RC - 196 - Sessão: 17/08/2018 às 17:00

RELATÓRIO

Trata-se de recurso criminal interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL contra decisão do Juízo Eleitoral da 54ª Zona, que rejeitou, por ausência de justa causa, com fundamento no art. 395, inc. III, do CPP, a denúncia oferecida contra KELLY NARDES LUIZ, considerando não consumada a imputação de inscrição fraudulenta de eleitor prevista no art. 289 do Código Eleitoral.

Em suas razões recursais, o MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL sustenta que o crime de inscrição fraudulenta é formal, dispensando o deferimento do registro eleitoral. Invoca jurisprudência. Requer seja recebida a denúncia (fls. 87-92v.).

Em contrarrazões, a acusada alega não ter sido perfectibilizada a conduta de inscrição fraudulenta de eleitor, uma vez que apenas foi realizado o requerimento de transferência de domicílio eleitoral, o qual não foi processado. Postula a manutenção da decisão recorrida (fls. 95-102).

A Procuradoria Regional Eleitoral manifestou-se pelo provimento do recurso (fls. 107-111).

É o relatório.

 

VOTO

O recurso é regular, tempestivo e comporta conhecimento.

No mérito, a denúncia imputou à acusada a prática do seguinte fato (fls. 75-76):

No dia 03 de maio de 2016, por volta das 08 horas, nas dependências da 54ª Zona Eleitoral, em Soledade/RS, a denunciada KELLY NARDES LUIZ inscreveu-se fraudulentamente eleitora, ao realizar transferência de domicílio eleitoral para o município de Mormaço, apresentando como comprovante de residência uma guia de arrecadação municipal não quitada, emitida pela Prefeitura Municipal de Mormaço (fl. 09 do I.P.).

Na oportunidade, o cartório eleitoral, suspeitando da veracidade da informação submeteu a inscrição ao Juízo Eleitoral, tendo este determinado a expedição de mandado de diligência para o endereço informado pela denunciada. Em cumprimento ao despacho, Oficial de Justiça não localizou a denunciada na cidade, tendo verificado, ainda, que não havia cadastro vinculando ao número de inscrição, nem ao nome informado no comprovante de endereço apresentado.

Ouvida em sede policial, a denunciada não conseguiu demonstrar tenha realmente residido no município de Mormaço ou que possuísse algum vínculo com a cidade, mesmo que por curtíssimo tempo, caracterizando a fraude na inscrição eleitoral. (Grifos no original.)

De acordo com a acusação, a conduta estaria tipificada no art. 289 do Código Eleitoral, cujo teor segue:

art. 289. Inscrever-se fraudulentamente eleitor.

Pena - Reclusão até cinco anos e pagamento de cinco a 15 dias-multa.

Ao rejeitar a denúncia por ausência de justa causa, o juízo a quo ponderou que o delito não teria se consumado em razão do indeferimento do pedido de transferência de domicílio. Além disso, apontou que os documentos apresentados quando do comparecimento da eleitora ao Cartório Eleitoral evidenciam a absoluta ineficácia do meio empregado, tornando impossível a consumação do crime imputado.

Transcrevo o seguinte excerto da decisão recorrida (fls. 77-83):

3,- O delito do artigo 289 do CE ("inscrever-se fraudulentamente") é de natureza material. Admite, assim, o "conatus". Contudo, para a perfeita incidência típica por intermédio da regra integrativa do artigo 14, II, do CP, numa perspectiva material ou fenomênica, não se prescinde, ao menos, de relativa idoneidade do meio (art. 17 do CP).

4,- De fato. Os documentos apresentados quando do requerimento eleitoral (fls. 08-09), uma vez que visivelmente inidôneos, logo autorizaram diligência instrutória oficiosa, inviabilizando, portanto, qualquer possibilidade material de consumação (fl. 10), em se admitindo a imputada fraude.

5,- Com efeito. O crime impossível ocorre “quando inexiste o objeto material sobre o qual deveria recair a conduta, ou quando, pela sua situação ou condição, torna impossível a produção do resultado visado pelo agente” (Damásio de Jesus, CP anotado, Saraiva, 8ª ed., 1998, p. 53, grifei).

6,- Os elementos objetivos do tipo legal de crime do artigo 289 do Código Eleitoral, ao lado do subjetivo (dolo), exige um mínimo de razoabilidade fenomênica da ação do agente como apta para expor a risco de lesão ou ameaça séria o bem jurídico tutelado. Sem tal condição ou situação jurídica, como ensina Damásio de Jesus, torna-se impossível a obtenção do resultado visado pelo agente.

7,- Como tudo na vida de relação e, em especial do âmbito do direito penal em face do seu caráter fragmentário, exige-se para punir-se alguma conduta a necessária relação de causa e efeito, de violação (ou ameaça) do bem jurídico tutelado: fé pública do cadastro eleitoral.

8,- Impõe-se, neste contexto fático de absoluta inaptidão instrumental da conduta, o "non liquet". Como é sabido, em sociedades modernas ou com sistemas democráticos maduros ou institucionalmente consolidados, o princípio do in dubio pro reo informa e orienta a aplicação do jus puniendi (art. 386, VII, do CPP).

(...)

Inconformado, o Ministério Público Eleitoral defende que o delito do art. 289 do Código Eleitoral é crime formal, cuja consumação requer apenas o encaminhamento do pedido de inscrição eleitoral, sendo desnecessário o resultado naturalístico.

