RC - 1614 - Sessão: 19/10/2020 às 14:00

RELATÓRIO

Trata-se de recurso interposto pelo Ministério Público Eleitoral (fls. 301-304) em face da sentença (fls. 297-298v.) prolatada pelo juízo da 71ª Zona Eleitoral de Gravataí, que julgou improcedente a denúncia, absolvendo DANIEL LUIZ BORDIGNON da imputação da prática do crime previsto no art. 39, § 5º, inc. III, da Lei n. 9.504/97, no dia das eleições de 2016, por ausência de prova da autoria delitiva, com fundamento no art. 386, inc. V, do Código de Processo Penal.

Em suas razões, o Ministério Público Eleitoral requereu a reforma da sentença, argumentando que a prova documental e testemunhal confirmaram o cometimento, pelo réu – por si ou por intermédio de terceiros –, do delito de divulgação de impressos de propaganda eleitoral, em grande quantidade, em locais próximos às sessões de votação no dia do pleito, tipificado no art. 39, § 5º, inc. III, da Lei n. 9.504/97. Acrescentou que, nos crimes atinentes à propaganda eleitoral, a responsabilidade do candidato resta configurada por meio do benefício auferido em favor da sua candidatura, independentemente da prova da sua participação direta ou prévio conhecimento acerca da conduta criminosa.

Em contrarrazões, DANIEL LUIZ BORDIGNON pugnou pela manutenção da sentença absolutória, reportando-se aos fundamentos utilizados pela magistrada de primeiro grau para refutar a argumentação recursal do órgão ministerial da origem (fls. 307-312).

Nesta instância, com vista dos autos, a Procuradoria Regional Eleitoral manifestou-se, preliminarmente, pelo recebimento e, no mérito, pelo desprovimento do recurso, entendendo que, conquanto suficientemente demonstrada a materialidade delitiva, inexiste prova do envolvimento do réu, mesmo que de forma indireta, na consecução do crime (fls. 317-318v.).

O eminente Desembargador Eleitoral Rafael da Cás Mafifni, a quem o recurso foi inicialmente distribuído (fl. 314), declarou-se suspeito por motivo de foro íntimo, como facultado pelo art. 145, § 1º, do Código de Processo Civil (fl. 320), sendo o processo redistribuído à relatoria do Vice-Presidente e procedida à alteração do seu revisor (fl. 322).

É o relatório.

VOTO

Admissibilidade Recursal

O MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL foi intimado da sentença no dia 05.02.2019 (fl. 299v.), vindo a interpor o recurso em 06.02.2019 (fl. 301).

O recurso, portanto, é tempestivo, pois interposto dentro do prazo de 10 dias, previsto no art. 362 do Código Eleitoral, preenchendo, também, os demais pressupostos de admissibilidade, razões pelas quais o conheço.

Mérito

Preliminarmente, registro não ter ocorrido, na hipótese, a prescrição da pretensão punitiva estatal na sua modalidade abstrata.

Como o réu foi absolvido pelo juízo da origem, a prescrição é regulada pelo máximo da pena privativa de liberdade abstratamente cominada ao crime tipificado no art. 39, § 5º, inc. III, da Lei n. 9.504/97, ou seja, 1 (um) ano de detenção, a qual atrai a incidência do prazo prescricional de 4 (quatro) anos, não transcorrido entre 12.3.2018 (fl. 44), dia do recebimento da denúncia (único marco interruptivo prescricional) e a data do presente julgamento (art. 109, caput e inc. V, c/c o art. 117, inc. I, do Código Penal).

Com essas observações, passo à análise do mérito recursal propriamente dito.

DANIEL LUIZ BORDIGNON foi denunciado pelo órgão ministerial com atuação junto à 71ª Zona Eleitoral, porque, segundo narrativa contida na peça inaugural, por volta das 10h30min e das 13h30min do dia 02.10.2016, quando realizadas as eleições municipais, teria divulgado, por si ou interpostas pessoas, impressos de propaganda eleitoral (“santinhos”), nos quais figurava como candidato a prefeito, em vias públicas, nas proximidades de locais de votação do município de Gravataí, incorrendo na prática do delito do art. 39, § 5º, inc. III, da Lei n. 9.504/97, descrito nos seguintes termos:

Art. 39. A realização de qualquer ato de propaganda partidária ou eleitoral, em recinto aberto ou fechado, não depende de licença da polícia.

