INQ - 1127 - Sessão: 18/12/2018 às 17:00

RELATÓRIO

Trata-se de inquérito policial inicialmente instaurado pela Delegacia de Polícia de São José do Ouro, por requisição do órgão do Ministério Público Eleitoral com atuação perante a 103ª Zona Eleitoral, para apurar a possível prática do crime previsto no art. 299 do Código Eleitoral, durante a campanha das eleições de 2016 no Município de Tupanci do Sul/RS, por CLODOMAR FERMINO SOARES, o qual, à época, exercia o cargo de Vice-Prefeito e disputava a chefia do poder executivo municipal (fls. 19-20).

A Juíza Eleitoral, acolhendo a promoção do representante ministerial da origem, declinou da competência para esta Corte (fls. 57 e 62), a qual, após manifestação da Procuradoria Regional Eleitoral (fls. 66-69), reconheceu a sua competência para o processamento do presente inquérito, com fundamento no art. 29, inc. X, da Constituição Federal, pois o investigado CLODOMAR, eleito no pleito municipal de 2016, se encontrava no exercício do cargo de Prefeito de Tupanci do Sul (fl. 71).

As investigações prosseguiram perante a Delegacia de Polícia Federal de Passo Fundo (fls. 02-06), tendo a autoridade policial concluído o inquérito com sugestão de arquivamento dos autos, porque os elementos probatórios colhidos ao longo da fase investigatória se mostraram insuficientes para a comprovação da autoria e da materialidade delitivas (fl.102).

Nesta instância, com vista dos autos, a Procuradoria Regional Eleitoral requereu o declínio da competência ao Juízo Eleitoral da 103ª Zona de São José do Ouro, com jurisdição sobre o Município de Tupanci do Sul/RS, amparada na recente interpretação restritiva conferida pelo Supremo Tribunal Federal ao instituto do foro por prerrogativa de função (art. 102, inc. I, al. “b”, da Constituição Federal), quando apreciou a Questão de Ordem na Ação Penal Originária n. 937/RJ (fls. 115-121v.).

É o relatório.

VOTO

O presente inquérito policial foi instaurado para averiguar a possível prática do delito de corrupção eleitoral, tipificado no art. 299 do Código Eleitoral, durante a campanha de 2016, por CLODOMAR FERMINO SOARES, o qual, à época, exercia o cargo de vice-prefeito do Município de Tupanci do Sul/RS e, na condição de candidato à chefia do poder executivo municipal, teria distribuído combustível e "ranchos" a eleitores visando a obtenção de votos em favor da sua candidatura.

Ao encerrar a instrução do inquérito, a autoridade policial concluiu não ser possível a comprovação da autoria e da materialidade do crime investigado, manifestando-se pelo seu arquivamento (fls. 98-102).

Como esta Corte havia firmado a sua competência para o processamento do presente procedimento, com base no art. 29, inc. X, da Constituição Federal, pelo fato de o investigado CLODOMAR ter sido eleito Prefeito do Município de Tupanci do Sul/RS nas eleições de 2016 (fl. 71), após a remessa dos autos a esta instância, a Procuradoria Regional Eleitoral postulou a declinação de competência ao Juízo da 103ª Zona Eleitoral de São José do Ouro, sob o seguinte fundamento (fl. 121 e v.):

No caso concreto, a despeito de CLODOMAR FERMINO SOARES, encontra-se, atualmente, no exercício do mandato de Prefeito Municipal de Tupanci do Sul, os fatos objeto do presente inquérito – suposta entrega de ranchos e combustível em troca de votos – teriam ocorrido antes do início do mandato (quando ainda era Vice-Prefeito) e, notadamente, não guardam relação com as atribuições do cargo.

Logo, porque não estão preenchidos os pressupostos para incidência do foro por prerrogativa de função (na interpretação restritiva conferida pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Penal n. 937, aplicável ao presente caso pelo princípio da parametricidade), conclui-se que esta Procuradoria Regional Eleitoral não detém atribuição para a formação da opinio delicti (Grifos do original).

O foro por prerrogativa de função ou, simplesmente, “foro privilegiado”, é um dos modos de se estabelecer a competência penal. Com esse instituto jurídico, o órgão competente para julgar ações penais contra determinados agentes é estabelecido levando-se em conta o cargo ou a função que eles ocupam, visando proteger a função e a coisa pública.

O instituto está previsto em diversas disposições da Constituição Federal de 1988 e, no caso de Prefeito, a prerrogativa encontra-se disciplinada no art. 29, inc. X, do texto constitucional, in verbis:

Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:

(…)

X- julgamento do Prefeito perante o Tribunal de Justiça;

(…).

