RE - 37523 - Sessão: 05/10/2018 às 16:00

Senhor Presidente, eminentes colegas.

Trata-se de Ação de Investigação Judicial Eleitoral, fundada em abuso de poder, na qual se pretende a condenação dos representados nas penas do art. 22, inc. XIV, da LC n. 64/90. Narra a inicial que terceiro não representado, Liomar Borges dos Santos, compareceu a um local em que residem cerca de 100 famílias de baixa renda e realizou discurso eleitoral em benefício dos candidatos à majoritária.

O nobre relator, seguindo parecer ministerial, votou pela manutenção da sentença que reconheceu ter havido decadência da ação porque foi promovida sem a inclusão de Liomar Borges no polo passivo da demanda, na condição de litisconsorte passivo necessário, de acordo com a orientação jurisprudencial dominante.

Pedi vista dos autos, pois inúmeras questões me intrigavam: a caracterização do litisconsórcio passivo necessário; a extinção da ação com resolução de mérito (decadência) em razão de irregularidade de natureza processual; e a possibilidade de ser extinto o feito sem que a parte fosse instada a corrigir a falha, como é a determinação adotada pelo novo CPC.

O litisconsórcio passivo necessário caracteriza-se ou por uma imposição legal ou pela natureza unitária da relação jurídica material. Nesse sentido é a lição de Ovídio Baptista da Silva:

Devemos, portanto, conceituar o litisconsórcio necessário como aquele obrigatoriamente formado, seja porque alguma disposição de lei assim o imponha, seja porque a natureza da relação de direito material torne impossível o tratamento da situação litigiosa sem a presença de todos os interessados no processo, formando litisconsórcio, caso em que ele se torna indispensável (Curso de Processo Civil, vol 1, 7ªed., 2005, p. 247).

Todavia, sem que haja previsão legal exigindo o litisconsórcio e sem que a solução do caso deva ser resolvida de forma idêntica para os representados – que recebem penas individualmente –, o egrégio Tribunal Superior Eleitoral passou a exigir a formação de litisconsórcio passivo necessário, nas ações fundadas em condutas vedadas aos agentes públicos, entre o agente público responsável pela ação ilícita e o candidato beneficiado por esse ato. Entendeu aquela egrégia Corte que, nesses casos, o agente público deveria integrar a lide, pois (a) estava sujeito a sanções legais, como multa, (b) somente ele poderia cumprir eventual ordem de suspensão das condutas vedadas, (c) apenas o responsável poderia defender a licitude do ato.

Transcrevo os trechos relevantes do precedente, RO n. 169677, julgado em 29.11.2011, de relatoria do Min. Arnaldo Versiani:

Duas, portanto, são as categorias de réus que devem necessariamente integrar o polo passivo da representação por conduta vedada: a do agente público responsável e a do beneficiário.

Penso que, ao dispor que estão sujeitos às sanções legais tanto os responsáveis pela conduta vedada, quanto os candidatos, partidos ou coligações beneficiados, a lei criou a obrigatoriedade de que ambas as categorias figurem na relação processual em litisconsórcio passivo necessário.

Sem a citação do agente público, inclusive, ficaria sem sentido a determinação, por exemplo, para que fosse suspensa a conduta vedada, se o responsável por essa conduta não integrar a relação processual.

Aliás, em se tratando de conduta vedada, não se consegue imaginar hipótese em que o agente público por ela responsável não seja citado para integrar a lide, pois ele, na verdade, é o principal representado, autor da ilicitude, sendo os demais, quais sejam, os candidatos, partidos ou coligações, beneficiários da conduta, mas não responsáveis por eia, salvo o caso, ainda por exemplo, de que o eventual candidato seja o próprio agente público responsável pela conduta vedada, o que não é a hipótese dos autos.

[...]

Nessas circunstâncias, afigura-se inadmissível a propositura da representação apenas contra os eventuais beneficiários, e não também contra o agente público responsável pela conduta vedada, porque sem a citação desse agente público não se pode nem mesmo julgar se a conduta era vedada, ou não, à falta de defesa apresentada pelo que seria o respectivo responsável.

Ademais, ficaria o beneficiário na estranha posição de ter que defender a conduta, ou sustentar não ser ela vedada, apesar de não ser o responsável pela sua prática.

Veja-se que o precedente se formou em razão de uma dualidade de situações: de um lado o candidato, que é mero beneficiário e integra a lide unicamente porque irá sofrer os efeitos da decisão; e, de outro, o agente público responsável pelo ato ilícito que favoreceu o candidato.

