RE - 38215 - Sessão: 21/05/2020 às 14:00

 

RELATÓRIO

Trata-se de recursos eleitorais interpostos por LUCIA ELIZABETH COLOMBO SILVEIRA (BETH COLOMBO) (fls. 4369-4407), candidata não eleita ao cargo de prefeito de Canoas nas eleições de 2016, MÁRIO LUÍS CARDOSO (fls. 4408-4428), candidato a vice-prefeito, e GUILHERME ORTIZ DE SOUZA (fls. 4429-4458), tesoureiro de campanha, contra a sentença das fls. 4313-4321v., integrada por decisão de julgamento de embargos de declaração (fls. 360-4361v.), que julgou parcialmente procedentes os pedidos formulados na ação de investigação judicial eleitoral (AIJE) proposta pelo MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL, para o fim de reconhecer a prática de abuso de poder econômico (art. 22, LC n. 64/90), declarando a inelegibilidade dos recorrentes para as eleições a se realizarem nos oito anos subsequentes ao pleito de 2016, e julgar o feito extinto, sem resolução do mérito, em relação a LIOMAR BORGES DOS SANTOS, candidato ao cargo de vereador, não eleito porque o fato a ele imputado demandava a formação de litisconsórcio passivo necessário com o então prefeito de Canoas, Jairo Jorge da Silva, por não ter sido incluído no polo passivo da ação.

A sentença reconheceu a prática de abuso de poder econômico, caracterizado pelo uso de “caixa 2” durante a campanha eleitoral. Houve a apreensão, no comitê eleitoral e na casa do tesoureiro de campanha (Guilherme Ortiz de Souza), de R$ 456.950,00, entre cheque e dinheiro em espécie, e US$ 1.036, sem declaração da origem dos valores, os quais teriam sido obtidos junto a pessoas que não queriam se identificar e a empresas que mantinham contratos com a administração municipal e tinham interesse na eleição dos candidatos recorrentes. A quantia não circulou pela conta bancária da candidatura nem foi declarada na prestação de contas de BETH COLOMBO e estava desacompanhada de recibos eleitorais dos doadores originários.

Em suas razões, BETH COLOMBO afirma que os valores localizados estavam na posse pessoal e exclusiva de GUILHERME ORTIZ DE SOUZA e que a quantia é oriunda de indevida arrecadação de recursos junto a apoiadores que não queriam ser identificados como doadores, conforme reconhecido por GUILHERME em mensagem de e-mail por ele firmada. Sustenta que o numerário foi apreendido antes do ingresso na campanha, que não teve ingerência na escolha do tesoureiro e que, tão logo teve conhecimento dos fatos, determinou seu afastamento. Assevera ser incabível a imputação de responsabilidade objetiva, com a fixação da sanção de inelegibilidade, pois não participou da prática de ato ilícito ou com ela consentiu. Entende que a decisão condenatória se pauta na presunção de que sabia das irregularidades na arrecadação financeira. Tece considerações sobre o caderno probatório e defende a falta de provas e a fragilidade da sentença. Invoca doutrina e jurisprudência. Requer a reforma da decisão para que seja julgada improcedente a ação (fls. 4369-4407).

O candidato a vice-prefeito MÁRIO LUÍS CARDOSO suscita a preliminar de nulidade do feito por cerceamento de defesa em face da não conclusão do inquérito que originou o processo, bem como o seu não apensamento a estes autos, e, ainda, a ausência de formação de litisconsórcio passivo necessário com as pessoas referidas no procedimento investigatório criminal. No mérito, sustenta que os fatos apurados foram praticados unicamente por GUILHERME ORTIZ DE SOUZA, e que a conclusão sentencial foi extraída a partir de interceptação de conversa telefônica, mantida com o tesoureiro da campanha, cujo conteúdo nada revela quanto à sua participação no ilícito. Alega que não sabia das infrações e afirma ser incabível a decretação da inelegibilidade porque não há provas de que os valores tenham sido empregados na campanha, o que descaracteriza o reconhecimento do abuso do poder econômico. Colaciona precedentes jurisprudenciais e postula a reforma da sentença para que seja afastada a condenação (fls. 4408-4428).

GUILHERME ORTIZ DE SOUZA invoca, igualmente, preliminar de nulidade do feito pela ausência de integração no polo passivo da lide dos agentes públicos que teriam participado da prática das infrações. Também suscita preliminar de cerceamento de defesa porque o inquérito policial que deu origem ao processo não foi concluído nem está apensado aos autos. Aduz, em prefacial, a falta de individualização de sua conduta. No mérito, pondera ser indevida a extinção do feito somente quanto a LIOMAR BORGES DOS SANTOS. Assinala que a investigação policial foi instaurada especificamente para a apuração de compra de votos e que, até o momento, o procedimento nada concluiu acerca da origem dos valores apreendidos. Refere não ter sido candidato no pleito, mas tão somente o coordenador financeiro da campanha eleitoral, e que não demonstrada a presumida “origem ilícita” do dinheiro apreendido. Salienta que a mera condição de portador dos valores não é suficiente para o enquadramento do fato como infração. Assevera que a sentença relacionou a quantia apreendida com as agendas e rotinas de sua função de coordenador financeiro, tarefa burocrática que não está vinculada ao desejo de obter mandato eletivo. Esclarece que as despesas consideradas não contabilizadas consistiam, na verdade, em controle relacionado às tomadas de serviços gráficos, os quais aguardavam o envio de nota fiscal por parte dos fornecedores. Acrescenta não ter sido o responsável pela contratação de colaboradores da campanha e sustenta que a prova oral demonstrou jamais ter agido em favor de fornecedores ou prestadores de serviço. Requer a nulidade da sentença ou, alternativamente, a sua reforma, com o afastamento da sanção de inelegibilidade (fls. 4429-4458).