Em se tratando do cometimento de crimes eleitorais, sob a ótica da simetria, a competência para processar e julgar o titular do executivo municipal é do Tribunal Regional Eleitoral do respectivo Estado:

Habeas corpus. Art. 350 do Código Eleitoral. Prefeito municipal. Inquérito policial instaurado por requisição do Ministério Público Eleitoral sem supervisão do TRE. Procuradoria-Geral Eleitoral opina pela concessão da ordem. Ordem concedida. 1. Compete ao Tribunal Superior Eleitoral processar e julgar habeas corpus contra ato supostamente ilegal praticado por procurador regional eleitoral. Precedentes do TSE. 2. A instauração do inquérito policial para averiguar suposto crime praticado por prefeito depende de supervisão do Tribunal Regional Eleitoral competente para processar e julgar o titular do Poder Executivo municipal nos crimes eleitorais. Precedentes do TSE e do STF. 3. A prerrogativa de foro é uma garantia voltada não exatamente para a defesa de interesses de titulares de cargos relevantes, mas para a própria regularidade das instituições. Se a interpretação das normas constitucionais leva à conclusão de que o chefe do Executivo municipal responde por crime eleitoral perante o respectivo TRE, não há razão plausível para que as atividades diretamente relacionadas à supervisão judicial (abertura de procedimento investigatório) sejam retiradas do controle judicial daquele órgão. 4. Ordem concedida".

(Ac. de 8.4.2014 no HC no 42907, rel. Min. Gilmar Mendes)

A questão posta pelo Procurador Regional Eleitoral nestes autos trata dos critérios para a definição de tal competência.

Argumenta o ilustre representante do Parquet nesta Corte em sua manifestação (fls. 115-121v.) que, na AP n. 937/RJ, o Supremo Tribunal Federal definiu o contexto de aplicação do foro por prerrogativa de função, restringido sua incidência a crimes cometidos durante o mandato e em função dele.

Com efeito, no dia 03 de maio do corrente ano, o Plenário do Supremo Tribunal Federal conferiu nova interpretação ao art. 102, inc. I, als. “b” e “c”, da Constituição Federal, assentando a competência da Corte Suprema para processar e julgar os membros do Congresso Nacional exclusivamente quanto aos crimes praticados no exercício e em razão da função pública.

A questão foi levantada por meio de Questão de Ordem suscitada pelo eminente Ministro Luiz Roberto Barroso em voto proferido no julgamento da AP n. 937/RJ, cujo acórdão restou assim ementado:

DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. QUESTÃO DE ORDEM EM AÇÃO PENAL. LIMITAÇÃO DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO AOS CRIMES PRATICADOS NO CARGO E EM RAZÃO DELE. ESTABELECIMENTO DE MARCO TEMPORAL DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA.

I. Quanto ao sentido e alcance do foro por prerrogativa 1. O foro por prerrogativa de função, ou foro privilegiado, na interpretação até aqui adotada pelo Supremo Tribunal Federal, alcança todos os crimes de que são acusados os agentes públicos previstos no art. 102, I, b e c da Constituição, inclusive os praticados antes da investidura no cargo e os que não guardam qualquer relação com o seu exercício. 2. Impõe-se, todavia, a alteração desta linha de entendimento, para restringir o foro privilegiado aos crimes praticados no cargo e em razão do cargo. É que a prática atual não realiza adequadamente princípios constitucionais estruturantes, como igualdade e república, por impedir, em grande número de casos, a responsabilização de agentes públicos por crimes de naturezas diversas. Além disso, a falta de efetividade mínima do sistema penal, nesses casos, frustra valores constitucionais importantes, como a probidade e a moralidade administrativa. 3. Para assegurar que a prerrogativa de foro sirva ao seu papel constitucional de garantir o livre exercício das funções - e não ao fim ilegítimo de assegurar impunidade - é indispensável que haja relação de causalidade entre o crime imputado e o exercício do cargo. A experiência e as estatísticas revelam a manifesta disfuncionalidade do sistema, causando indignação à sociedade e trazendo desprestígio para o Supremo. 4. A orientação aqui preconizada encontra-se em harmonia com diversos precedentes do STF. De fato, o Tribunal adotou idêntica lógica ao condicionar a imunidade parlamentar material - i.e., a que os protege por suas opiniões, palavras e votos - à exigência de que a manifestação tivesse relação com o exercício do mandato. Ademais, em inúmeros casos, o STF realizou interpretação restritiva de suas competências constitucionais, para adequá-las às suas finalidades. Precedentes. II. Quanto ao momento da fixação definitiva da competência do STF 5. A partir do final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais - do STF ou de qualquer outro órgão - não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo. A jurisprudência desta Corte admite a possibilidade de prorrogação de competências constitucionais quando necessária para preservar a efetividade e a racionalidade da prestação jurisdicional. Precedentes. III. Conclusão 6. Resolução da questão de ordem com a fixação das seguintes teses: "(i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (ii) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo''. 7. Aplicação da nova linha interpretativa aos processos em curso. Ressalva de todos os atos praticados e decisões proferidas pelo STF e demais juízos com base na jurisprudência anterior. 8. Como resultado, determinação de baixa da ação penal ao Juízo da 256a Zona Eleitoral do Rio de Janeiro, em razão de o réu ter renunciado ao cargo de Deputado Federal e tendo em vista que a instrução processual já havia sido finalizada perante a I ª instância.

