AP - 3425 - Sessão: 24/10/2017 às 14:30

Desembargadores Eleitorais:

Como Presidente, diante da relevância do caso, que já chegou ao TSE, e diante da divergência, tenho que me preparar com antecedência.

Assim, votarei como estou ponderando aos Eminentes integrantes do Tribunal.

Os fatos resultaram na denúncia, pela Procuradoria Regional Eleitoral (fls. 02 a 19 - verso) reiterada em alegações finais (fls. 1150 a 1195-verso), em razão da prática do delito tipificado no artigo 316 do Código Penal por ARTHUR ALEXANDRE SOUTO e pelo cometimento dos crimes tipificados no artigo 316 do Código Penal, artigo 350 do Código Eleitoral e artigo 39, § 5º, inciso III, da Lei n. 9.504/97 por GILMAR SOSSELLA.

Essencialmente, os acusados respondem por três fatos nucleares, em co-autoria ou individualmente,  coação na aquisição de convites, falsidade na prestação de contas e propaganda no dia da eleição.

Em expressão técnica rigorosa, os fatos são os seguintes:

Art. 316 do Código Penal (Concussão)

O Ministério Público Eleitoral afirma que os réus ARTHUR ALEXANDRE SOUTO e GILMAR SOSSELLA, o primeiro, valendo-se da função pública de Superintendente-geral da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul e o segundo, da autoridade de Presidente da Mesa Diretora da Casa, teriam exigido de servidores do quadro, ocupantes de funções gratificadas, de coordenação e direção, a compra de ingressos para jantar de arrecadação de recursos para a campanha de GILMAR SOSSELLA a Deputado Estadual nas Eleições de 2014.

Ao preço de dois mil e quinhentos reais a unidade, aduz que os ingressos teriam sido vendidos com o emprego de ameaças implícitas e explícitas de perda da função, perpetradas diretamente por ARTHUR ALEXANDRE SOUTO, inclusive com a dispensa do servidor Nelson Delavald Júnior da função gratificada até então por ele ocupada, o que configuraria o delito de concussão previsto no art. 316 do Código Penal.

 

Art. 350 do Código Eleitoral (falsidade ideológica de documentos que instruíram a prestação de contas de campanha)

A cada ingresso vendido, como determinado pela Lei das Eleições para o financiamento de campanhas, correspondeu um recibo de doação contendo a assinatura de um doador, que não o teria feito como livre manifestação de vontade  -  portanto, inválida -, com o propósito de atestar ingresso pretensamente lícito de recursos na campanha.

 

Art. 39, § 5º, inc. III da Lei n. 9.504/97 (propaganda eleitoral no dia da eleição)

Como terceiro fato delitivo, o Ministério Público relata que GILMAR SOSSELLA, no dia 05.10.2014 (domingo, data do pleito eleitoral), enviou 4.989 (quatro mil, novecentos e oitenta e nove) torpedos do telefone celular funcional de prefixo 51-9864-0485, o qual tem posse em razão do cargo de Deputado Estadual, sendo que 4.987 foram enviados até as 15h45minutos daquele dia.

O candidato à reeleição teria, dessa forma, utilizado seu telefone móvel funcional para divulgar propaganda eleitoral contendo pedido de votos em benefício próprio e da coligação partidária para a qual concorria.

Deixo de transcrever o conteúdo das mensagens, pois consta em mais de um documento juntado aos autos, especialmente no reproduzido à fl. 1158.

Notificados (fls. 515 e 516), os denunciados apresentaram respostas preliminares (fls. 518-529 e 542-571), reiteradas em sede de alegações finais (fls. 1209-1239 e 1243-1276, com jurisprudência juntada às fls. 1277-1286), nas quais sustentaram a inépcia da denúncia, a atipicidade delitiva e a ausência de justa causa. No mérito, negaram a autoria e a materialidade delitivas. Pugnaram pela absolvição, com base no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal.

Tais circunstâncias e ocorrências justificam minhas ponderações prévias, cuja análise considera, acima de tudo, os fatos e fundamentos já reconhecidos no acórdão do Egrégio Superior Tribunal Eleitoral.

Distinguem-se os âmbitos cível e criminal. A diferença entre as instâncias justifica o recebimento da denúncia criminal, e naturalmente pode influenciar, ou influencia, o julgamento criminal, mesmo que este prepondere sobre aquele; entretanto, o julgamento cível, no âmbito do Tribunal Superior, tem que ser considerado no julgamento criminal nesta instância.