Com contrarrazões do MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL pelo afastamento das preliminares e manutenção da sentença (fls. 4463-4478), o feito foi remetido à segunda instância.

Foi certificada a existência de possível prevenção entre o presente feito e o RE 375-23.2016.6.21.0171, cuja relatoria coube ao Des. Eleitoral Silvio Ronaldo Santos de Moraes, sendo remetido ao Tribunal Superior Eleitoral em 04.02.2019.

Determinei a redistribuição do feito ao Des. Eleitoral Gerson Fischmann (fl. 4483).

A Procuradoria Regional Eleitoral manifestou-se pelo desprovimento dos recursos (fls. 4494-4507).

O recorrente MÁRIO LUÍS CARDOSO peticionou às fls. 4509-4510, postulando a remessa do feito ao Des. Eleitoral Silvio Ronaldo Santos de Moraes ou à minha relatoria.

O Des. Eleitoral Gerson Fischmann determinou a redistribuição do feito a este Relator para que fosse verificada a manutenção do entendimento contido na decisão da fl. 4483.

É o relatório.

 

VOTO

1 – Petição de MÁRIO LUÍS CARDOSO (fls. 4509-4510) - Competência

Inicialmente, examino a petição do recorrente Mário Cardoso (fls. 4509-4510), que diz respeito à relação entre o recurso julgado neste Tribunal em 09.10.2018, de relatoria do Des. Eleitoral Silvio Ronaldo Santos de Moraes (RE 375-23.2016.6.21.0171), e este apelo, que foi a mim distribuído (RE 382-15.2016.6.21.0171), para demonstrar a inviabilidade de reunião dos processos e reafirmar a competência deste relator para apreciar o feito, reformulando o entendimento contido no despacho da fl. 4483.

RE 375-23.2016.6.21.0171

A Coligação POR UMA CANOAS DE VERDADE (PMN, PTB, PSDC, PEN, PT DO B, REDE, SD, PRTB, PRP, PMDB, PR e PSC) e Luiz Carlos Ghiorzzi Busato ajuizaram Ação de Investigação Judicial Eleitoral em face de Jairo Jorge da Silva, Lúcia Elizabeth Colombo, Mário Cardoso e COLIGAÇÃO BOM (PRB, PT, PDT, PP, PSB, PC do B, PROS, PPS, PSD, PV, PTC, PTN e PHS), narrando a ocorrência do seguinte fato: Liomar Borges, então candidato ao cargo de vereador pela Coligação Bom, apresentando-se como representante do então prefeito Jairo Jorge, compareceu ao local conhecido como Rua da Barca, no município de Canoas/RS, onde vivem cerca de 100 famílias em precárias condições, e proferiu discurso, com finalidade eleitoral, no sentido de que deveriam apoiar os candidatos à majoritária (Beth Colombo e Mário Cardoso), sob pena de serem despejados do local, pois o município havia ajuizado Ação Civil Pública (autuada sob n. 008/1.16.0010435-0) e obtivera liminar para desocupação e remoção de construções realizadas naquela localidade (Rua da Barca).

Após regular processamento dessa demanda, em sentença prolatada em 13.04.2018, foi reconhecida a decadência do direito de ação, diante da não integração, no polo passivo da demanda, no prazo legal à sua propositura, do agente público Liomar Borges, a quem fora imputada a prática da conduta.

Houve interposição de recurso eleitoral, cuja relatoria coube ao Des. Eleitoral Silvio Ronaldo Santos de Moraes, julgado em 09.10.2018, sendo negado provimento ao apelo, ao entendimento de que indispensável ao processamento da ação a inclusão do autor do ato ilícito, no caso, Liomar Borges.

Atualmente, conforme andamento processual do dia 26.03.2020, o feito encontra-se pendente de julgamento no TSE, com agravo regimental interposto pela Coligação Por uma Canoas de Verdade e por Luiz Carlos Ghiorzi Busato, conclusos os autos em 05.03.2020 ao Ministro OG NICÉAS MARQUES FERNANDES.

RE 382-15.2016.6.21.0171

O Ministério Público Eleitoral ajuizou Ação de Investigação Judicial Eleitoral em desfavor de LÚCIA ELIZABETH COLOMBO SILVEIRA, MARIO LUÍS CARDOSO, GUILHERME ORTIZ DE SOUZA e LIOMAR BORGES DOS SANTOS.

A longa inicial (134 laudas) imputou aos demandados 3 ilícitos eleitorais:

Fato 1 – arrecadação irregular de recursos pelo tesoureiro de campanha, Guilherme Ortiz de Souza, junto a empresas que mantinham contratos com a administração municipal e tinham interesse na eleição dos candidatos Beth Colombo e Mário Cardoso, que representavam a continuidade do governo municipal exercido por Jairo Jorge da Silva;

Fato 2 - Liomar Borges, então candidato ao cargo de vereador pela Coligação Bom, apresentando-se como representante do então prefeito Jairo Jorge, compareceu ao local conhecido como Rua da Barca, no município de Canoas/RS, onde vivem cerca de 100 famílias em precárias condições, e proferiu discurso, com finalidade eleitoral, no sentido de que deveriam apoiar os candidatos à majoritária (Beth Colombo e Mário Cardoso), sob pena de serem despejados do local, pois o município havia ajuizado Ação Civil Pública (autuada sob n. 008/1.16.0010435-0) e obtivera liminar para desocupação e remoção de construções realizadas naquela localidade (Rua da Barca).

Fato 3 - divulgação de panfleto de propaganda eleitoral, com tiragem de cem mil exemplares, contendo afirmação inverídica e com o propósito de induzir o eleitorado em erro, no sentido de que as condutas investigadas foram praticadas pelo tesoureiro da campanha, sem conhecimento dos candidatos, e devidamente esclarecidas à Justiça Eleitoral e à Polícia Federal.