O próprio relator tem o cuidado de destacar que a exigência de litisconsórcio é ressalvada no caso em “que o eventual candidato seja o próprio agente público responsável pela conduta vedada, o que não é a hipótese dos autos”.

Nas eleições de 2016, o egrégio Tribunal Superior Eleitoral estendeu a exigência de litisconsórcio passivo necessário para as ações fundadas em abuso de poder político, extraindo-se da ementa do precedente a seguinte passagem:

ELEIÇÕES 2012. PREFEITO. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO. ABUSO DO PODER POLÍTICO E ECONÔMICO. LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO. CANDIDATO BENEFICIADO. RESPONSAVEL. AGENTE PUBLICO JURISPRUDÊNCIA. ALTERAÇÃO. SEGURANÇA JURÍDICA.

[...]

Firma-se o entendimento, a ser aplicado a partir das Eleições de 2016, no sentido da obrigatoriedade do litisconsórcio passivo nas ações de investigação judicial eleitoral que apontem a prática de abuso do poder político, as quais devem ser propostas contra os candidatos beneficiados e também contra os agentes públicos envolvidos nos fatos ou nas omissões a serem apurados.

[...]

(REspe 843-56/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJe de 2.9.2016.)

Embora reconheça que o responsável pelo ato abusivo pode sofrer a sanção de inelegibilidade prevista no art. 22, inc. XIV, da Lei Complementar n. 64/90 para justificar sua inclusão na lide, este precedente também é formado a partir de uma situação fática na qual o candidato beneficiado não participou da conduta ilícita, como destaca o Ministro João Otávio de Noronha em seu voto:

Conforme relatado, a procedência dos pedidos na presente ação de investigação judicial eleitoral teve como fundamento a suposta concessão de gratificações a inúmeros servidores públicos municipais em troca de votos mediante atuação direta do secretário de fazenda de Jampruca/MG (sem participação, portanto, do recorrente), motivo pelo qual se aduziu que o efetivo autor da conduta deveria ter sido citado para integrar a lide na qualidade de litisconsorte passivo necessário. (grifos no original)

Também o voto do redator para o acórdão, Ministro Henrique Neves, destacou que apenas se cogita de litisconsórcio necessário quando o candidato é mero beneficiário de ato praticado de responsabilidade de terceiro:

É evidente que a não inclusão de quem foi responsável pela prática de determinado ato no polo passivo da demanda caracteriza situação que dificulta a defesa daqueles que são apontados apenas como beneficiários. Por óbvio, o agente que praticou o ato tem maiores condições não apenas de defender a sua legalidade, mas principalmente de demonstrar as circunstâncias em que os fatos ocorreram, trazendo, inclusive, eventuais justificativas.

Nesse aspecto, para a correta aplicação do direito, é necessário privilegiar a verdade material, sem se descuidar do devido processo legal e da ampla defesa, com todos os recursos que lhe são inerentes.

Em outras palavras, se a acusação formulada contra determinado candidato é no sentido de que ele foi beneficiado por omissão incorrida ou ato praticado por terceiro, e havendo - como há - consequências jurídicas previstas na legislação que podem atingir quem praticou o ato, tal terceiro deve ser obrigatoriamente incluído na lide - independentemente do tipo de ação - para que possa se defender e, se for o caso, arcar com as consequências de eventual condenação.

Fica claro, pela passagem acima transcrita, que o Ministro Henrique Neves se refere à situação na qual o candidato integra a representação unicamente na condição de beneficiado, sem vínculo de responsabilidade com o ato ilícito, tanto que sua preocupação é com a verdade material e a ampla defesa, a serem obtidas com a presença nos autos de quem praticou o ato.

Temos então a formação de uma jurisprudência que impõe o litisconsórcio passivo necessário não com fundamento na unitariedade da relação de direito material, nem por estipulação legal, contrariando a sistemática do litisconsórcio adotada pela doutrina e jurisprudência consagradas. Aqui o litisconsórcio, em face dessa construção jurisprudencial, está sendo exigido pela facilitação da prova ou pela mera possibilidade de sancionar o terceiro – visto que é possível, em tese, aplicar-lhe somente a inelegibilidade –, sem que tal penalidade deva ser destinada obrigatoriamente aos dois representados. Não se vê, com o devido respeito, nada que justifique a necessariedade do litisconsórcio. Imperioso reconhecer, portanto, que se trata de uma exceção e, como tal, deve ser compreendida restritivamente.

