RE - 3564 - Sessão: 04/10/2018 às 16:00

RELATÓRIO

Cuida-se de recurso interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL contra sentença que julgou aprovadas as contas apresentadas pelo PARTIDO DOS TRABALHADORES (PT) de CENTENÁRIO, relativas ao exercício financeiro de 2016.

Em suas razões, o Parquet assevera que a Lei n. 13.488/17, que alterou a Lei n. 9.096/95, é inaplicável ao caso, em face do princípio tempus regit actum, não sendo possível retroagir para disciplinar movimentação contábil após o fechamento do respectivo exercício financeiro. Alega, também, que constitui irregularidade o recebimento por partido político de doação oriunda de vereadores, porquanto os edis ostentam a condição de autoridade, razão pela qual devem as contas partidárias ser desaprovadas, com a suspensão do repasse de quotas do Fundo Partidário e a devolução dos valores procedentes de fonte vedada.

O Diretório Municipal do Partido dos Trabalhadores apresentou contrarrazões, afirmando que as novas disposições trazidas pela Lei n. 13.488/17 têm eficácia imediata e geral, consistindo em inovação benéfica sobre a qual não incide o princípio da anualidade. Além disso, ressalta que o conceito legal de “autoridade pública”, para fins de contribuição partidária, não alcança os vereadores, consoante precedente deste Tribunal. Pugna, ao final, pelo desprovimento do recurso.

Nesta instância, os autos foram com vista à Procuradoria Regional Eleitoral, que exarou parecer pelo provimento do recurso, com a aplicação dos consectários legais.

É o relatório.

 

VOTO

O recurso é tempestivo e deve ser conhecido.

No mérito, o recorrente sustenta equívoco da sentença em aplicar a exercício financeiro pretérito as modificações realizadas pela Lei n. 13.488/17 ao art. 31 da Lei n. 9.096/95.

Decerto, no tocante ao recebimento de recursos de fontes vedadas, representadas por pessoas físicas detentoras da condição de “autoridade”, deve ser aplicado o art. 31 da Lei n. 9.096/95 em sua dicção original, ou seja, sem as modificações trazidas pela Lei n. 13.488/17, que facultou as doações de filiados a partidos políticos, ainda que ocupantes de cargos demissíveis ad nutum na Administração Direta ou Indireta.

Acerca do tema, mediante juízo de ponderação de valores, este Tribunal já se posicionou pela irretroatividade das novas disposições legais, ainda que eventualmente mais benéficas ao prestador de contas, preponderando os princípios do tempus regit actum, da isonomia e da segurança jurídica.

Nesses termos, o seguinte julgado:

RECURSO. PRESTAÇÃO DE CONTAS ANUAL. PARTIDO POLÍTICO. EXERCÍCIO DE 2015. PRELIMINAR. MANUTENÇÃO DOS DIRIGENTES PARTIDÁRIOS NO POLO PASSIVO. ILEGITIMIDADE NÃO CONFIGURADA. MÉRITO. RECEBIMENTO DE DOAÇÕES DE FONTES VEDADAS. ALTERAÇÃO LEGISLATIVA. PERMITIDA A CONTRIBUIÇÃO DE FILIADOS. INAPLICABILIDADE AO CASO CONCRETO. APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO VIGENTE À ÉPOCA DOS FATOS. PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. MANUTENÇÃO DO JUÍZO DE IRREGULARIDADE DA DOAÇÃO. REDUÇÃO DO PRAZO DE SUSPENSÃO DO RECEBIMENTO DAS QUOTAS DO FUNDO PARTIDÁRIO. PARCIAL PROVIMENTO.

(...)

3. A Lei n. 13.488/17, publicada em 06.10.17, alterou a redação do art. 31 da Lei n. 9.096/95 - Lei dos Partidos Políticos -, excluindo a vedação de doação de pessoa física que exerça função ou cargo público demissível ad nutum, desde que filiada ao partido beneficiário.

4. Inaplicabilidade ao caso concreto. Incidência da legislação vigente à época dos fatos. Prevalência do princípio da segurança jurídica e da paridade de armas no processo eleitoral, em detrimento da aplicação pontual da retroatividade in bonam partem. Manutenção do juízo de irregularidade das contribuições advindas de cargos demissíveis ad nutum, ainda que os contribuintes sejam filiados à agremiação.

(...)

