RE - 4920 - Sessão: 21/01/2019 às 17:00

RELATÓRIO

Trata-se de recurso interposto por MARCELO BOBSIN DICKSEN contra a decisão que julgou procedente a representação por doação acima do limite estabelecido no art. 23, § 1º, da Lei n. 9.504/97, ajuizada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL, condenando-o à multa de 50% sobre o excesso doado.

Em suas razões recursais (fls. 80-83v.), sustenta ter havido a decadência da ação, pois ajuizada sem a observância do prazo de 180 dias reconhecido pela jurisprudência. De igual modo, teria ocorrido a decadência em virtude do envio de informações pela Fazenda Pública depois do prazo regulamentar estabelecido. Requer o provimento do recurso, para que seja extinto o feito com julgamento do mérito em razão da decadência.

Com as contrarrazões, nesta instância, os autos foram encaminhados com vista ao Ministério Público Eleitoral, que se manifestou pela anulação da sentença e, no mérito, pelo desprovimento do recurso (fls. 98-105).

É o breve relatório.

VOTO

Preliminar

O Ministério Público Eleitoral suscita preliminar de nulidade da sentença, em razão da indevida aplicação da Lei n. 13.488/17 a ilícito ocorrido antes de sua vigência.

Cuida-se de processo por doação acima do limite legal, realizada no pleito de 2016. O juízo de primeiro grau, ao reconhecer o excesso da doação em R$ 4.130,00, impôs ao representado multa de 50% sobre o montante irregular, com fundamento no art. 23, § 3º, da Lei n. 9.504/96 com a redação a ele conferida pela Lei n. 13.488/2017, posterior à data do fato.

Aduz o Ministério Público que a sentença é nula, pois aplicou ao caso lei que não estava vigente ao tempo da irregularidade, que comportava sancionamento entre 5 e 10 vezes o valor do excesso doado. Argumenta que a aplicação de penalidade indevida é matéria de ordem pública, a qual não está sujeita à preclusão.

A ordem pública, a qualificar uma determinada matéria, é conceito jurídico indeterminado e alude a questões de suma importância ao sistema jurídico, que ultrapassam o mero interesse das partes do processo e alcançam tal relevância no ordenamento que podem ser apreciadas de ofício pelo juiz, independente de provação dos sujeitos parciais do processo, e estão imunes à preclusão.

O ponto fundamental é fixar quais matérias integram o conceito de “ordem pública”, as quais devem ser buscadas dentro do próprio sistema jurídico, de acordo com o que o próprio ordenamento considera ordem pública, a ponto de diferenciá-las das demais questões jurídicas.

Nessa linha, as questões de ordem pública guardam relação com o princípio dispositivo e os limites da atividade jurisdicional, com reflexos no efeito devolutivo dos recursos.

Isso porque a atividade jurisdicional é estruturada sobre a ideia de inércia da juridição, exatamente como mecanismo de garantia da necessária imparcialidade do juiz. Nas palavras de Ruy Portanova, o princípio da inércia da jurisdição justifica-se pela “preservação da imparcialidade, já que, se ao juiz fosse dado iniciar o processo, ele estaria psicologicamente comprometido com a solução final” (Princípios do Processo Civil, 7ª ed., 2008, p. 71).

Lembra o autor que é exatamente essa uma das características que distingue a função jurisdicional das demais atividades, executiva e legislativa, do Estado, e, por ser própria da atividade jurisdicional, “aplica-se para os casos de jurisdição contenciosa ou voluntária. Por igual, aplica-se a todos os processos, tanto de conhecimento, como cautelar ou de execução” (p. 71).

Referido autor ensina que, ao exercer a liberdade de movimentar o processo, os sujeitos parciais da relação processual também impõem limites à atuação jurisdicional em relação aos fatos e ao pedido da prestação jurisdicional (p. 70):

Além de ter a liberdade de movimentar e de não movimentar o Poder Judiciário, o cidadão, optando por movimentá-lo, também tem a liberdade de impor alguns limites na atuação do julgador qu vai dirigir o processo. Estes limites são:

a) em relação aos fatos que comporão a demanda – princípio dispositivo;

b) quanto ao pedido da prestação jurisdicional pretendida – princípio da adstrição do juiz ao pedido da parte.

Estabelecidos os limites da atuação jurisdicional pelos fatos e pelo pedido, elementos atinentes ao mérito da ação, somente em casos excepcionais, autorizados pelo próprio ordenamento jurídico, poderá o juiz pronunciar-se de ofício, tal como ocorre em relação às questões preliminares (337, § 5º, do CPC), os pressupostos processuais, litispendência, coisa julgada e condições da ação (art. 485, § 3º, do CPC) e a prescrição e decadência (art. 487, II, do CPC).