Some-se a isso o fato de que tal jurisprudência se formou a partir da análise de casos nos quais o candidato era apontado como mero beneficiário, sem responsabilidade sobre as condutas ilícitas ou abusivas, circunstância fática que precisa ser observada na aplicação do precedente como fonte do direito, como se extrai do art. 926, § 2º, do CPC, segundo o qual, “Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação”.

O egrégio Tribunal Superior Eleitoral distingue as hipóteses nas quais o candidato é mero beneficiário, daquelas em que atua com responsabilidade sobre a conduta praticada juntamente com os demais agentes. É o que se extrai das passagens a seguir transcritas de decisões monocráticas proferidas pelos Ministros Luiz Fux e Rosa Weber:

“Ainda que o recorrente alegue que haja outros agentes públicos envolvidos, não é necessário que toda a cadeia de autores seja chamada para compor a lide, notadamente porque o recorrido figurava como autoridade máxima do Poder Executivo local. Nesse diapasão, os precedentes invocados não se amoldam ao caso concreto, porquanto se referem à representação proposta contra beneficiário do ato, sem a citação do agente público responsável pela prática da conduta vedada” . (RESPE - Recurso Especial Eleitoral nº 47762, Decisão monocrática de 11/2/2016, Relator(a): Min. luiz fux, Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico - 06/04/2016 - Página 11-15) 

 

"‘há que se distinguir as situações em que o agente público que executa a conduta vedada atua com independência em relação ao candidato beneficiário, fazendo-se obrigatória a formação do litisconsórcio, e aquelas em que ele atua como simples mandatário, nas quais o litisconsórcio não é indispensável à validade do processo’ (AgR-REspe nº 311-08/PR, Relator Min. João Otávio de Noronha, DJe de 16.9.2014).” (RESPE - Recurso Especial Eleitoral nº 53121, Decisão monocrática de 1/2/2018, Relator(a): Min. rosa maria weber candiota da rosa, Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico - 22/02/2018 - Página 94-96)

Na hipótese dos autos, a petição inicial atribui responsabilidade aos gestores públicos que integram o polo passivo da ação, afirmando expressamente que o terceiro, Liomar Borges dos Santos, agiu a mando do representado. Reproduzo trechos da peça processual:

Pois, agora, os representados protagonizaram, juntamente com um de seus mais dedicados apoiadores, um episódio que demonstra, com muita clareza, até que ponto vai a vontade de influenciar os eleitores e desequilibrar o pleito, em detrimento dos demais candidatos.

Sem nenhum prurido ético, o Sr. LIOMAR BORGES, que foi candidato a vereador na coligação dos representados, compareceu ao local conhecido com Rua da Barca, onde vivem cerca de 100 famílias em precárias condições, e ali realizou um dos mais sórdidos discursos com finalidade eleitoral que alguém poderia proferir.

[…]

De outro lado, resta evidenciado, não só o pleno conhecimento dos fatos, por parte do prefeito JAIRO JORGE, como também é o responsável pela atuação de LIOMAR BORGES, junto àquela comunidade. Igualmente, não há dúvida de que a candidata BETH COLOMBO tem ciência do ocorrido, de vez que é pública e notória a sua parceria com o prefeito em todos os atos de propaganda, desde o início da campanha eleitoral, é sabido de toda a sociedade canoense o estreito vínculo existente entre os dois.

[…]

Ora, diante do anunciado temor de BETH, nada mais óbvio que ela tem conhecimento da tentativa de atrair os moradores para sua candidatura, e que isto seja encaminhado através do prefeito e de seu emissário. (Sem grifos no original.)

A tese de que Liomar agiu a mando dos representados é novamente defendida na réplica:

Sendo assim, incabível a discussão de passar a integrar o polo passivo desta ação o Sr. LIOMAR BORGES, que agiu em nome do Prefeito e com a intenção clara de beneficiar os candidatos à eleição majoritária. 

[…]

As referências ao processo 008/1.16.00010435-0 em nada aproveitam à tese da defesa, pois apenas comprovam que o Prefeito detinha, em suas mãos, todo o poder para fazer cumprir a decisão judicial, o que se ajusta às palavras de LIOMAR BORGES, quando alertou os moradores que seguraria a ordem judicial de retirada do local, caso colocassem as placas de propaganda BETH COLOMBO, conforme gravação dos autos. 