6. Provimento parcial.

(TRE-RS; Recurso Eleitoral n. 14-97, Relator: Dr. Luciano André Losekann, julgado em 04.12.2017, por unanimidade) .(Grifei.)

Na mesma senda, o TSE tem entendimento consolidado no sentido de que “a legislação que regula a prestação de contas é aquela que vigorava na data em que apresentada a contabilidade, por força do princípio da anualidade eleitoral, da isonomia, do tempus regit actum e das regras que disciplinam o conflito de leis no tempo”. (ED-ED-PC 96183/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJE de 18.3.2016).

Portanto, deve ser aplicado à solução do caso concreto o art. 31, inc. II, da Lei n. 9.096/95 em sua redação primitiva, vigente ao tempo dos fatos em análise, a qual vedava o recebimento de doações procedentes de autoridades, sem ressalvas quanto à eventual filiação do doador, como se verifica por seu expresso teor:

Art. 31. É vedado ao partido receber, direta ou indiretamente, sob qualquer forma ou pretexto, contribuição ou auxílio pecuniário ou estimável em dinheiro, inclusive através de publicidade de qualquer espécie, procedente de:

[…].

II - autoridade ou órgãos públicos, ressalvadas as dotações referidas no art. 38;

No entanto, no caso em exame, restou comprovado que a única irregularidade apontada na prestação de contas da grei partidária, no exercício de 2016, foi o recebimento de contribuições oriundas de vereadores, totalizando R$ 2.823,13 (fls. 94-97).

Portanto, ainda que aplicada a redação original do dispositivo citado, a contribuição de detentor de mandato eletivo não deve ser considerada como ilícita.

Com efeito, o conceito de autoridade previsto nos dispositivos em comento abrange os detentores de cargos em comissão que desempenham função de chefia e direção, conforme assentou o TSE, com a Resolução n. 22.585/07, editada em razão da resposta à Consulta n. 1428, cuja ementa está assim vazada:

Partido político. Contribuições pecuniárias. Prestação por titulares de cargos demissíveis ad nutum da administração direta ou indireta. Impossibilidade, desde que se trate de autoridade.

Resposta à consulta, nesses termos. Não é permitido aos partidos políticos receberem doações ou contribuições de titulares de cargos demissíveis ad nutum da administração direta ou indireta, desde que tenham a condição de autoridades. (Grifei.)

A mesma inteligência é trazida pela norma interpretativa contida no § 1º do art. 12 da Resolução TSE n. 23.464/15, verbis:

§ 1º Consideram-se como autoridades públicas, para os fins do inciso IV do caput deste artigo, aqueles, filiados ou não a partidos políticos, que exerçam cargos de chefia ou direção na administração pública direta ou indireta.

 

A vedação tem o objetivo de obstar a partidarização da administração pública, tendo em vista o elevado número de cargos em comissão preenchidos por critérios políticos, resultando em fonte extra de recursos, com aptidão de desigualar o embate político-eleitoral entre os partidos que não contam com tal mecanismo.

Não é o caso do exercente de mandato eletivo, que não é titular de cargo de livre nomeação e exoneração e cuja posse ocorre mediante sufrágio popular, consagrando os princípios democrático e republicano.

Nesse sentido, transcrevo ementa de acórdão de minha relatoria:

RECURSO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. PARTIDO POLÍTICO. EXERCÍCIO FINANCEIRO DE 2016. RECEBIMENTO DE DOAÇÃO REALIZADA POR DETENTOR DE MANDATO ELETIVO. PREFEITO. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA DA NORMA. NÃO CARACTERIZADA FONTE VEDADA. LICITUDE DA DOAÇÃO. REFORMA DA SENTENÇA. APROVAÇÃO DAS CONTAS. PROVIMENTO.

Configuram recursos de fontes vedadas as doações a partidos políticos advindas de autoridades públicas, vale dizer, aqueles que exercem cargos de chefia ou direção na administração pública, direta ou indireta. Definição expressa no texto do art. 12 da Resolução TSE n. 23.464/15.

No caso, a agremiação partidária recebeu recursos de detentor de mandato eletivo de prefeito. O texto normativo não contempla os agentes políticos. Impossibilidade de se dar interpretação ampliativa à norma que traz uma restrição de direitos. O detentor de mandato eletivo não é titular de cargo nomeado em razão de vinculações partidárias, ao contrário, exerce "munus" público, eleito pelo povo. As doações realizadas por essa espécie de agente não possuem a potencialidade de afetar o equilíbrio entre as siglas partidárias. Caracterizada, assim, a licitude da doação efetuada pelo prefeito. Fonte vedada não caracterizada. Reforma da sentença para aprovar as contas. Provimento.(RE 14-78.2017.6.21.0168, julgado em 06.12.2017) (Grifei.)