Somente nos casos excepcionados pelo próprio ordenamento a atuação de ofício do juiz não acarretará ofensa ao princípio dispositivo ou à regra da congruência. Nesse sentido, leciona Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery:

A regra da congruência (ou correlação) entre pedido e sentença (CPC, 128 e 460) é decorrência do princípio dispositivo. Quando o juiz tiver de decidir independentemente de pedido da parte ou interessado, o que ocorre, por exemplo, com as matérias de ordem pública, não incide a regra da congruência. Isso quer significar que não haverá julgamento extra, infra ou ultra petita quando o juiz ou tribunal pronunciar-se de ofício sobre referidas matérias de ordem pública. (Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, in Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante, 10ª ed., Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2007, pág. 669.)

Fora dessas hipóteses, quase que exclusivamente processuais, a atuação de ofício do juiz invariavelmente ofenderá o princípio dispositivo e o dever de congruência, com riscos a um dos pilares de sustentação da atividade jurisdicional: a imparcialidade do juiz.

Nesse sentido já se manifestou o egrégio Superior Tribunal de Justiça em recente decisão:

PROCESSUAL CIVIL, CIVIL E CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO COLETIVA DE CONSUMO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 211/STJ. DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. CONFIGURAÇÃO. ÓRGÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DESPROVIDO DE PERSONALIDADE JURÍDICA PRÓPRIA.

LEGITIMIDADE ATIVA. RECONHECIMENTO. ART. 82, III, DO CDC. EFICÁCIA PROSPECTIVA DA SENTENÇA. DEFICIÊNCIA DA FUNDAMENTAÇÃO RECURSAL.

SÚMULA 284/STF. LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO. ART. 47 DO CPC/73.

DECISÃO UNIFORME. DESNECESSIDADE. ILEGITIMIDADE PASSIVA. GRUPO SOCIETÁRIO. DESCONSIDERAÇÃO. ART. 28, § 2º, DO CDC. PRESSUPOSTOS.

INOCORRÊNCIA. PROVA PERICIAL. INDEFERIMENTO. CERCEAMENTO DE DEFESA.

REEXAME DE FATOS E PROVAS. SÚMULA 7/STJ. PRINCÍPIO DA ADISTRIÇÃO AO PEDIDO. CONGRUÊNCIA. INOBERVÂNCIA. SENTENÇA ALÉM DO PEDIDO.

RESTRIÇÃO. MÉRITO. ARRENDAMENTO MERCANTIL. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. SIMILITUDE FÁTICA. AUSÊNCIA. FUNDAMENTO DO ACÓRDÃO NÃO IMPUGNADO. SÚMULA 283/STF. PERDA DO BEM, SEM CULPA DO ARRENDATÁRIO. BEM SEGURADO. PARCELAS VINCENDAS. COBRANÇA.

IMPOSSIBILIDADE. ENRIQUECIMENTO ILÍCITO. CONFIGURAÇÃO. ART. 884 DO CC/02. LIMITES TERRITORIAIS DA SENTENÇA. EFICÁCIA EM TODO O TERRITÓRIO NACIONAL. ART. 103 DO CDC.

[...]

12. Agindo fora dos limites definidos pelas partes e sem estar amparado em permissão legal que o autorize examinar questões de ofício, o juiz viola o princípio da congruência (CPC, arts. 128 e 460), o que ocorreu na hipótese em exame, com a apreciação de hipótese de perda do bem não garantido pelo contrato de seguro, não versada na causa de pedir contida na inicial, configuando julgamento ultra petita (além do pedido).

13. Ocorrendo julgamento para além do pedido (ultra petita), não há necessidade de se invalidar o ato jurisdicional, bastando, para que haja a readequação ao princípio da congruência, seja o comando reduzido ao âmbito do pedido formulado pelas partes, na presente hipótese, ao exame da perda do bem arrendado que foi garantido por contrato de seguro.

[...] (STJ, REsp 1658568/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 16.10.2018, DJe 18.10.2018.)

Tendo presentes essas premissas, verifica-se que a ação tem por objeto o sancionamento pecuniário do representado e como causa de pedir a realização de doação de campanha acima do limite legal, por ofensa ao art. 23 da Lei n. 9.504/97.