Após regular processamento, a demanda foi julgada parcialmente procedente, em sentença prolatada em 11.7.2019, para o fim de: a) reconhecer a prática de abuso de poder econômico (art. 22, LC n. 64/90), declarando a inelegibilidade dos recorrentes para as eleições a se realizarem nos oito anos subsequentes ao pleito de 2016 (Fato 1); b) julgar o feito extinto, sem resolução do mérito, em relação a LIOMAR BORGES DOS SANTOS, candidato ao cargo de vereador, não eleito, porque o fato a ele imputado demandava a formação de litisconsórcio passivo necessário com o então prefeito de Canoas, Jairo Jorge da Silva, por não ter sido incluído no polo passivo da ação (Fato 2); c) jugar improcedente a ação quanto ao Fato 3.

Como se verifica, o fato objeto do RE 375-23.2016.6.21.017, cuja sentença reconhecendo a decadência foi prolatada em 13.4.2018, por ausência do litisconsorte Liomar Borges dos Santos, pendente de julgamento no TSE, é o mesmo Fato 2, constante nestes autos, extinto por meio da sentença de 22.8.2019 em razão da não inclusão do litisconsorte Jairo Jorge da Silva no polo passivo da ação.

Diante dessa circunstância, em tese, seria aplicável o caput do art. 96-B da Lei n. 9.504/97, que prevê a reunião para julgamento comum de ações que versem sobre o mesmo fato, motivo pelo qual determinei redistribuição do feito ao anterior relator (fl. 4483).

Contudo, há os seguintes óbices à reunião dos processos: a) o RE 375-23 já foi apreciado pelo TRE-RS (sessão de 05.10.2018) e encontra-se no TSE aguardando julgamento. Nessa circunstância, a jurisprudência firmada é no sentido de que o julgamento conjunto deve ser observado apenas quando as ações se encontrem em trâmite na mesma instância, sendo que a inobservância da providência não acarreta a invalidação de pronunciamentos judiciais que se revelem harmônicos (TSE - Recurso Ordinário n. 218847, Acórdão, Relator Min. Tarcisio Vieira de Carvalho Neto, Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Data 18.05.2018); b) não houve irresignação recursal específica quanto ao ponto, e a sentença exarada no RE 382-15, em relação a essa matéria (Fato 2), foi de extinção do feito, compreensão que está em harmonia com a decisão do RE 375-23.

Assim, revendo o entendimento esposado na decisão da fl. 4483, reafirmo a competência deste relator para apreciar o presente apelo, diante da inviabilidade da reunião dos feitos, porque tramitando em instâncias diversas e porque a matéria não foi objeto de recurso.

 

2 – Preliminares de nulidade do feito, cerceamento de defesa e ausência de individualização da conduta

Os recorrentes MÁRIO LUÍS CARDOSO e GUILHERME ORTIZ DE SOUZA renovam preliminares, já afastadas pelo juízo a quo, no sentido da nulidade do feito por falta de conclusão e de juntada do inquérito policial que originou o processo e por ausência de formação de litisconsórcio passivo necessário com os agentes públicos que teriam participado dos fatos apurados, circunstâncias que representariam cerceamento de defesa.

Quanto ao expediente policial, cópia de seu conteúdo acompanhou a inicial com reprodução do processo de prestação de contas dos candidatos e, conforme consta do despacho saneador das fls. 3446-3450, a ausência de apensamento do procedimento criminal em nada representou prejuízo aos recorrentes, pois devidamente respeitados os princípios do contraditório e da ampla defesa, tendo sido oportunizada a produção probatória que amparasse as teses defensivas.

Ademais, há independência entre as esferas cível e criminal, e o próprio caput do art. 22 da Lei das Inelegibilidades (LC n. 64/90) é expresso ao estabelecer que a representação com pedido de abertura de investigação judicial pode ser ajuizada tão somente com uma relação de fatos e mera indicação de “provas, indícios e circunstâncias”.

A preliminar de ausência de formação de litisconsórcio passivo necessário foi devidamente enfrentada pela sentença recorrida, e as razões de decidir expostas pelo juízo singular sequer foram rebatidas.

A sentença extinguiu o feito sem resolução do mérito somente quanto ao investigado Liomar Borges dos Santos, candidato não eleito ao cargo de vereador e ex-chefe de unidade da Secretaria Municipal de Obras, Diretoria de Obras Viárias, Unidade de Controle e Conservação de Vias Públicas não Pavimentadas de Canoas, entendendo que no fato a ele imputado não foi observada a formação de litisconsórcio passivo necessário na petição inicial, a qual não poderia mais ser emendada devido ao escoamento do prazo decadencial para a citação do então prefeito Jairo Jorge.

Na decisão, foi assentado que o Ministério Público Eleitoral apontou a prática de três fatos e que, embora o Fato 2 atribua ao então prefeito de Canoas, Jairo Jorge da Silva, e a Liomar Borges dos Santos, candidato ao cargo de vereador, a realização de abuso do poder de autoridade mediante coação dirigida a ocupantes de área urbana situada na Rua da Barca (local em que residiam aproximadamente 100 famílias de baixa renda), não foi incluído no polo passivo da demanda o então Prefeito Jairo Jorge da Silva.

Em relação aos demais ilícitos (Fato 1 - arrecadação irregular de recursos e Fato 3 - divulgação de panfleto de propaganda eleitoral contendo informação falsa), o polo passivo não possui déficit, pois demandados todos os agentes envolvidos nas condutas (autor e candidatos beneficiados).