Idêntica questão foi submetida a este Tribunal nos autos do RC n. 2-18, na sessão de 13.11.2017, quando, por maioria, vencido o Relator Des. Jamil Andraus Hanna Bannura, acolheu-se o entendimento divergente lançado pelo ilustre Des. Luciano André Losekann, no sentido de que a apresentação de documento inidôneo para formalizar pedido de transferência eleitoral caracteriza crime impossível, conforme prevê o art. 17 do Código Penal, nos exatos termos do raciocínio do juiz singular.

Confira-se a ementa do precedente:

RECURSO CRIMINAL. ART. 289 DO CÓDIGO ELEITORAL. TRANSFERÊNCIA ELEITORAL FRAUDULENTA. NÃO PERFECTIBILIZADA. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. PROVIMENTO NEGADO. Alegada inscrição eleitoral fraudulenta, mediante apresentação de guia de arrecadação municipal não quitada, emitida em nome de terceiro. O Requerimento de transferência de domicílio não se perfectibilizou, pois recusado o comprovante de endereço apresentado pelo denunciado, restando prejudicada a materialidade delitiva e impossibilitada a aferição da consumação do crime. Provimento negado.

(TRE-RS, RC n. 2-18, Redator para o acórdão, DEJERS 24.11.2017.)

No referido julgado, este Tribunal considerou que, apesar do dissenso doutrinário existente quanto à natureza do crime previsto no art. 289 do CE ser de mera conduta (formal) ou material, deve ser considerado o entendimento jurisprudencial dominante, que qualifica o delito como material, a reclamar a efetiva inscrição do eleitor para a consumação, admitindo-se, também, a forma tentada.

Colaciono a diretriz jurisprudencial consignada no acórdão:

RECURSO EM HABEAS CORPUS - TRANSFERÊNCIA FRAUDULENTA - ART. 289 DO CE.

IMPOSSIBILIDADE DE EXAME DAS ALEGACOES DE SEREM VERIDICAS AS DECLARACOES POR DEMANDAREM INCURSAO APROFUNDADA DA MATERIA PROBATORIA.

TRANSFERENCIA QUE NAO SE CONCRETIZOU - TENTATIVA PASSIVEL DE PUNICAO - ART. 14, II DO CODIGO PENAL. PRECEDENTES TSE.

RECURSO NAO PROVIDO.

(TSE, Recurso em Habeas Corpus n. 27, Relator Min. José Eduardo Rangel De Alckmin, Publicação: DJ - Diário de Justiça, Data 19.11.1999, Página 151.)

-CONDENAÇÃO COMO INCURSO NAS PENAS DO ARTIGO 289 DO CÓDIGO ELEITORAL C/C COM O ARTIGO 14 DO CÓDIGO PENAL.

I- Admitida a modalidade tentada do crime previsto no artigo 289 do Código Eleitoral.

II- Extinção da punibilidade. Ocorrência da preclusão nos termos do artigo 109, inciso VI, do Código Penal.

III- Mantida a decisão condenatória. Decisão unânime. (TRE/RJ, RC n. 59897, ACÓRDÃO n 19.297 de 04.4.2000, Relator Marcelo Fontes Cesar de Oliveira, Publicação: DOE - Diário Oficial do Estado, Volume III, Tomo II, Data 17.5.2000, Página 04.)

Recurso Criminal. Denúncia. Arts. 289 do Código Eleitoral e 14 do Código Penal. Procedência.

[...]

Mérito. Tentativa de inscrição fraudulenta. Materialidade e autoria dos delitos plenamente comprovadas por laudos periciais, prisão em flagrante e confissão.

Bem jurídico protegido concretamente ameaçado de lesão. Ausência de consumação por circunstâncias alheias à vontade dos autores. Delito que admite tentativa.

Crime impossível. Falsificação grosseira. Inexistência. Documentos com lesividade suficiente para a consumação do delito.

Recurso a que se nega provimento. (TRE/MG, RC n. 24422006, ACÓRDÃO n 741 de 07.8.2007, Relator Francisco de Assis Betti, Publicação: DJMG - Diário do Judiciário - Minas Gerais, Data 31.8.2007, Página 94 RDJ - Revista de Doutrina e Jurisprudência do TRE-MG, Tomo 17, Data 01.8.2008, Página 180.)

No entanto, esta Corte concluiu que não se considera praticado o delito em testilha, sequer na forma tentada, quando o documento apresentado para realizar a inscrição eleitoral revelar-se imprestável ao fim proposto, circunstância que se amolda perfeitamente à hipótese dos autos.

No caso concreto, diante da apresentação de mera guia de arrecadação de receitas municipais não quitada, emitida em nome de terceira pessoa (Maria de Lourdes Pires dos Santos, mãe da recorrida – fl. 09), a Chefe de Cartório Eleitoral não realizou o procedimento de transferência de domicílio eleitoral e submeteu a questão ao juízo a quo (fl. 07), que imediatamente determinou diligência para a confirmação do endereço (fl. 10), evidenciando-se que, de plano, o meio pelo qual foi realizado o suposto delito mostrou-se manifestamente inidôneo.

Desse modo, adotando-se a mesma conclusão alcançada por este Tribunal quando do julgamento do RC n. 2-18, deve ser considerado que a conduta em análise atrai a incidência da norma insculpida no art. 17 do Estatuto Repressivo, que dispõe sobre a prática de crime impossível, na esteira do raciocínio exposto na decisão recorrida.

 

Por todo o exposto, VOTO pelo desprovimento do recurso.