RE - 1258 - Sessão: 14/09/2020 às 14:00

RELATÓRIO

Cuida-se de recurso interposto pelo PROGRESSISTAS (PP) de SANTIAGO contra sentença do Juízo da 44ª Zona Eleitoral - Santiago (fls. 318-320) que desaprovou a prestação de contas da agremiação relativa ao exercício 2017, cominando a devolução ao Tesouro Nacional de R$ 15.886,00 (quinze mil, oitocentos e oitenta e seis reais), equivalentes aos recursos recebidos de fonte vedada, acrescidos de multa, totalizando R$ 16.666,20 (dezesseis mil, seiscentos e sessenta e seis reais e vinte centavos), com suspensão de distribuição ou de repasse do Fundo Partidário por 05 (cinco) meses.

Em suas razões (fls. 324-328), o recorrente questiona o percentual da multa aplicada e postula a incidência dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade para a redução do prazo de suspensão de recebimento de recursos do Fundo Partidário. Defende a retroatividade da aplicação do disposto na Lei n. 13.488/17 por ser mais benéfica. Requer o conhecimento e o provimento do recurso para que as contas sejam aprovadas ou, alternativamente, para que seja considerado o valor de R$ 16.384,20, com o afastamento da multa e a manutenção do parcelamento.

Com contrarrazões (fl. 333 e v.), nesta instância, os autos foram com vista à Procuradoria Regional Eleitoral, que opinou pelo conhecimento e provimento parcial do recurso (fls. 337-346).

O recorrente apresentou, então, petição pleiteando a incidência da Lei n. 13.831/19, que incluiu o art. 55-D na Lei dos Partidos Políticos (fls. 348-349), oportunizando-se manifestação do Ministério Público Eleitoral, que invocou a aplicação de precedente desta Corte que reconheceu incidentalmente a inconstitucionalidade do dispositivo (fls. 363-365v.).

É o breve relatório.

 

VOTO

Senhor Presidente,

Eminentes colegas:

O recurso é tempestivo e preenche os demais requisitos de admissibilidade, razão pela qual dele conheço.

Inicialmente, esclareço que, nestes autos, a magistrada a quo realizou a seguinte análise do caso após a instrução processual (fl. 319):

 

Verifica-se da simples leitura do citado art. 31 da Lei dos Partidos Políticos de 1995 c.c. o art. 12 da Resolução TSE nº 23.464/2015 que é vedado o recebimento de recursos financeiros provenientes de autoridades (cargos e funções de direção e chefia) o que, no caso concreto, ficou evidenciado. Entendo também que detentores de cargos eletivos podem efetuar doações aos partidos políticos, reputando-as legais. Já pessoas físicas detentoras de cargos de direção ou chefia, se submetidos à hierarquia administrativa, não podem efetuar contribuições. No caso, tais servidores doaram os recursos financeiros mencionados acima no exercício de 2017 em contrariedade ao determinado na lei vigente na época do exercício fiscal. Cumpre esclarecer, entretanto que dos R$23.886,00 devem ser descontados R$8.282,00 (oito mil duzentos e oitenta e dois reais) apurados pela Unidade Técnica do Cartório Eleitoral como provenientes de detentores de cargos eletivos, assessores e de contribuintes filiados à agremiação partidária que efetuaram a doação após a vigência da Lei 13.488/2017, totalizando uma fonte vedada de R$15.604,00 (quinze mil seiscentos e quatro reais), que deve ser devolvido ao Tesouro Nacional com um acrescimo de 5% de multa.

 

Como se percebe, a questão de fundo é o recebimento de doações oriundas de fonte vedada – autoridades -, sendo que a decisão combatida não incluiu nesse conceito os detentores de cargos eletivos, os assessores e os contribuintes filiados à agremiação partidária que efetuaram doação após a vigência da Lei n. 13.488/17, tudo em harmonia com a jurisprudência da Corte.

O recorrente postula a aplicação retroativa do disposto na Lei n. 13.488/17 e, em posterior petição (fls. 348-349), da Lei n. 13.831/19, que incluiu o art. 55-D na Lei dos Partidos Políticos. O recurso não questiona a existência das doações, os valores, a qualificação de autoridade dos doadores ou o registro ou não de filiação partidária, residindo a controvérsia tão somente quanto à retroatividade/aplicabilidade das normas citadas.