Nesse ponto, é pertinente o enfrentamento da questão trazida pela Procuradoria Regional Eleitoral que, em seu parecer escrito, pugna pela preservação do entendimento anterior desta Corte sobre o enquadramento de agentes políticos no conceito de “autoridade”.

O órgão ministerial argumenta que a viragem jurisprudencial levada a efeito pelo Tribunal acarreta violação ao princípio da isonomia/paridade de armas no âmbito eleitoral entre os partidos políticos, tendo em vista que diversas agremiações tiveram as suas contas, relativas ao mesmo período de apuração, julgadas sob a perspectiva anterior. Salienta, ainda, a necessidade de observância dos princípios da segurança jurídica e da anterioridade eleitoral, citando precedente do STF pelo qual as decisões que impliquem mudança de jurisprudência em uma dada eleição não são aplicáveis ao caso concreto e somente terão eficácia sobre outros casos no pleito eleitoral posterior (RE 637485-RJ, Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 01.8.2012, Tribunal Pleno).

A despeito dos eloquentes argumentos, tenho que a evolução no posicionamento deste Regional não representa afronta ao princípio da isonomia e da paridade de armas entre os partidos políticos.

Primeiro, porque o TSE não tem posição consolidada sobre a licitude da doação de titulares de mandatos eletivos. Desse modo, o jurisdicionado não detinha a segurança jurídica necessária para afirmar que a mudança de posicionamento desta Corte implicaria em violação da isonomia e da paridade de armas. Dito de outro modo, a questão é controversa e a ausência de posicionamento sedimentado dos tribunais superiores sobre a matéria impede que o prestador de contas tenha legítima expectativa de continuidade das decisões em um ou outro sentido.

Em segundo, como se sabe, nosso sistema jurídico não atribui a mesma força normativa a atos legislativos e decisões judiciais. Consoante lição de Marcelo Roseno de Oliveira, em artigo denominado “Viragem jurisprudencial em matéria eleitoral e segurança jurídica: estudo sobre o caso da declaração de inconstitucionalidade do recurso contra expedição de diploma pelo Tribunal Superior Eleitoral” (Estudos Eleitorais, Brasília, DF, v. 9, n. 2, pp. 83-105, maio/ago. 2014. Disponível em http://bibliotecadigital.tse.jus.br/xmlui/handle/bdtse/1606, acessado em 24.1.18):

Ainda que se cogite, na atualidade, sobre uma crescente aproximação entre as famílias jurídicas romano-germânica e anglo-saxã, a distinção entre os sistemas forjados numa e noutra matriz reside fundamentalmente no reconhecimento da jurisprudência como fonte de direitos e, portanto, em sua função criativa (LIMA, 2013, p. 59).

O contraste, segundo Wambier (2009, p. 130), está em que “nos sistemas de common law, o direito é feito pelo juiz (judge-made-law) e, nos sistemas de civil law, quem cria o direito é o Poder Legislativo”.

Terceiro, a modulação dos efeitos da alteração da jurisprudência é possibilidade que o art. 927, § 3º, do Código de Processo Civil confere ao Supremo Tribunal Federal e aos tribunais superiores nos casos de jurisprudência dominante ou julgamento de casos repetitivos.

Note-se bem, em tais espécies de precedentes – jurisprudência dominante e casos repetitivos – a modulação é apenas uma faculdade, não uma imposição. Portanto, essa providência certamente não é peremptoriamente exigível em decisões de tribunais regionais que representem viragens jurisprudenciais sobre temas ainda não pacificados nas instâncias especiais.

Mesmo o Supremo Tribunal Federal, ao analisar o RE 637485, Relator: Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 01.8.2012, quando recomendou a aplicação do princípio da anterioridade eleitoral em relação às mudanças jurisprudenciais, o fez em relação às decisões do Tribunal Superior Eleitoral incidentes sobre determinada eleição, e não de forma irrestrita, como se verifica na ementa julgado:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. REELEIÇÃO. PREFEITO. INTERPRETAÇÃO DO ART. 14, § 5º, DA CONSTITUIÇÃO. MUDANÇA DA JURISPRUDÊNCIA EM MATÉRIA ELEITORAL. SEGURANÇA JURÍDICA.[...]