Correta a conclusão sentencial de que não haveria necessidade de direcionar a investigação judicial “contra fornecedores que não emitiram notas fiscais ou doadores de campanha, os quais não ambicionam cargos eletivos e que individualmente não afetam a lisura do pleito, ao contrário daqueles que agiram direta e ativamente de forma coordenada com intuito de obter cargos eletivos com vantagem sobre os adversários, sob pena de se ter uma cadeia infinita de partícipes, desvirtuando-se por completo a natureza da AIJE, como instrumento de preservação da normalidade e legitimidade do pleito”.

Ademais, nos precedentes em que firmou o entendimento pela necessidade de formação de litisconsórcio passivo necessário, o TSE estabeleceu que o instituto se refere ao candidato beneficiado e ao responsável pela prática do abuso de poder, ou seja, o autor direto da conduta, e o exame dos autos não evidencia haver terceiros que praticaram abuso de poder como legitimados ad causam para responder à ação. Precedentes: TSE, MS n. 37082, Rel. João Otávio de Noronha, Redator para o Acórdão: Min. Henrique Neves da Silva, DJE 2.9.2016; RESPE n. 62454, Rel. Min. Jorge Mussi, DJE 11.5.2018.

Por fim, a preliminar de ausência de individualização da conduta atribuída a Guilherme Ortiz de Souza, tesoureiro da campanha, não prospera, pois a petição inicial, em toda a sua extensão, atribuiu-lhe a efetiva arrecadação de recursos ilícitos mediante contato com empresas que foram devidamente identificadas e mantinham contratos com a Prefeitura de Canoas, na qual a candidata Beth Colombo exercia o cargo de vice-prefeita.

Alega-se, de forma expressa, na inicial da representação, que tais pessoas jurídicas tinham contratos sucessivos e vigentes com a gestão municipal e estavam interessadas na eleição dos candidatos apoiados pela situação, tendo Guilherme Ortiz de Souza realizado coleta de valores junto às empresas para fomento da campanha eleitoral de Beth Colombo.

A conduta atribuída ao recorrente foi descrita de forma minuciosa, tendo sido plenamente propiciado o pleno exercício de contraditório e de ampla defesa, não havendo nulidade a ser decretada.

Com essas considerações, rejeito todas as preliminares suscitadas.

 

3 – Reenquadramento jurídico do Fato 1 - captação ilícita de recursos x abuso do poder econômico

O nosso Código de Processo Civil, aplicável de forma subsidiária e supletiva à matéria eleitoral, acolheu a teoria da substanciação da causa de pedir. Ao autor compete narrar os fatos na inicial e deles a parte oferece defesa, o que não afasta a possibilidade de o juiz proceder a novo enquadramento jurídico do fato se for necessário.

Esse, o entendimento consolidado na Súmula 62 do TSE:

Os limites do pedido são demarcados pelos fatos imputados na inicial, dos quais a parte se defende, e não pela capitulação legal atribuída pelo autor.

Dessa forma, os limites da causa são fixados pela ratio petendi substancial, ou seja, segundo os fatos imputados à parte passiva, e não pela errônea capitulação legal que deles se faça, na medida em que “cabe ao julgador estabelecer a norma jurídica que deverá ser aplicada aos fatos narrados, e essa atividade se dá com exclusividade, independentemente da vontade das partes litigantes” (TSE, AgR-AI n. 8058/MG, Rel. Min. Marcelo Ribeiro, DJE de 23.09.2008, e AI n. 3.066/MS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 17.5.2002).

Nesse sentido:

Ação de investigação judicial eleitoral. Prefeito. Eleição 2012. Petição inicial. Abuso de poder. Inovação recursal. Não configuração.

1. A petição inicial, ainda que não tenha pedido expressamente condenação às penalidades previstas no art. 22, XIV, da LC nº 64/90, descreve fatos que, em tese, configuram abuso de poder, tendo os investigados sobre eles se, manifestado.

2. A jurisprudência do TSE é no sentido de que os limites do pedido são demarcados pela ratio petendi substancial, ou seja, segundo os fatos imputados à parte passiva, e não pela errônea capitulação legal que deles se faça.

3. O recurso especial foi provido a fim de determinar o retorno dos autos à Corte de origem para prosseguimento do feito, a qual, como entender de direito, poderá devolver os autos ao Juízo Eleitoral para a apreciação da matéria ou mesmo julgar a causa, se madura, nos termos do art. 515 do Código de Processo Civil.

Agravo regimental a que se nega provimento.

(TSE – Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral n. 77719, Acórdão, Rel. Min. Henrique Neves Da Silva, Acórdão de 25.06.2014. Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Tomo 145, Página 183.) (Grifo nosso)

 

Na hipótese em exame, o autor descreveu o Fato 1, “consistente na apreensão de vultosa quantia em dinheiro – de origem ilícita – para a campanha dos representados”, o que daria “azo a típico caso de caixa dois”, como caracterizador de abuso do poder econômico (fl. 61).

Contudo, a captação ilícita de recursos (art. 30-A da Lei n. 9.504/97), popularmente denominada de “caixa 2”, não se confunde com o abuso do poder econômico. São tipos eleitorais que tutelam bens jurídicos diversos e possuem diferentes requisitos à configuração, sanções e legitimação ativa e passiva diversificadas.

O art. 30-A da Lei n. 9.504/97, introduzido pela Lei n. 11.300/06, estabelece:

Art. 30-A. Qualquer partido político ou coligação poderá representar à Justiça Eleitoral, no prazo de 15 (quinze) dias da diplomação, relatando fatos e indicando provas, e pedir a abertura de investigação judicial para apurar condutas em desacordo com as normas desta Lei, relativas à arrecadação e gastos de recursos. (Redação dada pela Lei n. 12.034, de 2009.)