Assim, delineados os limites recursais, cabe reprisar que a Lei n. 13.488/17 entrou em vigor no dia 06.10.2017, revogando a vedação absoluta de doações advindas de autoridades públicas ao incluir o inc. V no art. 31 da Lei n. 9.096/95, resultando na seguinte redação:

 

Art. 31. É vedado ao partido receber, direta ou indiretamente, sob qualquer forma ou pretexto, contribuição ou auxílio pecuniário ou estimável em dinheiro, inclusive através de publicidade de qualquer espécie, procedente de:

(…).

V - pessoas físicas que exerçam função ou cargo público de livre nomeação e exoneração, ou cargo ou emprego público temporário, ressalvados os filiados a partido político.

 

Dessarte, em relação ao exercício financeiro sob exame (2017), deve-se considerar a existência de duplo tratamento jurídico das doações de pessoas físicas exercentes de cargos de chefia e direção na administração pública, em decorrência da sucessão legislativa.

Relativamente às contribuições anteriores ao dia 06.10.2017, deve ser observada a redação original do art. 31 da Lei dos Partidos Políticos, bem como as prescrições do art. 12, inc. IV e § 1º, da Resolução TSE n. 23.464/15, que vedavam os aportes de valores, ainda que provenientes de filiados a partidos políticos.

Contudo, se realizadas a partir de 06.10.2017, cumpre aplicar o art. 31, inc. V, da Lei n. 9.096/95 em sua nova redação, que ressalva a licitude dos auxílios pecuniários quando advindos de filiados a partidos políticos. Nesse sentido são os precedentes deste TRE, ilustrativamente:

 

RECURSO ELEITORAL. PRESTAÇÃO DE CONTAS. PARTIDO POLÍTICO. EXERCÍCIO FINANCEIRO DE 2017. DESAPROVAÇÃO. AFASTADA A PRELIMINAR DE ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. MÉRITO. RECURSOS ADVINDOS DE FONTES VEDADAS. AUTORIDADES. IRREGULARIDADES QUE SOMAM O PERCENTUAL DE 9,86% DAS RECEITAS AUFERIDAS PELA GREI NO EXERCÍCIO FINANCEIRO EM ANÁLISE, POSSIBILITANDO O JUÍZO DE APROVAÇÃO DAS CONTAS COM RESSALVAS. REDUÇÃO DO VALOR A SER RECOLHIDO AO TESOURO NACIONAL. AFASTADAS AS PENALIDADES DE SUSPENSÃO DO REPASSE DE QUOTAS DO FUNDO PARTIDÁRIO E DE MULTA. PARCIAL PROVIMENTO.

1. Recebimento de recursos oriundos de fontes vedadas. É vedado aos partidos políticos receber doações ou contribuições de titulares de cargos demissíveis ad nutum da administração direta ou indireta, quando ostentarem a condição de autoridades.

2. Inviável reconhecer a aduzida inconstitucionalidade do art. 65, inc. III, da Resolução TSE n. 23.546/17 por mostrar-se incompatível com o art. 60, § 4º, inc. III, da Constituição Federal. Embora o art. 31, inc. V, da Lei n. 9.096/95, com a redação que lhe foi dada pela Lei n. 13.488/17, considere regular as doações realizadas por autoridades públicas com vínculo partidário, essa regra alcança, tão somente, as doações efetuadas após a data da sua publicação, qual seja, 06.10.2017, não sendo aplicável a todo o exercício financeiro de 2017. Incidência da legislação vigente à época em que efetivadas as doações por autoridades públicas.

3. Irregularidades que somam o percentual de 9,86% da totalidade das receitas arrecadadas pela agremiação no exercício financeiro em análise, possibilitando o juízo de aprovação das contas com ressalvas, na esteira da jurisprudência firmada pelo Tribunal Superior Eleitoral, igualmente adotada no âmbito deste Tribunal.

4. Redução do valor a ser recolhido ao Tesouro Nacional e afastadas as penalidades de suspensão do repasse de quotas do Fundo Partidário e de multa.