Assim também na peça recursal:

O Sr. LIOMAR BORGES simplesmente age a mando dos ora representados, conforme declarações do mesmo, em uma atitude que pode se dizer de “capanga”.

 

Vê-se claramente que a ação atribui responsabilidade pelo fato abusivo aos representados, diferentemente do que ocorreu nos precedentes acima citados, que cunharam a exigência de litisconsórcio passivo necessário.

A conclusão a respeito da efetiva responsabilidade dos representados pelo fato abusivo narrado na inicial somente será possível após a realização da instrução do feito, com a oitiva das testemunhas arroladas pelos autores e a produção das demais provas cabíveis, as quais poderão corroborar ou não os fatos tal como alegados na inicial, sendo certo que o ônus da prova sobre a responsabilidade dos representados recai sobre os autores da ação, pois constitutivo de seu direito, nos termos do art. 373, inc. I, do CPC.

A extinção precoce da ação com base na evidência de que o fato foi de inteira responsabilidade do terceiro somente porque os representados não estavam presentes no momento do ato, quando a inicial afirma expressamente que ele agiu por determinação destes, sem viabilizar a produção de provas pelo autor, nega-lhe o direito fundamental de ação assegurado no art. 5º, inc. XXXV, da CF, e ainda fere o princípio da ampla defesa consagrado no art. 5º, inc. LV, direitos fundamentais que se constituem na coluna vertebral da Carta Cidadã de 1988.

Assim, considerando que a inicial imputa aos representados a responsabilidade pelo ato, entendo ser indevida a extinção da ação por ausência da formação de litisconsórcio passivo necessário, uma vez que, para se concluir pela indispensabilidade do litisconsórcio, na espécie, é necessário, antes, oportunizar à parte que faça a prova quanto aos pressupostos em que se funda a construção jurisprudencial, conforme acima já examinado.

Estou encaminhando o voto, portanto, no sentido de desconstituir a sentença, retornando a causa ao primeiro grau para a devida instrução e apuração dos fatos narrados na petição inicial.

Nesse mesmo sentido, aliás, já se manifestou este Tribunal em caso análogo, como se extrai da seguinte ementa:

RECURSO. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ABUSO DE PODER ECONÔMICO E POLÍTICO. PEDIDO DE CASSAÇÃO DE DIPLOMA. LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO. DESNECESSIDADE. CANDIDATO BENEFICIÁRIO RESPONSÁVEL PELA CONDUTA ILÍCITA.

Nas ações por abuso de poder econômico ou político é obrigatória a formação de litisconsórcio passivo necessário entre o agente público e o candidato beneficiário quando este não for responsável pelo ato ilícito. Nas situações em que o beneficiário é o próprio responsável pela conduta é desnecessária a inclusão na demanda de todos os demais agentes que participaram da conduta.

Representado prefeito, a quem é imputada a responsabilidade pelas condutas ilícitas praticadas no âmbito da prefeitura. Desnecessária a citação dos demais agentes públicos eventualmente envolvidos no fato para integrarem a ação.

Reforma da decisão de extinção, com retorno dos autos à origem para regular processamento do feito.

Provimento do recurso.

(RE 36-98, Rel. Des. Eleitoral Miguel Antônio Silveira Ramos.)

Dessa forma, sem comprometer-me com o acerto da jurisprudência formada acerca do tema, pois muitas questões ainda me causam inquietação – e sobre elas ainda pretendo debruçar-me com mais vagar –, entendo que, no caso concreto, e diante dos precedentes citados, não se pode, aprioristicamente, dizer que se está diante de litisconsórcio passivo necessário, pois a inicial imputa responsabilidade aos representados pelo ato abusivo, por sua ciência e autorização. Provada essa alegação, não vejo, antecipo, a configuração da necessariedade da modalidade litisconsorcial criada a partir de precedentes.

 

DIANTE DO EXPOSTO, pedindo redobradas vênias ao ilustre relator, voto pelo provimento do recurso, a fim de determinar o retorno dos autos à origem para sua regular instrução.

 

Desa. Eleitoral Marilene Bonzanini:

Acompanho o relator.

 

Des. Eleitoral Luciano André Losekann:

Sr. Presidente, voto com o relator.

 

Des. Eleitoral Eduardo Augusto Dias Bainy: 

Com a vênia do relator, acompanho a divergência.

 

Des. Eleitoral João Batista Pinto Silveira:

Acompanho o relator.