Qualquer matéria atinente à compreensão dos fatos, ao valor probatório dos documentos, à legislação incidente, e sua adequada interpretação, diz respeito ao mérito da causa, e eventual aplicação inadequada de um desses elementos implica error in judicando. No dizer de Nelson Nery Jr, trata-se de “erro pelo qual o juiz desconhece efeitos jurídicos que a lei determina para a espécia em julgamento ou, ao contrário, reconhece existentes efeitos jurídicos diversos daqueles” (Princípios fundamentais: Teoria Geral dos Recursos, 5ª ed., 2000, p. 219-220).

A definição da lei aplicável ao ilícito é matéria ligada ao mérito do processo, diretamente relacionada com o julgamento do pedido e da causa de pedir da ação. Ao determinar a incidência de lei superveniente ao fato, o juiz equivocou-se sobre a apreciação substancial da causa, atribuindo aos fatos efeitos jurídicos distintos daqueles que este Tribunal atribui.

Trata-se de inequívoco error in judicando, a ser corrigido por meio do pertinente recurso da parte autora. Adentrar, de ofício, na análise da correção do juízo de mérito da causa sem recurso específico da parte interessada importa a subversão do princípio da inércia judicial, fragilizando assim a garantia de imparcialidade do juiz, que passa a agir como sujeito parcial do processo, modificando conclusões da sentença com a qual não concorda, independente da insurgência dos próprios destinatários de sua atividade.

A imposição de respeito ao efeito devolutivo do recurso é expressão do princípio dispositivo na esfera recursal e assegura que também a instância revisora ficará adstrita à iniciativa das partes, preservando assim a imparcialidade da atividade jurisdicional.

O respeito aos estritos termos do efeito devolutivo guarda relação também com o princípio da vedação de reformatio in pejus, o qual, embora não goze de previsão expressa no ordenamento, possui íntima relação com o devido processo legal, como leciona Araken de Assis:

Funda-se a proibição da reformatio in pejus em dois pilares: de um lado o princípio dispositivo, tão intenso no grau recursal quanto na formação do processo na origem, e neste particular, deita raízes no direito fundamental ao devido processo; e de outro, o interesse exigido para impugnar decisões judiciais (Manual dos Recursos, 5ªed., 2013, p. 119)

Dessa forma, não havendo impugnação do sujeito interessado da relação processual, no caso o Ministério Público Eleitoral, não pode o Tribunal rever a decisão no ponto. Apenas excepcionalmente essa revisão de ofício é admitida, nas hipóteses de Reexame Necessário, que nem de recurso se trata, mas de condição de eficácia da decisão, o que não é previsto no processo judicial eleitoral.

Ignorar os limites impostos pelo princípio dispositivo, o efeito devolutivo do recurso e a vedação de reformatio in pejus levaria ao desvirtuamento do sistema recursal, pois o Tribunal criaria uma espécie de Reexame Necessário sem previsão legal, e da própria estrutura da atividade jurisdicional, tendo em vista que admitiria a revisão de ofício dos atos do juiz singular, a exemplo do que faz o agente administrativo.

Portanto, a aplicação da nova legislação a fatos passados, tal como fez a sentença, é típica matéria de mérito, a qual somente podia ser revista por este Tribunal diante da oportuna e tempestiva impugnação do Ministério Público.

O caso não se confunde com hipóteses de error in procedendo nem de ofensa à ordem pública a justificar a nulidade da decisão, e acolher a pretensão ministerial importaria ofensa ao princípio dispositivo, da vedação de reformatio in pejus e da garantia constitucional ao devido processo legal.

Dessa forma, afasto a preliminar de nulidade da sentença suscitada pelo Ministério Público.

Mérito

A parte, no mérito recursal, suscita unicamente a decadência da ação por dois motivos distintos.

a) Inobservância do Prazo Jurisprudencial de 180 Dias

Argumenta o recorrente que não foi observado o prazo de 180 dias para o ajuizamento da ação por doação acima do limite, tal como restou estabelecido jurisprudencialmente na ausência de previsão legal sobre o tema.

Com o advento da Lei n. 13.165/15, acrescentou-se o art. 24-C, § 3º, à Lei n. 9.504/97, com a previsão de que tais ações seriam propostas até o final do exercício financeiro seguinte à eleição:

Art. 24-C.  O limite de doação previsto no § 1o do art. 23 será apurado anualmente pelo Tribunal Superior Eleitoral e pela Secretaria da Receita Federal do Brasil.