5. Provimento parcial. Aprovação com ressalvas.

(TRE-RS, RE 1526, Rel. Desa. Marilene Bonzanini, DEJERS de 17.5.2019.) (Grifei.)

 

 

RECURSO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. PARTIDO POLÍTICO. EXERCÍCIO FINANCEIRO DE 2017. DESAPROVAÇÃO. RECEBIMENTO DE RECURSOS ORIUNDOS DE FONTE VEDADA. ALEGADA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 31, INC. II, DA LEI N. 9.096/95. REJEITADA. IRRETROATIVIDADE DAS DISPOSIÇÕES DA LEI N. 13.488/17. DUPLO TRATAMENTO JURÍDICO DAS DOAÇÕES DE PESSOAS FÍSICAS DETENTORAS DE CARGOS DE CHEFIA E DIREÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE EQUIPARAÇÃO ENTRE DETENTORES DE MANDATO ELETIVO E OCUPANTES DE CARGOS DE CHEFIA OU DIREÇÃO. RETIFICADA A QUANTIA A SER RECOLHIDA AO TESOURO NACIONAL. REDUZIDOS O PERÍODO DE SUSPENSÃO DO FUNDO PARTIDÁRIO E O PERCENTUAL DA MULTA APLICADA. PARCIAL PROVIMENTO.

1. Alegada inconstitucionalidade do art. 31, inc. II, da Lei n. 9.096/95, em sua redação original. Os dispositivos constantes em leis ordinárias possuem presunção de constitucionalidade até manifestação do Poder Judiciário em sentido contrário, seja em sede de controle difuso, seja em controle concentrado. Na hipótese, a norma, editada nas linhas do devido processo legislativo, ostenta presunção de constitucionalidade, devendo ser preservada e aplicada em todos os seus efeitos desde a sua vigência.

2. Identificado o recebimento de doações de recursos financeiros de ocupantes de funções de direção e chefia. No caso dos autos, aplicado duplo tratamento jurídico das doações de pessoas físicas exercentes de cargos de chefia e direção na administração pública, em decorrência da sucessão legislativa. Em relação às contribuições anteriores ao dia 06.10.2017, devem ser observadas a redação original do art. 31 da Lei dos Partidos Políticos e as prescrições do art. 12, inc. IV e § 1º, da Resolução TSE n. 23.464/15, que vedavam as contribuições provenientes de autoridades, independentemente de serem ou não filiados ao partido donatário. Contudo, em relação às doações realizadas a partir daquela data, cumpre aplicar a nova redação, que ressalta a licitude dos auxílios pecuniários quando advindos de filiados.

3. Esta Corte assentou entendimento pela impossibilidade de equiparação entre os detentores de mandatos políticos e os ocupantes de cargos comissionados de chefia ou direção, uma vez que somente estes últimos podem figurar como instrumento do aparelhamento financeiro dos partidos, sendo taxativamente considerados fonte proscrita de receita pela norma eleitoral.

4. Irregularidade que representa 36,5% do total de recursos arrecadados no exercício, não sendo aplicáveis os postulados da proporcionalidade e da razoabilidade.

5. Penalidades. Mantida a desaprovação das contas. Retificada a quantia a ser recolhida ao Tesouro Nacional. Reduzidos o período de suspensão das quotas do Fundo Partidário para 4 meses e a multa a ser aplicada para o índice de 7% da quantia irregular.

6. Provimento parcial.

(TRE-RS, RE 2368, Rel. Des. Federal João Batista Pinto Silveira, DEJERS  de 17.5.2019.) (Grifei.)

 

Também reforçando a impossibilidade de retroação do dispositivo, o TSE tem entendimento consolidado no sentido de que a legislação que regula a prestação de contas é aquela que vigorava durante o exercício contábil, por força dos princípios da anualidade eleitoral, da isonomia, do tempus regit actum, e das regras que disciplinam o conflito de leis no tempo (ED-ED-PC 96183/DF, Relator Min. Gilmar Mendes, DJE de 18.3.2016).

Dessa forma, não merece reparo a decisão recorrida, no ponto.