(…)

§ 5º Constituem crimes, no dia da eleição, puníveis com detenção, de seis meses a um ano, com a alternativa de prestação de serviços à comunidade pelo mesmo período, e multa no valor de cinco mil a quinze mil UFIR:

(…)

III - a divulgação de qualquer espécie de propaganda de partidos políticos ou de seus candidatos. (Redação dada pela Lei nº 12.034, de 2009)

A divulgação de propaganda no dia das eleições constitui crime formal, dispensando-se, para a sua configuração, a real e efetiva influência na formação da vontade do eleitorado, a qual tem caráter potencial, devendo ser inferida a partir das circunstâncias concretas. O tipo subjetivo consiste no dolo genérico, decorrente da consciência e vontade de realizar a conduta típica, dispensando um especial fim de agir (GOMES, José Jairo. Crimes Eleitorais e Processo Penal Eleitoral. 3ª ed., São Paulo: Editora Atlas, 2018, pp. 256-257).

No caso dos autos, apesar de a materialidade delitiva se encontrar suficientemente demonstrada por meio da apreensão de cerca de 190 (cento e noventa) exemplares do “santinho”, contendo propaganda da chapa majoritária pela qual DANIEL LUIZ BORDIGNON disputou o cargo de prefeito nas eleições de 2016 (fl. 14), objeto dos Boletins de Ocorrência n. 161445 e n. 161446 (fls. 11 e 13), inexistem elementos probatórios mínimos do envolvimento do réu no cometimento do crime que lhe foi imputado, seja de forma imediada ou mediata.

Depreende-se da leitura dos referidos boletins de ocorrência e da certidão de fl. 23, lavrada pela Chefe do Cartório da 71ª Zona Eleitoral de Gravataí, que, nas diligências realizadas tanto por equipes volantes da Justiça Eleitoral quanto por membros integrantes da Junta Eleitoral, nas proximidades de locais de votação daquele município no dia das eleições, houve, tão somente, a apreensão dos “santinhos”, sem a identificação dos responsáveis pelo derramamento do material de propaganda recolhido.

Do mesmo modo, as testemunhas ouvidas em juízo (CD de fl. 256) não contribuíram com a identificação das pessoas que teriam divulgado a propaganda eleitoral de forma ilícita, por meio da sua entrega direta a eleitores ou do seu derramamento nas vias públicas municipais.

Nesse sentido, Alessandra Teixeira Pureza, que trabalhou no Cartório Eleitoral da 71ª Zona à época das eleições de 2016, disse, em seu depoimento, ter participado, com uma funcionária do fórum, de uma diligência junto à escola do Bairro COHAB, durante a qual recolheram inúmeros “santinhos” de diferentes candidatos, dentre os quais, DANIEL BORDIGNON e alguns de seus adversários políticos, sem, entretanto, ter ocorrido a identificação dos responsáveis pela distribuição do material no local de votação.

Taiara da Silva Barbosa, policial militar que trabalhou no Fórum de Gravataí, limitou-se a descrever o trabalho desempenhado na elaboração dos termos circunstanciados de ocorrência no dia do pleito, nada esclarecendo acerca da participação de DANIEL LUIZ BORDIGNON na conduta ilícita.

E, finalmente, Adriel Cristiano Biasio, policial militar do corpo estadual de bombeiros, ouvido perante o Juízo da 112ª Zona Eleitoral de Porto Alegre, mencionou ter participado do recolhimento de “santinhos” que foram espalhados pelo chão de colégios da cidade de Gravataí, sem que tenha havido a identificação dos responsáveis pela prática criminosa (fl. 275).

Ao depor em juízo, Daniel Luiz Bordignon negou sua participação no delito, dizendo ter divulgado, a exemplo dos integrantes do seu comitê de campanha, orientação contrária à realização de propaganda eleitoral por meio do derramamento de “santinhos” em locais de votação, por não acreditar na eficácia dessa forma de convencimento do eleitorado.

O recorrido apontou, ainda, a dificuldade de controle das ações dos representantes dos 6 (seis) partidos políticos e dos mais de 50 (cinquenta) candidatos ao cargo de vereador, que integraram a coligação pela qual disputou as eleições majoritárias, bem como das atitudes de candidatos adversários, que também tiveram acesso ao seu material de campanha nos dias que antecederam ao pleito (CD de fl. 256).

Ademais, do conjunto probatório coligido aos autos, não se extrai qualquer indício de que o RECORRIDO tenha praticado o crime por interposta pessoa, abrindo espaço a que se cogitasse de uma hipótese de autoria mediata, ou, menos ainda, por meio de conduta omissiva, apta a invocar a figura do garantidor, a quem incumbe, por força de lei, o dever jurídico de evitar resultado penalmente relevante, nos moldes delineados pelo art. 13, § 2º, do Código Penal.