II. MUDANÇA DA JURISPRUDÊNCIA EM MATÉRIA ELEITORAL. SEGURANÇA JURÍDICA. ANTERIORIDADE ELEITORAL. NECESSIDADE DE AJUSTE DOS EFEITOS DA DECISÃO. Mudanças radicais na interpretação da Constituição devem ser acompanhadas da devida e cuidadosa reflexão sobre suas consequências, tendo em vista o postulado da segurança jurídica. Não só a Corte Constitucional, mas também o Tribunal que exerce o papel de órgão de cúpula da Justiça Eleitoral devem adotar tais cautelas por ocasião das chamadas viragens jurisprudenciais na interpretação dos preceitos constitucionais que dizem respeito aos direitos políticos e ao processo eleitoral. Não se pode deixar de considerar o peculiar caráter normativo dos atos judiciais emanados do Tribunal Superior Eleitoral, que regem todo o processo eleitoral. Mudanças na jurisprudência eleitoral, portanto, têm efeitos normativos diretos sobre os pleitos eleitorais, com sérias repercussões sobre os direitos fundamentais dos cidadãos (eleitores e candidatos) e partidos políticos. No âmbito eleitoral, a segurança jurídica assume a sua face de princípio da confiança para proteger a estabilização das expectativas de todos aqueles que de alguma forma participam dos prélios eleitorais. A importância fundamental do princípio da segurança jurídica para o regular transcurso dos processos eleitorais está plasmada no princípio da anterioridade eleitoral positivado no art. 16 da Constituição. O Supremo Tribunal Federal fixou a interpretação desse artigo 16, entendendo-o como uma garantia constitucional (1) do devido processo legal eleitoral, (2) da igualdade de chances e (3) das minorias (RE 633.703). Em razão do caráter especialmente peculiar dos atos judiciais emanados do Tribunal Superior Eleitoral, os quais regem normativamente todo o processo eleitoral, é razoável concluir que a Constituição também alberga uma norma, ainda que implícita, que traduz o postulado da segurança jurídica como princípio da anterioridade ou anualidade em relação à alteração da jurisprudência do TSE. Assim, as decisões do Tribunal Superior Eleitoral que, no curso do pleito eleitoral (ou logo após o seu encerramento), impliquem mudança de jurisprudência (e dessa forma repercutam sobre a segurança jurídica), não têm aplicabilidade imediata ao caso concreto e somente terão eficácia sobre outros casos no pleito eleitoral posterior. III. REPERCUSSÃO GERAL. Reconhecida a repercussão geral das questões constitucionais atinentes à (1) elegibilidade para o cargo de Prefeito de cidadão que já exerceu dois mandatos consecutivos em cargo da mesma natureza em Município diverso (interpretação do art. 14, § 5º, da Constituição) e (2) retroatividade ou aplicabilidade imediata no curso do período eleitoral da decisão do Tribunal Superior Eleitoral que implica mudança de sua jurisprudência, de modo a permitir aos Tribunais a adoção dos procedimentos relacionados ao exercício de retratação ou declaração de inadmissibilidade dos recursos repetitivos, sempre que as decisões recorridas contrariarem ou se pautarem pela orientação ora firmada. IV. EFEITOS DO PROVIMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Recurso extraordinário provido para: [...]

(2) deixar assentados, sob o regime da repercussão geral, os seguintes entendimentos: (2.1) o art. 14, § 5º, da Constituição, deve ser interpretado no sentido de que a proibição da segunda reeleição é absoluta e torna inelegível para determinado cargo de Chefe do Poder Executivo o cidadão que já exerceu dois mandatos consecutivos (reeleito uma única vez) em cargo da mesma natureza, ainda que em ente da federação diverso; (2.2) as decisões do Tribunal Superior Eleitoral que, no curso do pleito eleitoral ou logo após o seu encerramento, impliquem mudança de jurisprudência, não têm aplicabilidade imediata ao caso concreto e somente terão eficácia sobre outros casos no pleito eleitoral posterior.

(RE 637485, Relator: Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 01.8.2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-095 DIVULG 20.5.2013 PUBLIC 21.5.2013)

Portanto, seguindo o atual entendimento desta Corte, consideram-se lícitas e regulares as contribuições realizadas por vereadores, razão pela qual as contas partidárias devem ser mantidas aprovadas.

Ante o exposto, VOTO pelo desprovimento do recurso.