O recorrente postulou, ainda, a aplicação do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, com a redação conferida pela Lei n. 13.831/19.

Ocorre que este Tribunal já se debruçou sobre a anistia instituída pela Lei n. 13.831/19 ao examinar o RE n. 35-92, de relatoria do Des. Eleitoral Gerson Fischmann. Naquela ocasião, o incidente de inconstitucionalidade foi assim decidido, no ponto que importa:

 

RECURSO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. PARTIDO POLÍTICO. EXERCÍCIO DE 2015. DESAPROVAÇÃO. MATÉRIA PRELIMINAR ACOLHIDA. INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 55-D DA LEI N. 9.096/95, INCLUÍDO PELA LEI N. 13.831/19. MÉRITO. RECEBIMENTO DE RECURSOS DE ORIGEM NÃO IDENTIFICADA E DE FONTE VEDADA. PORCENTAGEM REPRESENTATIVA DAS IRREGULARIDADES DIANTE DA TOTALIDADE DOS RECURSOS ARRECADADOS NO PERÍODO. AFASTADA A APLICAÇÃO DOS POSTULADOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE. MANUTENÇÃO DO JUÍZO DE DESAPROVAÇÃO. REDUZIDO O PERÍODO DE SUSPENSÃO DO FUNDO PARTIDÁRIO. AFASTADA A CONDIÇÃO DE QUE A SANÇÃO SUBSISTA ATÉ QUE OS ESCLARECIMENTOS SEJAM ACEITOS PELA JUSTIÇA ELEITORAL. PROVIMENTO PARCIAL.

1. Incidente de inconstitucionalidade suscitado pelo Procurador Regional Eleitoral. 1.1. O art. 55-D da Lei n. 9.096/95, norma legal objeto do aludido incidente, incluído pela Lei n. 13.831/19, assinala a anistia das devoluções, cobranças ou transferências ao Tesouro Nacional que tenham como causa as doações ou contribuições efetuadas, em anos anteriores, por servidores públicos os quais exerçam função ou cargo público de livre nomeação e exoneração, desde que filiados a partido político. Ausência de notícia de que tenha havido oferecimento dos dados relativos à previsão de estimativa de impacto orçamentário e financeiro quando da tramitação da proposta legislativa prevendo a renúncia da receita. Omissão que afronta a exigência constitucional incluída pela EC n. 95/16 no art. 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. A legislação infraconstitucional igualmente exige seja comprovado o impacto orçamentário e financeiro à concessão de benefício que gere a diminuição de receita da União, nos termos do art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal e arts. 114 e 116 da Lei n. 13.707/18. 1.2. A anistia das verbas consideradas como oriundas de fontes vedadas - benefício instituído em causa própria e sem qualquer finalidade pública subjacente - atenta ao princípio da moralidade administrativa e desvirtua a natureza jurídica do instituto. 1.3. Vício de inconstitucionalidade formal e material. Acolhimento da preliminar. Afastada, no caso concreto, a aplicação do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, incluído pela Lei n. 13.831/19. (...) (grifo nosso)

(...)

(TRE/RS, Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade, RE 35-92.2016.6.21.0005, Rel. Des. Eleitoral Gerson Fischmann, DEJERS de 23.08.2019.)

 

Naqueles autos, as seguintes teses foram discutidas:

 

O dispositivo legal objeto do incidente de inconstitucionalidade está assim redigido:

Art. 55-D. Ficam anistiadas as devoluções, as cobranças ou as transferências ao Tesouro Nacional que tenham como causa as doações ou contribuições feitas em anos anteriores por servidores públicos que exerçam função ou cargo público de livre nomeação e exoneração, desde que filiados a partido político.

O artigo acima transcrito foi incluído na Lei n. 9.096/95 pela Lei n. 13.831/19, na data de 19.6.2019, oriundo da derrubada do veto do Presidente da República, por ocasião da sanção do Projeto de Lei n. 1.321/19.