§ 3o  A Secretaria da Receita Federal do Brasil fará o cruzamento dos valores doados com os rendimentos da pessoa física e, apurando indício de excesso, comunicará o fato, até 30 de julho do ano seguinte ao da apuração, ao Ministério Público Eleitoral, que poderá, até o final do exercício financeiro, apresentar representação com vistas à aplicação da penalidade prevista no art. 23 e de outras sanções que julgar cabíveis.   (Incluído pela Lei n. 13.165, de 2015)

A partir de 2015, o prazo para ajuizamento da ação passou a ser, por expressa previsão legal, o último dia do ano seguinte ao da eleição. Para as eleições de 2016, a regra foi explicitada no art. 22, § 1º, da Resolução TSE n. 23462/15:

art. 22.

§ 1º. As representações de que trata o caput poderão ser ajuizadas atá a data da diplomação, exceto as do art. 30-A e 23 da Lei n. 9.504/97, que poderão ser propostas, respectivamente, no prazo de quinze dias e até 31 de dezembro de 2017.

Tendo em vista que a inicial foi protocolizada no dia 11.12.2017, não há que se falar em decadência da ação, pois ajuizada antes de seu derradeiro prazo: 31 de dezembro de 2017.

b) Envio Tardio dos Documentos pela Receita Federal

Argumenta também o recorrente a decadência da ação com fundamento no envio tardio das informações pela Receita Federal para o Ministério Público Eleitoral.

O art. 24-C, § 3º, da Lei n. 9.504/97 estabelece que a Receita Federal enviará a notícia de indícios de doações em excesso ao Ministério Público Eleitoral até o dia 30 de junho do ano seguinte ao do pleito:

Art. 24-C.  O limite de doação previsto no § 1o do art. 23 será apurado anualmente pelo Tribunal Superior Eleitoral e pela Secretaria da Receita Federal do Brasil.

§ 3o  A Secretaria da Receita Federal do Brasil fará o cruzamento dos valores doados com os rendimentos da pessoa física e, apurando indício de excesso, comunicará o fato, até 30 de julho do ano seguinte ao da apuração, ao Ministério Público Eleitoral, que poderá, até o final do exercício financeiro, apresentar representação com vistas à aplicação da penalidade prevista no art. 23 e de outras sanções que julgar cabíveis.   (Incluído pela Lei nº 13.165, de 2015)

Todavia, na hipótese, as informações foram encaminhadas ao Ministério Público somente na data de 14 de outubro de 2017, o que geraria a decadência da ação, nos dizeres do recorrente.

Não prospera a alegação.

O prazo acima estabelecido visa estruturar procedimento administrativo para organizar a atividade dos diferentes órgãos envolvidos na apuração do ilícito e permitir a atuação adequada de cada um dentro de prazo hábil ao ajuizamento da ação.

Trata-se de prazo estabelecido no interesse da atividade administrativa, não havendo que se falar em preclusão do ato pelo decurso do prazo e tampouco em direito subjetivo da parte em ver respeitados os marcos temporais.

Ajuizada a ação dentro do prazo legal para tanto, eventuais atrasos na comunicação entre os órgãos administrativos não prejudicam a regularidade do processo.

Assim, também não se vislumbra decadência por esse motivo, devendo ser negado provimento ao recurso.

c) Aplicação de Ofício da Pena Prevista ao Tempo dos Fatos

O Ministério Público Eleitoral, em parecer, pretende seja aplicada, de ofício, a penalidade prevista ao tempo do fato no caso concreto, qual seja, multa de 5 a 10 vezes a quantia doada em excesso.

Não merece prosperar a pretensão ministerial, pelos mesmos fundamentos empregados na análise da preliminar de nulidade da sentença.

Tratando-se de error in judicando, e não havendo recurso do autor da ação, é vedado a esta Corte analisar a matéria, pois não lhe foi devolvida pelo pertinente recurso, nem se confunde com questão de ordem pública, como já analisado.

A decisão monocrática proferida nos autos do RESPE n. 422-29, invocada como precedente, não guarda semelhança com o caso dos autos. Aqui, houve a fixação de multa com base em legislação superveniente ao fato, contrariando orientação deste Tribunal. No precedente invocado, houve absoluta omissão da sentença em determinar o recolhimento de valores ao Erário, como consequência da desaprovação das contas.

Somente seria possível pensar em similitude de fatos se a sentença, após julgar procedente a ação, nada referisse quanto à penalidade aplicável, o que não é o caso dos autos.

DIANTE DO EXPOSTO, afastada a preliminar, voto pelo desprovimento do recurso.