Na decisão, restou clara a necessidade da análise de dois critérios para a definição da aplicação do foro por prerrogativa de função: o cometimento de crime durante a investidura em cargo público e a relação entre as funções exercidas no cargo e a ação criminosa.

Embora o precedente da Corte Suprema tenha sido proferido em contexto atinente ao cargo de Deputado Federal, o próprio Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Inq n. 4703/DF, de relatoria do Min. Luiz Fux, julgado em 12.6.2018, afirmou que o entendimento também é válido relativamente a Ministros de Estado.

Desde então, vários tribunais do país, tomando o acórdão como orientação, passaram a aplicar a mesma linha interpretativa para outras hipóteses de foro privilegiado.

Foi o que decidiu, por exemplo, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça que, seguindo a linha de raciocínio adotada pela Suprema Corte, limitou a amplitude do art. 105, inc. I, al. “a”, da Constituição Federal e estabeleceu que a restrição do foro deve alcançar Governadores e Conselheiros dos Tribunais de Contas estaduais (AP n. 857/DF, STJ, Corte Especial, Rel. para acórdão Min. João Otávio de Noronha, julgado em 20.6.2018).

Este Regional, da mesma maneira, aderiu ao posicionamento da Corte Excelsa, como demonstram as ementas abaixo reproduzidas:

INQUÉRITO. CRIME ELEITORAL. ART. 324 DO CÓDIGO ELEITORAL. ELEIÇÕES 2016. NOVO ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PRERROGATIVA DE FORO. LIMITAÇÃO AO EXERCÍCIO DO CARGO. CANDIDATO AO CARGO DE PREFEITO NA ÉPOCA DO FATO. DECLÍNIO DE COMPETÊNCIA.

Suposta prática de crime durante debate eleitoral que antecedeu ao pleito, período em que o investigado detinha apenas a condição de candidato ao cargo de prefeito. Novo posicionamento do Supremo Tribunal Federal no sentido de limitar o foro por prerrogativa de função às hipóteses em que a prática delitiva ocorrer no exercício do cargo e em decorrência de suas atribuições. Alinhamento deste Tribunal à nova interpretação. Não subsiste a competência originária criminal desta Corte, reconhecida ao juízo eleitoral de primeiro grau. Acolhida a promoção ministerial.

(TRE/RS – Inq n. 333 - Rel. Des. Eleitoral João Batista Pinto Silveira – J. Sessão de 25.9.2018.)

INQUÉRITO POLICIAL. SUPOSTA PRÁTICA DOS CRIMES DE CORRUPÇÃO, USO DE BEM E/OU SERVIÇO PÚBLICO E FALSIDADE IDEOLÓGICA, TODOS COM FINALIDADE ELEITORAL. ARTS. 299, 346 C/C 377 E 350, TODOS DO CÓDIGO ELEITORAL. ELEIÇÕES 2016. PREFEITO ELEITO. PRERROGATIVA DE FORO. NOVA INTERPRETAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. DECLÍNIO DE COMPETÊNCIA.

O Supremo Tribunal Federal assentou nova interpretação para restringir a aplicação do foro por prerrogativa de função apenas aos delitos praticados no exercício do cargo e com pertinência às funções exercidas. Suposta prática delitiva quando o investigado detinha apenas a condição de candidato ao cargo de Prefeito, sem qualquer relação com o exercício do mandato. Por esse motivo, não subsiste a competência criminal originária, por prerrogativa de foro, perante o Tribunal Regional Eleitoral. Acolhimento da promoção ministerial.

Declínio da competência.

(TRE/RS – Inq n. 4753 - Rel. Des. Eleitoral Luciano André Losekann – J. Sessão de 8.11.2018.)

No caso sob exame, o crime de corrupção eleitoral foi cometido, em tese, durante a campanha eleitoral relativa ao pleito de 2016.

Portanto, forçoso reconhecer que o delito cuja prática se atribui ao então candidato ao cargo de Prefeito do Município de Tupanci do Sul, CLODOMAR FERMINO SOARES, não foi cometido durante o exercício do cargo e, por conseguinte, como bem observado pelo n. Procurador Regional Eleitoral, não guarda relação com as atribuições a ele inerentes.

Dessa sorte, com base nas definições apontadas pelo Supremo Tribunal Federal sobre a matéria e na esteira do entendimento recentemente adotado por este Tribunal, impõe-se determinar a baixa dos autos ao juízo da 103ª Zona Eleitoral de São José do Ouro, uma vez que o crime imputado a CLODOMAR FERMINO SOARES não foi cometido quando este ocupava o cargo de Prefeito da cidade de Tupanci do Sul/RS, ou em razão do seu exercício.

DIANTE DO EXPOSTO, voto pelo acolhimento da promoção da Procuradoria Regional Eleitoral a fim de declinar da competência ao Juízo da 103ª Zona Eleitoral de São José do Ouro/RS, para que, encaminhados os autos ao Promotor Eleitoral oficiante, adote as medidas que entender cabíveis quanto às investigações da prática do crime de corrupção eleitoral (art. 299 do Código Eleitoral) por CLODOMAR FERMINO SOARES durante as eleições de 2016.