As razões do veto foram as seguintes:

A propositura legislativa ao estabelecer, por intermédio da inclusão do art. 55-D na Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995, que ficam anistiadas as devoluções, cobranças ou as transferências ao Tesouro Nacional que tenham como causa as doações ou contribuições feitas em anos anteriores por servidores públicos que exerçam função ou cargo público de livre nomeação e exoneração, desde que filiados a partido político, acaba por renunciar receitas para a União, sem a devida previsão de estimativa de impacto orçamentário e financeiro, em infringência ao art. 113 do ADCT, art. 14 da LRF e arts. 114 e 116 da LDO de 2019.

Contudo, o Congresso Nacional, utilizando da prerrogativa prevista no § 4º do art. 66 da Constituição Federal, rejeitou o veto presidencial.

Como muito bem apontado pelo suscitante, não se tem notícia de que tenha havido apresentação dos dados relativos à estimativa de impacto orçamentário e financeiro quando da tramitação da proposta legislativa prevendo a renúncia da receita sob análise.

A exigência da mencionada estimativa tem sede constitucional, incluída pela EMC n. 95/16 no ADCT:

Art. 113. A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro.

Além disso, a legislação infraconstitucional igualmente exige a devida comprovação do impacto orçamentário e financeiro à concessão de benefício que gere a diminuição de receita da União (art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal e arts. 114 e 116 da Lei n. 13.707/18).

Assim, no ponto, o dispositivo legal em questão possui vício de inconstitucionalidade na origem.

O constituinte de 1988 foi contundente ao demonstrar a intenção de dedicar papel central aos partidos políticos no Estado Democrático de Direito, elegendo como fundamento da República Federativa do Brasil o pluralismo político.

As funções das agremiações partidárias, na dicção de Mario Justo López (Partidos Políticos: teoría general y régimen legal, p. 40-41), são: a) dar coerência à vontade popular; b) realizar a educação cívica dos cidadãos; c) servir de elo entre o governo e a opinião pública; d) selecionar aqueles que devem dirigir os destinos do Estado; e e) projetar a política de governo e controlar a sua execução.

Como eixo fundante da democracia representativa, os partidos devem respeitar a soberania popular, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e são obrigados a prestar contas à Justiça Eleitoral.

O instituto da prestação de contas tem como escopo emprestar transparência à atividade partidária, identificar a origem e a destinação dos recursos utilizados nas disputas eleitorais, tudo com o propósito de evitar o aporte de dividendos ilícitos no processo eleitoral e evitar o abuso do poder econômico.

Nessa medida, quando esses mesmos organismos que deveriam ser os protagonistas da democracia representativa, em uma verdadeira queda de braço com o Poder Executivo, instituem anistia de todas as verbas consideradas oriundas de fontes vedadas, forçoso reconhecer ofensa direta ao princípio da prestação de contas. Não só isso, sendo o benefício em causa própria e sem qualquer finalidade pública, para dizer o mínimo, há inequívoca violação ao princípio da moralidade administrativa (art. 37, caput, da CF).

A anistia igualmente coloca em situação não isonômica e em posição desfavorável aquelas agremiações partidárias que adimpliram suas obrigações com o recolhimento de importâncias glosadas pela Justiça Eleitoral quando do exame e fiscalização de suas contas.

Significa dizer, nas palavras do eminente Procurador Regional Eleitoral, depois do jogo jogado, mudam as regras e, de forma benevolente e casuísta, concede-se anistia aos que se encontram em mora.

Para além disso, subverte a natureza jurídica do instituto da Anistia, realizando uma aplicação retroativa da Lei n. 13.488/17, que autorizou as doações daqueles que exercem cargo ou função demissível ad nutum, desde que filiados.

Com efeito, a jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de não ser possível a aplicação retroativa das disposições da Lei n. 13.488/17:

RECURSO. PRESTAÇÃO DE CONTAS ANUAL. PARTIDO POLÍTICO. EXERCÍCIO DE 2015. PRELIMINAR. MANUTENÇÃO DOS DIRIGENTES PARTIDÁRIOS NO POLO PASSIVO. ILEGITIMIDADE NÃO CONFIGURADA. MÉRITO. RECEBIMENTO DE DOAÇÕES DE FONTES VEDADAS. ALTERAÇÃO LEGISLATIVA. PERMITIDA A CONTRIBUIÇÃO DE FILIADOS. INAPLICABILIDADE AO CASO CONCRETO. APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO VIGENTE À ÉPOCA DOS FATOS. PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. MANUTENÇÃO DO JUÍZO DE IRREGULARIDADE DA DOAÇÃO. REDUÇÃO DO PRAZO DE SUSPENSÃO DO RECEBIMENTO DAS QUOTAS DO FUNDO PARTIDÁRIO. PARCIAL PROVIMENTO.