Essa linha argumentativa adotada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL com relação à autoria delitiva, tanto na inicial acusatória quanto na peça recursal (fls. 02 e verso e 304), revela um esforço argumentativo que não se encontra minimamente amparado na prova dos autos, de modo que a transposição dessa barreira fático-probatória, com a condenação do RECORRIDO pela prática do crime objeto da denúncia, lastreada na mera apreensão do material de propaganda no dia das eleições, sem a comprovação do agir doloso ou culposo de sua parte, importaria verdadeira imputação objetiva, inadmissível na seara penal.

Nesse ponto, observo ter o MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL recorrido aos ensinamentos de José Jairo Gomes (Direito Eleitoral, 10ª ed., São Paulo: Editora Atlas, 2014, p. 262) para sustentar a tese de que, independentemente do conhecimento ou participação direta ou imediata na prática da propaganda irregular, o RECORRIDO teria de responder pelo ilícito penal, dada a sua condição de beneficiário do ato, pois "(…) a imputação de responsabilidade eleitoral funda-se, ainda, nos benefícios que elas proporcionam (ou teriam proporcionado) a determinada candidatura" (fl. 303v.).

Todavia, percorrendo a obra do referido autor, em edição publicada no ano de 2018, constatei que a passagem citada nas razões recursais se encontra inserida no contexto de análise da responsabilidade eleitoral pela prática de abuso de poder, não abrangendo a possibilidade jurídico-constitucional da responsabilização penal objetiva no âmbito eleitoral, como se depreende do trecho transcrito a seguir:

Por outro lado, há casos em que o instituto da responsabilidade está comprometido essencialmente com a efetiva proteção dos bens jurídicos tutelados, a saber: lisura e normalidade do pleito, legitimidade dos resultados, sinceridade das eleições, representatividade do eleito. Como exemplo, cite-se o abuso de poder previsto nos artigos 19 e 22, XIV, da Lei de Inelegibilidades, e no artigo 14, §§ 10 e 11, da Constituição Federal. Pouco importa, aí, a perquirição de aspectos psicológicos dos infratores e beneficiários da conduta ilícita. Ademais, nem sempre é necessário haver real ferimento aos bens e interesses protegidos, bastando a potencialidade ou o risco do dano – ainda porque, quando a conduta ilícita visa a influenciar o voto, o segredo de que este é revestido impossibilita averiguar se ela efetiva e realmente o influenciou. Relevante é demonstrar a existência objetiva de fatos denotadores de abuso de poder, de abuso dos meios de comunicação social, corrupção ou fraude. É que, quando presentes, esses eventos comprometem de modo indelével as eleições em si mesmas, porque ferem os princípios e valores que as informam.

Em tais situações, a responsabilidade eleitoral se funda antes no efeito (= lesão ao bem tutelado) que na causa (ação ilícita). Isso porque nessa seara sua missão primordial é salvaguardar a lisura e a normalidade do processo eleitoral, a higidez do pleito, a isonomia das candidaturas, a veraz representatividade. O estado atual da civilização e do modo civilizado de vida em sociedade, a afirmação da democracia e a vivência dos valores constitucionais exigem que a ocupação dos postos político-governamentais se dê de forma lícita, honesta, autêntica, devendo o povo, exercendo sua liberdade, realmente manifestar sua vontade e determinar o rumo de sua história e de sua vida coletiva, ou seja, se autogovernar.

Nesse contexto, a responsabilidade eleitoral harmoniza-se com a contemporânea noção de risco. O discurso do risco liga-se à ideia de colocação em perigo de um bem ou interesse valorizados na sociedade. Impõem-se determinadas condutas (positivas ou negativas) a fim de que um evento lesivo não se apresente. A responsabilidade se funda na realização dessas condutas, notadamente nos indevidos benefícios ou prejuízos que elas proporcionaram (ou teriam proporcionado) a determinada candidatura (Grifei).

(Direito Eleitoral, 14ª ed., São Paulo: Editora Atlas, 2018, pp. 364-365.)

Seguindo idêntico entendimento, a Procuradoria Regional Eleitoral, ao emitir parecer, manifestou-se pelo desprovimento da pretensão recursal, asseverando que (fls. 318 e verso):

Contudo, em que pese não haja dúvidas quanto à materialidade do delito, consubstanciada pelo santinho do candidato Daniel Luiz Bordignon, juntado à fl. 14, e pelos autos da apreensão de fls. 11-13, a participação do candidato, ora réu, ainda que indireta, não restou comprovada.

(…)

Logo, nos termos da fundamentação acima, deve ser mantida a sentença absolutória.