§ 1º Na apuração de que trata este artigo, aplicar-se-á o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990, no que couber. (Incluído pela Lei nº 11.300, de 2006)

§ 2º Comprovados captação ou gastos ilícitos de recursos, para fins eleitorais, será negado diploma ao candidato, ou cassado, se já houver sido outorgado. (Incluído pela Lei nº 11.300, de 2006)

§ 3o O prazo de recurso contra decisões proferidas em representações propostas com base neste artigo será de 3 (três) dias, a contar da data da publicação do julgamento no Diário Oficial. (Incluído pela Lei n. 12.034, de 2009.)

 

A norma tutela os princípios da moralidade das disputas e da lisura das eleições, buscando coibir precipuamente condutas à margem da fiscalização da Justiça Eleitoral, recebimento de recursos de fontes vedadas ou gasto ilícito de campanha.

São proibidas, para fins eleitorais, duas condutas: a) a captação ilícita de recursos; b) o gasto ilicito de recursos.

Em relação às condições necessárias à configuração do ilícito e à aplicação da sanção de cassação do registro ou diploma, Rodrigo López Zilio conclui (ZILIO, Rodrigo López. Direito Eleitoral. 6. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2018, p. 759):

Em síntese, a conduta de captação e gastos ilícitos de recursos, para fins eleitorais, importa em quebra do princípio da isonomia entre os candidatos, amoldando-se ao estatuído no art. 30-A da LE. No entanto, porque a sanção prevista é exclusivamente de cassação ou denegação do diploma, sem a possibilidade de adoção do princípio da proporcionalidade na fixação das sanções, para a procedência dessa representação haverá a necessidade de prova de que o ilícito perpetrado apresentou impacto mínimo relevante na arrecadação ou nos gastos eleitorais. Nesse diapasão, a conduta de captação ou gastos ilícitos de recursos deve ostentar gravosidade que comprometa seriamente a higidez das normas de arrecadação e dispêndio de recursos, apresentando dimensão que, no contexto da campanha eleitoral, importe um descompasso irreversível na correlação de forças entre os concorrentes ao processo eletivo. Neste sentido, o TSE assentou que “para a incidência do art. 30-A da Lei nº 9.504/97, necessária prova da proporcionalidade (relevância jurídica) do ilícito praticado e não da potencialidade do dano em relação ao pleito eleitoral. Nestes termos, a sanção de negativa de outorga do diploma ou de sua cassação (§2º do art. 30-A) deve ser proporcional à gravidade da conduta e à lesão perpetrada ao bem jurídico protegido” (Recurso Ordinário n. 1.540 – Rel. Min. Félix Fischer – j. 28.04.2009).

 

No pertinente à caracterização da conduta ilegal, o TSE tem entendimento firmado de que, para a incidência do art. 30-A da Lei n. 9.504/97, é necessária prova da relevância jurídica do ilícito praticado pelo candidato, e não da potencialidade do dano em relação ao pleito eleitoral.

Assim, a sanção de negativa de outorga do diploma ou de sua cassação (§ 2º do art. 30-A) deve ser proporcional à gravidade da conduta e à lesão perpetrada ao bem jurídico protegido.

Em relação à legitimidade passiva, a representação deve ser ajuizada contra quem tenha diploma a ser cassado, ou seja, o candidato considerado eleito. Não tendo sido eleitos os candidatos à majoritária e, portanto, inexistindo diplomas expedidos, não há interesse jurídico que justifique o processamento de demanda proposta com fulcro no art. 30-A da Lei n. 9.504/97, cuja sanção é a negativa de outorga do diploma ou sua cassação se já tiver sido expedido.

Com esse entendimento, a jurisprudência:

ELEIÇÕES 2012. RECURSOS ESPECIAIS. REPRESENTAÇÃO. ART. 30-A DA LEI N. 9.504/1997. CANDIDATOS NÃO ELEITOS. MANUTENÇÃO DA DECISÃO AGRAVADA.

1. A sanção decorrente do ilícito previsto no art. 30-A da Lei das Eleições destina-se àqueles já diplomados ou que porventura o sejam.

2. Não há interesse jurídico no prosseguimento de representação formalizada contra candidato a cargo majoritário não eleito. Precedente.

3. Decisão agravada mantida por seus fundamentos. Agravo regimental desprovido.

(Recurso Especial Eleitoral n. 163, Acórdão, Relator Min. Gilmar Mendes, Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Data 02.02.2017, Página 386.) Grifo nosso)

 

Já o abuso de poder econômico, na esfera eleitoral, ocorre quando o uso de parcela do poder financeiro é utilizada indevidamente, com o intuito de obter vantagem, ainda que indireta ou reflexa, na disputa do pleito. Tutela-se a normalidade e legitimidade das eleições, com assento no § 9 º do art. 14 da Constituição Federal.

A ação fundada em abuso do poder econômico tem previsão no disposto no art. 22, caput, incs. XIV e XVI, da LC 64/90:

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito:

[…]

XIV – julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso, e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar;

[...]

XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam. (grifo nosso)

 

À configuração do abuso, é de ser feito o sopesamento da gravidade das circunstâncias dos fatos em face do bem juridicamente protegido: a legitimidade e normalidade das eleições.

Paradigmática, no ponto, recente decisão do TSE sobre o tema:

ELEIÇÕES 2016. AGRAVO INTERNO. PREFEITO E VICE. ABUSO DE PODER. CONDUTAS REPUTADAS POR ABUSIVAS. FORNECIMENTO DE TRANSPORTE DE ELEITORES PARA COMÍCIO. DISTRIBUIÇÃO DE BEBIDAS NO EVENTO. AUSÊNCIA DE GRAVIDADE. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

1. A gravidade das circunstâncias se afigura elemento fático-jurídico material, suficiente e necessário, para a caracterização a prática abusiva (i.e., de poder econômico, político, de autoridade ou de mídia), nos termos do art. 22 da Lei Complementar n. 64/90.