(...)

3. A Lei n. 13.488/17, publicada em 06.10.17, alterou a redação do art. 31 da Lei n. 9.096/95 - Lei dos Partidos Políticos -, excluindo a vedação de doação de pessoa física que exerça função ou cargo público demissível ad nutum, desde que filiada ao partido beneficiário.

4. Inaplicabilidade ao caso concreto. Incidência da legislação vigente à época dos fatos. Prevalência do princípio da segurança jurídica e da paridade de armas no processo eleitoral, em detrimento da aplicação pontual da retroatividade in bonam partem. Manutenção do juízo de irregularidade das contribuições advindas de cargos demissíveis ad nutum, ainda que os contribuintes sejam filiados à agremiação.

(...)

6. Provimento parcial.

(TRE-RS; Recurso Eleitoral n. 14-97, Relator: Dr. Luciano André Losekann, julgado em 04.12.17, por unanimidade.) (Grifei.)

Ressalto que esse entendimento é adotado pelo Tribunal Superior Eleitoral: a legislação que regula a prestação de contas é aquela que vigorava durante o exercício contábil, por força do princípio da anualidade eleitoral, da isonomia, do tempus regit actum, e das regras que disciplinam o conflito de leis no tempo (ED-ED-PC n. 96183/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJE de 18.3.2016).

Portanto, como reação à interpretação dada pelos Tribunais, o legislador, por meio de expediente nada republicano, moral e ético, aprova regramento anistiando todas doações advindas de servidores demissíveis ad nutum filiados, atribuindo eficácia imediata nos processos de prestação de contas e de criação dos órgãos partidários em andamento, a partir de sua publicação, ainda que julgados (art. 3º da Lei n. 13.831/19).

De outra banda, a palavra anistia é derivada do grego amnestía, que significa esquecimento. Na atualidade, anistiar significa um esquecimento das infrações cometidas, isto é, como se as condutas ilícitas nunca tivessem sido praticadas.

Desde a Grécia, vem sendo implementada a anistia como medida geral de clemência, benevolência, posteriormente a acontecimentos ocorridos por lutas, conflitos, provocados por motivos e circunstâncias de caráter político.

Tem, por fundamento, razões de ordem pública e não pode ser utilizada como favorecimento egoístico ou em causa própria, pressupõe a ocorrência de fatos que foram punidos, mas, por motivos de conveniência, são esquecidos, com o objetivo do restabelecimento da tranquilidade do Estado.

Rui Barbosa ensina que vem sendo aplicada desde Solon, 594 anos antes da era cristã, sendo instituto de ampla incidência ao longo da história, sempre em caráter geral e imbuída de finalidade pública.

Como adverte João Barbalho, "a anistia não se inspira só nos sentimentos de humanidade e clemência, mas não menos ou principalmente no bem do Estado, em ponderosas razões de ordem pública".

Na espécie, quando o legislador refere que a anistia deve incidir inclusive em relação aos processos em andamento, ou seja, antes da condenação, e se dirige apenas aos partidos políticos (individual), sem qualquer finalidade pública subjacente, evidente o desvio da própria natureza jurídica do tão importante instrumento de pacificação social.

Não é demais lembrar que o poder concedido ao legislador não é ilimitado e está sujeito a controle.

Lênio Streck, na sua obra Hermenêutica Jurídica em Crise, adverte para o que se pode chamar de integridade legislativa, significa dizer, o legislador igualmente há de fazer leis de modo coerente, observando uma sequência lógica e histórica.

Desse tema também se ocupou Ronald Dworkin, na sua obra O Império do Direito, no sentido de que a integridade legislativa deve ser concebida como limite de possibilidades de criação do direito pelos legisladores. Daí a assertiva de que as normas devem ser concebidas de forma a constituir um sistema único e coerente de justiça e equidade.

