5% dos recursos do Fundo Partidário recebidos no exercício financeiro para a criação ou manutenção de programas que favoreçam a participação política das mulheres.

Portanto, correta a sentença ao apontar que não prospera a alegação de que os diretórios estadual ou nacional seriam os responsáveis pelo repasse dessa porcentagem à finalidade legalmente prevista.

Considerando que as irregularidades constatadas nas contas somam R$ 22.415,15 (R$ 340,00 + R$ 14.160,55 + R$ 7.714,60 + R$ 200,00), montante que representa 5,78% da receita recebida (R$ 387.521,30), entendo que a contabilidade comporta aprovação com ressalvas (art. 46, inc. II, da Resolução TSE n. 23.464/15), hipótese que não prevê a fixação de pena de multa (art. 37 da Lei n. 9.096/95).

Mantenho, contudo, as determinações de recolhimento dos valores recebidos de fontes vedadas ao Tesouro Nacional (art. 14 da Resolução TSE n. 23.464/15), reduzindo o montante para R$ 340,00 e afastando a cominação de multa, e de destinação de 12,5% dos recursos recebidos do Fundo Partidário na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, no exercício subsequente ao do trânsito em julgado da presente decisão, na forma do art. 44, § 5º, da Lei n. 9.096/95, na redação vigente no exercício 2017, conferida pela Lei n. 13.165/15.

Ante o exposto, VOTO, em preliminar, pelo acolhimento do incidente de inconstitucionalidade suscitado pela Procuradoria Regional Eleitoral, afastando a aplicação ao caso concreto dos arts. 55-A, 55-C e 55-D da Lei n. 9.096/95, incluídos pela Lei n. 13.831/19, e, no mérito, pelo parcial provimento do recurso para reformar em parte a sentença recorrida, a fim de aprovar com ressalvas as contas, reduzir para R$ 340,00 o valor a ser recolhido ao Tesouro Nacional, afastando a cominação de multa, manter a ordem de destinação de 12,5% dos recursos recebidos do Fundo Partidário na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, no exercício subsequente ao do trânsito em julgado da presente decisão, na forma do art. 44, § 5º, da Lei n. 9.096/95, na redação vigente no exercício 2017, conferida pela Lei n. 13.165/15.