2. A qualificação jurídica de uma conduta como abusiva de poder econômico demanda o exame relacional entre (i) a própria ação praticada (e reputada por abusiva), (ii) o contexto fático em que ela foi perpetrada (circunstâncias e elementos concretos) e (iii) os impactos advindos desse ato (supostamente abusivo) na axiologia subjacente aos cânones eleitorais, desvirtuando-os.

3. A gravidade das circunstâncias materializa, no âmbito da legislação eleitoral, a máxima da proporcionalidade, em sua dimensão de vedação ao excesso (Übermassverbot).

4. In casu, extraem-se das premissas fáticas delineadas no aresto regional que (i) houve o fornecimento de condução gratuita de pessoas até o comício realizado em 7.9.2016 no Centro de Tradições Gaúchas em veículos privados (ligados ao transporte público escolar) regularmente contratados para o serviço, que não constituíram o único meio de transporte responsável pelo comparecimento dos eleitores no comício, e (ii) a distribuição gratuita de erva-mate e água quente aos presentes no local durante o comício.

5. À guisa de conclusões, o acórdão proferido pelo Tribunal Regional Eleitoral deve ser mantido pelos seguintes fundamentos: em primeiro, não restou demonstrado que o uso do veículo de propriedade da prefeitura para o deslocamento dos eleitores; em segundo, inexistem provas (ou mesmo indícios) de irregularidade na contratação dos demais veículos junto às empresas terceirizadas de transporte escolar; em terceiro, as provas testemunhais colacionadas afirmam que diversos cidadãos se deslocaram ao local em veículos próprios, de carona ou a pé, de sorte que não se pode imputar aos Recorridos a responsabilidade única pelo comparecimento dos eleitores no comício. Portanto, não se vislumbra qualquer ilicitude eleitoral nas condutas apontadas nos autos.

6. Ad argumentandum, o fornecimento de transporte gratuito para o comparecimento de eleitores a comício, bem como a distribuição de bebidas para um número restrito de pessoas (aproximadamente 600 pessoas), não evidenciaram, à luz de um universo de mais de 8 mil eleitores, gravidade suficiente para comprometer a legitimidade, a normalidade do prélio eleitoral e a igualdade entre os players, bens jurídicos tutelados pela proscrição de abuso de poder econômico.

7. Agravo regimental desprovido.

(Agravo de Instrumento n. 21054, Acórdão, Relator Min. Luiz Fux, Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Data 22.03.2018.)

 

Em relação à legitimidade passiva, a Ação de Investigação Judicial Eleitoral pode ser ajuizada contra todos os que hajam contribuído à prática do ato, candidatos eleitos, não eleitos e terceiros não candidatos. As sanções previstas são: cassação do registro ou diploma e inelegibilidade.

Assim, conforme a sistematização da tipologia eleitoral feita por Rodrigo López Zilio, na sua recente obra Decisão de Cassação de Mandato (2020, p. 195-220), enquanto o § 2º do art. 30-A da Lei n. 9.504/97 estabelece um tipo fechado, o abuso do poder econômico é tipo aberto. Para exemplificar a ocorrência da captação ilícita de recursos, o mencionado doutrinador cita o recebimento de valores de pessoas jurídicas sem a contabilização à Justiça Eleitoral (caixa 2), e no caso de abuso do poder econômico, quando parcela do poder financeiro é utilizada para interferir na regularidade do pleito.

Voltando ao Fato 1 narrado na inicial, verifica-se que há a imputação de fato objetivo, que deve ser readequado juridicamente para o tipo fechado previsto no art. 30-A da Lei n. 9.504/97: arrecadação irregular de recursos pelo tesoureiro de campanha Guilherme Ortiz de Souza junto a empresas que mantinham contratos com a administração municipal e tinham interesse na eleição dos candidatos Beth Colombo e Mário Cardoso, que representavam a continuidade do governo exercido por Jairo Jorge da Silva.

A decisão recorrida apontou haver prova documental farta da captação ilegal de recursos financeiros e da relação direta dos valores com a campanha, os quais foram localizados após o cumprimento de mandado de busca e apreensão.

O juízo a quo concluiu, assim, pela inequívoca demonstração da prática do chamado “caixa 2”, mas igualmente equivocou-se ao reconhecer abuso de poder econômico, pois sequer houve a utilização dessa parcela financeira na campanha. Ademais, como foi julgado improcedente o Fato 3 e extinto o Fato 2, apenas em exame o Fato 1, cuja descrição se amolda à arrecadação irregular de recursos.

Assim, procedo ao reenquadramento jurídico do Fato 1 ao tipo fechado previsto no art. 30-A da Lei n. 9.504/97.

 

4 – Legitimidade passiva dos recorrentes

Os recorrentes Beth Colombo e Mário Cardoso não foram eleitos, e Guilherme Ortiz de Souza não foi candidato no pleito de 2016.

Como analisado no item acima, a sanção prevista em relação ao ilícito de “caixa 2” é a negativa de outorga do diploma ou sua cassação se já tiver sido expedido.

E, não havendo diploma a ser cassado, inexiste interesse jurídico que sustente o prosseguimento da ação, devendo ser extinto o feito, sem resolução do mérito, com fulcro no art. 485, inc. VI, do CPC (Recurso Especial Eleitoral n. 163, Acórdão, Relator Min. Gilmar Mendes, Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Data 02.02.2017, Página 386) .

Assim, afasto as preliminares suscitadas e, de ofício, procedo ao reenquadramento jurídico do fato ao tipo previsto no §2º do art. 30-A da Lei 9.504/97 e, por via de consequência, extingo o feito, sem resolução do mérito, com base do art. 485, inc. VI, do CPC.

Destaco.

 

Decisão da Sessão do dia 14-05-2020:

Após votar o relator, destacando a preliminar no sentido de proceder ao reenquadramento jurídico do fato ao tipo previsto no § 2º do art. 30-A da Lei n. 9.504/97, extinguindo o feito, sem resolução do mérito, com base no art. 485, inc. VI, do Código de Processo Civil,  pediu vista o Des. André Villarinho. Demais julgadores aguardam o voto-vista. Julgamento suspenso.