Nessa quadra, cabe lembrar que também deve ser imposto aos legisladores a construção da história legislativa como na metáfora de Dworkin do romance em cadeia, no sentido de que cada lei criada deve representar o capítulo seguinte da mesma obra.

Por derradeiro, acrescento que há outros dispositivos nessa mesma Lei n. 13.831/19 de constitucionalidade e integridade duvidosa, como é o caso daqueles que retiram a possibilidade de a Justiça Eleitoral rejeitar contas ou aplicar penalidade às agremiações partidárias que deixaram de aplicar o percentual mínimo de recursos para o financiamento das candidaturas femininas. Entretanto, deixo de avançar no tema, pois não é objeto do presente incidente.

Em resumo, o art. 55-D, inserido na Lei dos Partidos Políticos pela Lei n. 13.831/19, padece de vício de inconstitucionalidade formal e material, na medida em que deixou de ser apresentada estimativa de impacto orçamentário, violou os princípios da prestação de contas, da moralidade administrativa e da integridade legislativa.

Com essas considerações, entendo que merece acolhimento o incidente de inconstitucionalidade suscitado, afastando, no caso concreto, a aplicação do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, incluído pela Lei n. 13.831/19.

 

Dessa feita, tendo o Plenário do Tribunal realizado o exame da constitucionalidade do dispositivo – reputando-o inconstitucional -, não cabe a rediscussão da matéria.

Sabe-se que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente (art. 926 do Código de Processo Civil), bem como observar a orientação do plenário do órgão (art. 927, inc. V, do mesmo diploma).

Em especial, acerca do julgamento do mencionado incidente, peço vênia para transcrever a doutrina de Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero, especificamente sobre o ponto que aqui se examina – a possibilidade de rediscussão quando declarada pelo plenário de tribunal a inconstitucionalidade de dispositivo:

 

Uma vez decidida a questão constitucional pelo Plenário ou Órgão Especial, os órgãos fracionários ficam obrigados perante a decisão tomada pelo órgão qualificado. O parágrafo único do art. 949 do CPC de 2015 é expresso no sentido de que os órgãos fracionários não ficam obrigados apenas diante de precedente do STF, mas também de decisão do Plenário ou Órgão Especial do Tribunal.

Não é apenas o órgão fracionário que submeteu a questão de constitucionalidade ao quorum qualificado que fica vinculado à decisão. Todas as Câmaras ou Turmas ficam obrigadas perante a decisão tomada pelo Plenário ou pelo Órgão Especial.

Assim, uma vez decidida a questão constitucional no Tribunal, as Câmaras ou Turmas não mais podem submeter a arguição de inconstitucionalidade ao Plenário ou ao Órgão Especial. Até porque estes estão proibidos de voltar a tratar da questão constitucional sem que presentes os requisitos hábeis a justificar a revogação de precedentes, como a transformação dos valores sociais ou da concepção geral do direito ou, ainda, erro manifesto. Aliás, é improvável que a decisão do Tribunal, sem ter chegado à análise do STF, possa estar sujeita a tais condições.

Advirta-se que a alteração da composição do órgão julgador não é suficiente para a revogação do precedente. Da mesma forma, os fundamentos que foram levantados quando do julgamento não podem simplesmente voltar a ser discutidos. O rejulgamento é viável apenas quando se tem consciência de que a manutenção do precedente constitui a eternização de um erro ou de uma injustiça, seja porque há equívoco grosseiro na decisão, seja porque a evolução da sociedade e do direito está a mostrar que a decisão primitiva não mais pode prevalecer.

Frise-se que todos os juízos – inclusive os de 1.º grau – subordinados ao Tribunal de Justiça ou Regional Federal ficam vinculados à decisão tomada pelo Plenário ou pelo Órgão Especial.

(Curso de direito constitucional – 6. ed. – São Paulo: Saraiva, 2017, edição eletrônica.)

 

O julgamento recente (que mitiga a possibilidade de ocorrência da evolução da sociedade e do direito) e a ausência dos requisitos hábeis a justificar a revogação de precedente, nos termos da valorosa doutrina mencionada, são obstáculos ao acolhimento do pedido contido no recurso.