Ressalto que este Regional, ao apreciar o INQ n. 205-26.2017.621.0071 (Relator Des. Eleitoral Jorge Luís Dall'Agnol, julgado na sessão de 19.01.2018) e o INQ n. 200-04.2017.6.21.0071 (Relator Des. Eleitoral João Batista Pinto Silveira, julgado na sessão de 20.02.2018), instaurados em face de MARCO AURÉLIO ALBA, adversário de Daniel Luiz Bordignon no pleito de 2016, para a apuração da prática do delito do art. 39, § 5º, inc. III, da Lei n. 9.504/97, em decorrência da apreensão de propaganda eleitoral em condições análogas às delineadas nestes autos, determinou o arquivamento dos expedientes policiais respectivos, por manifesta ausência de indícios de autoria, viabilizadores do prosseguimento das investigações, como pode ser visto nas cópias dos acórdãos juntados nas fls. 101-104 e 168-169.

Mais recentemente, esta Casa reafirmou seu posicionamento, exigindo prova inconteste da prática do derramamento de “santinhos” pelo acusado para a emissão do juízo penal condenatório, como se extrai das ementas dos arestos a seguir transcritas:

RECURSO CRIMINAL. CRIME DE DIVULGAÇÃO DE PROPAGANDA NO DIA DA ELEIÇÃO. ART. 39, § 5º, INC. III, DA LEI N. 9.504/97. DERRAMAMENTO DE SANTINHOS EM LOCAL DE VOTAÇÃO. DENÚNCIA IMPROCEDENTE. ABSOLVIÇÃO NA ORIGEM. NÃO COMPROVADA A AUTORIA DO DELITO. AUSENTE EVIDÊNCIA DA EFETIVA DISTRIBUIÇÃO DE MATERIAL DE CAMPANHA NO DIA DO PLEITO. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. DESPROVIMENTO.

Irresignação contra a sentença que julgou improcedente o pedido condenatório contido na denúncia, pela prática da conduta prevista no art. 39, § 5º, inc. III, da Lei n. 9.504/97. Acervo probatório insuficiente para evidenciar a autoria do delito, inexistindo nos autos qualquer prova de que o derramamento de santinhos tenha sido praticado pelo recorrido. A jurisprudência desta Corte é firme quanto à necessidade de comprovação da efetiva distribuição de material de campanha eleitoral no dia do pleito. Nesse sentido, a responsabilização do réu com base na mera apreensão do material caracterizaria imputação objetiva, inadmissível na seara penal.

Provimento negado.

(TRE-RS, RC n. 4-97, Relator Des. André Luiz Planella Villarinho, julgado na sessão de 17.12.2019.) (Grifei.)

RECURSO CRIMINAL. ART. 39, § 5º, INC. III, DA LEI N. 9.504/97. DENÚNCIA PROCEDENTE. PRELIMINAR DE NULIDADE REJEITADA. MÉRITO. CONJUNTO PROBATÓRIO INSUFICIENTE. ABSOLVIÇÃO. PROVIMENTO

1. Preliminar rejeitada. Nulidade processual por falta de oferecimento da suspensão condicional do processo. Não preenchidos os requisitos exigidos pelo referido instituto despenalizador. Ademais, fato suscitado apenas na apresentação do recurso, configurando a preclusão da questão.

2. Encontrados santinhos de propaganda eleitoral do recorrido, no dia do pleito, em frente a local de votação. Ausência de flagrante da conduta ou de qualquer prova quanto à autoria ou à participação indireta do réu no fato. Em matéria penal, mesmo os fatos públicos, manifestos, de conhecimento comum, devem ser demonstrados, sobretudo quando versarem sobre a autoria ou a materialidade penal. Acervo probatório baseado apenas em indícios, insuficientes para conduzir a um juízo de condenação.

3. Absolvição. Provimento do recurso. (Grifei)

(TRE-RS, RC n. 130, julgado na sessão de 10.12.2019, Relator(a) DES. ELEITORAL ROBERTO CARVALHO FRAGA.) (Grifei.)

Dessa forma, pelas razões expostas, estou encaminhando meu voto no sentido de conhecer, mas negar provimento ao recurso interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL, mantendo a sentença absolutória, devido à insuficiência probatória da autoria delitiva imputada a DANIEL LUIZ BORDIGNON pela prática do crime de divulgação de propaganda eleitoral no dia do pleito de 2016.

Dispositivo

Diante do exposto, VOTO pelo conhecimento e, no mérito, pelo desprovimento do recurso interposto pelo Ministério Público Eleitoral, mantendo a sentença do juízo da 71ª Zona Eleitoral de Gravataí, que absolveu DANIEL LUIZ BORDIGNON da imputação da prática do crime tipificado no art. 39, § 5º, inc. III, da Lei n. 9.504/97, por ausência de prova da autoria delitiva, com fundamento no art. 386, inc. V, do CPP, nos termos da fundamentação.