 

 

PROCESSO: RE 382-15.2016.6.21.0171

PROCEDÊNCIA: CANOAS

RECORRENTE(S) : LUCIA ELIZABETH COLOMBO SILVEIRA, MÁRIO LUÍS CARDOSO E GUILHERME ORTIZ DE SOUZA. 

RECORRIDO(S) : MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL

RELATOR: DES. FEDERAL CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ

SESSÃO DE 21-05-2020

 

Superada a preliminar de reenquadramento jurídico do fato.

 

Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz:

 

Mérito

A sentença reconheceu a prática do abuso do poder econômico, declarando a inelegibilidade dos recorrentes para as eleições a se realizarem nos oito anos subsequentes ao pleito de 2016.

Assim, superada a preliminar quanto ao reenquadramento jurídico do fato, a partir do instituto do abuso do poder econômico, decorrente da arrecadação ilícita de recursos, cumpre examinar a extensão da responsabilidade dos recorrentes quanto à inelegibilidade que lhes foi imposta.

Para tanto, procedo à digressão quanto à diferenciação entre os requisitos à imposição da cassação do registro ou diploma e à sanção de inelegibilidade.

No que refere à cassação do registro ou diploma, o tema atinente à responsabilidade por ilícito eleitoral no Direito Eleitoral, adota uma figura própria chamada de responsabilização na condição de mero beneficiário, ou seja, a despeito de não ter praticado o ato ilícito ou mesmo sequer ter tido conhecimento dele, o candidato é responsabilizado porque aufere benefícios e dividendos eleitorais na disputa política.

É o que ocorre, por exemplo, nas representações que visam a apurar a prática de conduta vedada, consoante dispõe os §§ 4º e 5º do art. 73, da Lei das Eleições, que expressamente sujeita o candidato beneficiado à sanção de cassação do registro ou do diploma, sem prejuízo de outras penalidades (multa e suspensão imediata da conduta).

Idêntica situação ocorre em sede de Ação de Investigação Judicial Eleitoral, cuja procedência da demanda independe da atribuição de conduta ilegal ao réu, sendo suficiente o mero benefício eleitoral angariado com o ato abusivo, assim como a demonstração da provável influência do ilícito no resultado do pleito (Recurso Ordinário n. 1.350/RR, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. em 10 de abril de 2007).

Ao cassar o registro, diploma ou mandato, em virtude do reconhecimento de ato contrário à legislação eleitoral (conduta vedada ou abuso de poder, por exemplo) considera suficiente a participação do candidato como mero beneficiário. É o efeito colateral decorrente do restabelecimento da legitimidade do pleito, da higidez do processo eleitoral.

Assim, à cassação do registro, diploma ou mandato de componente da chapa majoritária, basta sua condição de mero beneficiário, ainda que não tenha sido o autor do ato ilícito.

Isso porque, diferentemente de outros regimes jurídicos (consumidor, civil, penal, administrativo, tributário) a responsabilidade eleitoral é marcada pela defesa dos bens jurídicos protegidos, que envolvem a normalidade e a legitimidade das eleições, a liberdade de voto do eleitor e a isonomia entre os candidatos.

É uma responsabilidade peculiar, tendo em conta a relevância do bem jurídico tutelado que, ao fim e ao cabo, diz com a própria democracia representativa, ao respeito às regras da regularidade do pleito.

Essa orientação se coaduna com o princípio da unicidade da chapa, previsto no art. 77, § 1º, da Constituição Federal de 1988 e art. 91 do Código Eleitoral.

Entretanto, não basta a mera condição de beneficiário para efeito do reconhecimento da inelegibilidade fundada em abuso do poder econômico.

É o que se depreende da leitura do art. 18 da Lei Complementar n. 64/90 que dispõe que a declaração de inelegibilidade de candidato a Presidente da República, a Governador de Estado e a Prefeito Municipal não se comunica aos respectivos vices, tampouco a destes atinge aqueles, dada sua natureza personalíssima.

Da inteligência desse dispositivo o Tribunal Superior Eleitoral firmou raciocínio uníssono no sentido de que tal sanção é personalíssima e cabível somente diante da realização da conduta ilícita ou da anuência a ela (REspe n. 84356/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJE 2.9.2016, RO n. 29659, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJE 29.9.2016; AgR-REspe n. 489-15, Rel. Min. Henrique Neves da Silva, DJE 19.11.2014). Equivale dizer, não se cogita da possibilidade de reconhecer-se inelegibilidade sem a demonstração, modo inequívoco, de que houve a participação do agente na prática do ilícito. A responsabilidade é subjetiva, portanto, quando se trata de inelegibilidade, devendo ser demonstrada e provada a conduta irregular do candidato.

Dessa forma, conforme reiterado entendimento do Supremo Tribunal Federal, a teoria do domínio do fato não se presta “para colmatar a falta de substrato probatório da autoria delitiva” (AP 987/MG, Rel. Min. Edson Fachin).

Nesse sentido:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. AÇÃO PENAL. CRIMES AMBIENTAIS E DE FALSIDADE IDEOLÓGICA. DEPUTADO FEDERAL. 1. CRIME PREVISTO NO ART. 46 DA LEI 9.605/1998. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. PRESCRIÇÃO. OCORRÊNCIA. CAUSA INTERRUPTIVA DA PRESCRIÇÃO PELO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. 2. CRIME DE FALSIDADE IDEOLÓGICA (ART. 299 DO CP). MATERIALIDADE DELITIVA. COMPROVADA. AUTORIA DELITIVA. NÃO DEMONSTRADA. TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO. INAPLICABILIDADE. CARGO DE DIREÇÃO OCUPADO É INSUFICIENTE PARA, UNICAMENTE, COMPROVAR A AUTORIA DELITIVA. RESPONSABILIDADE QUE NÃO PODE SER PRESUMIDA. VEDAÇÃO DA RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA. AUSÊNCIA DE

SUBSTRATO PROBATÓRIO. PRECEDENTES. 3. CRIME DOART. 69 DA LEI 9.605/1998. AUSÊNCIA DE PROVA DO RÉU TER CONCORRIDO PARA A INFRAÇÃO PENAL. ABSOLVIÇÃO.

1. Extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva quanto ao crime descrito no art. 46 da lei 9.605/1998, tendo em vista que a causa interruptiva da prescrição ocorreu com o recebimento da denúncia, e desde

então, não incidiram outras causas interruptivas ou suspensivas.2. A teoria do domínio do fato não tem lugar para colmatar a falta de substrato probatório da autoria delitiva. Precedentes AP 975/AL e AP 898/SC.

3. No crime de falsidade ideológica, a conduta comissiva do tipo penal imputado não pode ser presumida, unicamente, pelo cargo de direção ocupado na época dos fatos, pois a contrario sensu estar-se-ia autorizar a aplicação da vedada responsabilidade penal objetiva. 4. O quadro processual revela a insubsistência de prova de manobra ou de conduta precedente ou posterior do denunciado, que, na condição de diretor geral, causasse óbices ou dificuldades na atuação dos agentes responsáveis pela fiscalização no trato de questões ambientais.5. Absolvição por ausência de provas de que o réu tenha concorrido para a prática dos crimes previstos nos arts. 299 do CP e 69 da Lei 9.605/1998, por força do art. 386, V, do CPP” (AP 987/MG, Rel. Min. Edson Fachin).

 

A condição de candidatos a prefeito e vice-prefeito não é causa suficiente a presumir a ciência das condutas ilícitas do tesoureiro. Como dito, a responsabilidade, no que refere à inelegibilidade, não dispensa substrato probatório quanto à participação ou anuência dos recorrentes, sob pena de se estabelecer, em matéria de direito sancionatório, a responsabilização objetiva.

Do exame do caderno probatório, ficou comprovado que o tesoureiro Guilherme Ortiz de Souza foi o autor da conduta de captar recursos irregulares, matéria incontroversa nos autos.

Contudo, apesar de o processo conter 21 volumes (mais de 4.500 fls.) não há qualquer prova produzida que possa concluir pela participação dos candidatos no ilícito perpetrado.

Em 21 de setembro de 2016, um dia antes do cumprimento dos mandados de busca e apreensão das fls. 101-103, 124 e 113-115, Guilherme fez contatos telefônicos com pessoas jurídicas e, na manhã do dia seguinte, 22 de setembro de 2016, enquanto estava acompanhado de um segurança pessoal armado, o policial militar Cleber Augusto Amaral Franco, encontrou-se com o candidato a vice, Mário Cardoso, no posto de combustíveis Miami, em Canoas.

Foi interceptada a conversa telefônica travada entre Guilherme e o candidato a vice Mário Cardoso (Apenso 2, volume 2 de 6, fl. 72 do IPL 1049-2016-DELINST/SR/PR/RS), com o seguinte teor:

Chamada do Guardião

Data da Chamada – 22/09/2016

Hora da Chamada - 09:40

Transcrição:

GUILHERME: E ae! Beleza?

MARIO: Beleza! Vamos tomar um café?

GUILHERME: Tá. Eu tenho uma reunião às dez, mas eu posso atrasar um pouquinho... mas vamos tomar aqui por perto.

MARIO: Pode ser! Eu tô aqui no La Salle.

GUILHERME: Tá. O que tu acha de tomar naquele posto que a a gente sempre vai?

MARIO: No posto ali?

GUILHERME: É!

 

Apreendidos os valores já mencionados, em dinheiro (reais e dólares) e cheque, sendo que parte do valor estava na mochila de Guilherme quando ele e o seu segurança pessoal se encontravam dentro do comitê de campanha dos candidatos (cerca de R$ 166.900,00 (cento e sessenta e seis mil e novecentos reais), bem como um cheque de cerca de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais). Guilherme não revelou a origem dos valores e nem a natureza dos seus contatos com os representantes das empresas referidas, sendo totalmente descabida a pretensão recursal de que a sua omissão em trazer à tona a verdade dos fatos possa dar azo à alegação de que os recursos eram lícitos e não se envolviam com a campanha na qual ele trabalhava.

Entretanto, não é possível extrair da conversa acima transcrita, a conclusão de que o candidato a vice-prefeito, Mário Cardoso, tivesse praticado a conduta ou anuído com a captação ilícita.

Volta-se a afirmar, a condição de beneficiário da arrecadação ilícita poderia ser suficiente para condenar os recorrentes à sanção de negativa de outorga do diploma ou sua cassação, mas não é o que se verifica quando se está a examinar a sanção de inelegibilidade.

Dessa forma, tenho que a sentença merece reforma no ponto em que condenou os candidatos Beth Colombo e Mário Cardoso à inelegibilidade, pois não demonstrada a participação no ato abusivo. Em relação ao recorrente Guilherme Ortiz de Souza, como autor da conduta, é de ser mantido o sancionamento à inelegibilidade por 8 anos.

ANTE O EXPOSTO, dou parcial provimento aos recursos de Lúcia Elizabeth Colombo Silveira e Mário Luis Cardoso para absolvê-los da condenação à inelegibilidade imposta na sentença e nego provimento ao recurso de Guilherme Ortiz de Souza, mantendo o sancionamento à inelegibilidade por 8 anos, a contar das eleições de 2016.

Considera-se prequestionada toda a matéria de defesa alegada e dispositivos legais invocados.