Com fundamento no precedente transcrito, declaro incidentalmente a inconstitucionalidade do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, incluído pela Lei n. 13.831/19, afastando sua aplicação no caso dos autos.

Por fim, conforme mencionado no parecer da Procuradoria Regional Eleitoral, “a irregularidade corresponde a 33,59% das contribuições recebidas pelo partido (R$ 46.442,00, fl. 06)”.

Tal percentual atingiu patamar que impossibilita, com base nos precedentes desta Corte e do TSE, a aplicação dos postulados da razoabilidade e da proporcionalidade, cabendo manter a desaprovação das contas.

Ocorre que a decisão recorrida foi contraditória quanto ao valor a ser recolhido e ao percentual da multa aplicada, pois consta na fundamentação que a mácula totalizou “uma fonte vedada de R$15.604,00 (quinze mil, seiscentos e quatro reais), que deve ser devolvido ao Tesouro Nacional com um acréscimo de 5% de multa” e, no dispositivo, a cominação de “devolução ao Tesouro Nacional da doação ilícita percebida de R$15.886,00 (quinze mil, oitocentos e oitenta e seis reais) acrescido de multa de 20% nos termos do art. 49 da citada resolução, o que totaliza R$16.666,20 (dezesseis mil, seiscentos e sessenta e seis reais e vinte centavos)” (grifos meus).

Pois bem, é possível verificar que o exame da prestação de contas (fls. 215-218) apontou que R$ 23.886,00 seria o valor correspondente às doações oriundas de autoridades, sendo que o parecer conclusivo (fls. 313-315) indicou o montante de R$ 8.282,00 como passível de dedução - tese acolhida na sentença.

Assim, considerando o erro material contido na decisão, é de se concluir que os recursos de origem vedada correspondem a R$ 15.604,00 (R$ 23.886,00 - R$ 8.282,00).

Da mesma forma, quanto ao percentual da multa, é razoável concluir que a sentença pretendia aplicá-lo no patamar de 5%, considerando sobretudo o grau de comprometimento da contabilidade. Isso se verfica porque, acaso empregado o percentual de 20%, a soma, mesmo tomando por base o valor com o erro material apontado, atingiria R$ 19.063,20 (e não R$ 16.666,20, como constou).

Portanto, deve-se considerar que a multa foi aplicada no percentual de 5%, o qual atende aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, resultando no acréscimo de R$ 780,20 sobre o montante a ser recolhido, totalizando R$ 16.384,20.

No entanto, apesar de a pena de multa ter sido fixada com equidade, penso que a determinação da suspensão do repasse de quotas do Fundo Partidário pelo período de 5 (cinco) meses é excessiva, principalmente considerando os precedentes do Tribunal Superior Eleitoral que afirmam ser indispensável ponderar todas as circunstâncias do caso concreto na análise da sanção mais adequada e compatibilizar a necessidade de sobrevivência dos diretórios partidários e a inibição de práticas irregulares (Recurso Especial Eleitoral n. 3757, Acórdão, Relator Min. Tarcisio Vieira De Carvalho Neto, Diário de justiça eletrônico de 02.8.2019; Recurso Especial Eleitoral n. 7237, Acórdão, Relator Min. Tarcisio Vieira De Carvalho Neto, Diário de justiça eletrônico de 02.10.2018).

Na hipótese, com amparo nessa diretiva e nos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, reduzo o período de suspensão do repasse de quotas do Fundo Partidário para 2 (dois) meses.

Ante o exposto, declaro incidentalmente a inconstitucionalidade do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, incluído pela Lei n. 13.831/19, e VOTO pelo provimento parcial do recurso, tão somente para corrigir o erro material contido na sentença e reduzir para 2 (dois) meses a sanção de suspensão do repasse de recursos do Fundo Partidário, mantendo a desaprovação das contas do exercício de 2017 do PROGRESSISTAS (PP) de SANTIAGO e a determinação de recolhimento ao Tesouro Nacional dos valores provindos de fonte vedada, no montante de R$ 15.604,00, acrescidos de multa de 5% sobre o valor irregular (R$ 780,20), o que perfaz o total de R$ 16.384,20.

É como voto, Senhor Presidente.