Reconstituo a ementa do julgamento proferido pelo Tribunal Superior Eleitoral nos Recursos Ordinários nas Ações de Investigação Judicial Eleitoral de números 2650-41.2014.6.21.0000 e 2651-26.2014.6.21.0000 e Ação Cautelar de número 203-31.2015.6.00.0000, conjuntamente julgados na Sessão de 5 de abril de 2017, de Relatoria do Excelentíssimo Senhor Ministro Gilmar Mendes, cujos pontos mais importantes destaco:

ELEIÇÕES 2014. RECURSO ORDINÁRIO. DEPUTADO ESTADUAL. ABUSO DE PODER. ART. 30-A DA LEI Nº 9.504/1997. INOCORRÊNCIA. CONDUTA VEDADA. MAJORAÇÃO DA MULTA. 1. Para afastar legalmente determinado mandato eletivo obtido nas urnas, compete à Justiça Eleitoral, com base na compreensão da reserva legal proporcional, verificar, com fundamento em provas robustas admitidas em direito, a existência de grave ilícito eleitoral suficiente para ensejar as severas e excepcionais sanções de cassação de diploma e de declaração de inelegibilidade. 2. O abuso do poder político qualifica-se quando a estrutura da administração pública é utilizada em benefício de determinada candidatura ou como forma de prejudicar a campanha de eventuais adversários, incluindo neste conceito quando a própria relação de hierarquia na estrutura da administração pública é colocada como forma de coagir servidores a aderir a esta ou aquela candidatura, pois, nos termos do art. 3º, alínea j, da Lei nº 4.898/1965, configura abuso de autoridade qualquer atentado "aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional". 2.1. Da leitura da vasta prova testemunhal e documental, verifica-se, com bastante clareza e coerência, que o deputado não ofereceu nenhum convite para os servidores da Assembleia, tampouco há referência à participação em reunião ou em encontros para tratar do tema com servidores com ou sem função gratificada, mas simplesmente concordou com a realização do jantar e com o preço fixado por convite, devidamente comprovado no processo de prestação de contas. Além disso, a realização de jantares de adesão pelos deputados é uma prática comum na Assembleia e sua realização foi devidamente comunicada à Justiça Eleitoral. 2.2. Suposta coação no oferecimento dos convites a servidores (eventual perda da função em caso de recusa na aquisição de convite do jantar). A prova testemunhal dos autos, produzida em juízo, indica uma situação de desconforto ou, quando muito, um temor reverencial. Nesse ponto, nos termos do art. 153 do Código Civil, não se qualifica como coação "a ameaça do exercício normal de um direito, nem o simples temor reverencial". O próprio servidor que teria sido demitido porque não comprou o convite esclarece que foi informado de que não seria obrigatória a compra do convite, o que se mostra coerente com as outras provas dos autos, inclusive com a baixa adesão ao jantar, pois, de 2.500 servidores da Assembleia Legislativa, apenas 19 com função compraram o convite do jantar (de um montante de 189 servidores com FG). 2.3. Realização de auditoria no Departamento de Gestão de Pessoas. É inegável que o segundo representado (Superintendente-Geral da Assembleia) falou sobre o tema na reunião sobre os convites para o jantar, mas pessoas participantes da referida reunião já sabiam que essa auditoria estava programada em momento anterior, como se verifica dos depoimentos das testemunhas. A lembrança inoportuna sobre a auditoria não ganha a qualificação de coação sobre os servidores presentes na reunião, muito menos de grave abuso de poder político, suficiente para se chegar à severa sanção de cassação de diploma de um deputado estadual. Some-se a isso a circunstância de que outras auditorias foram realizadas na Assembleia na gestão do representado, o que reforça a conclusão de que não se tratava de uma fiscalização pontual, mas apenas de um procedimento programado anteriormente com o fim de evitar gastos públicos desnecessários. 2.4. Demissão de servidor supostamente em razão da recusa em comprar o convite. O próprio servidor esclarece que foi informado de que não seria obrigatória a compra do convite, o que se mostra coerente com as outras provas dos autos e afasta a alegação de coação. E ainda: a prova dos autos não demonstra de forma robusta que a exoneração decorreu apenas do fato de o servidor não ter adquirido o convite, pois, além de outros servidores não terem comprado o convite e não terem perdido a função gratificada, o depoente enfatizou que a conclusão sobre sua demissão decorreria de "achismo". 3. Art. 30-A da Lei nº 9.504/1997. 3.1. Além de inexistir prova contundente e cabal de que todos ou alguns (e quais) convites foram adquiridos mediante grave coação, não há nos autos a tentativa de impedir a fiscalização da Justiça Eleitoral, a má-fé portanto, requisito indispensável para a incidência do art. 30-A da Lei das Eleições. 3.2. Ainda que se considere que um ou outro convite foi adquirido mediante grave coação (apenas como argumentação, reitere-se), a incidência da referida norma exige um juízo de proporcionalidade entre o ilícito praticado e a sanção a ser imposta, o que, no caso concreto, afastaria a incidência de cassação de diploma, considerando o pequeno valor do convite no contexto de uma campanha para deputado estadual (cf. o REspe nº 28.448/AM, redatora para o acórdão Min. Nancy Andrighi, julgado em 22.3.2012).4. Condutas vedadas. 4.1. A cassação por conduta vedada, à semelhança do art. 30-A da Lei das Eleições, exige um juízo de proporcionalidade entre o ilícito praticado e a sanção a ser imposta. A cassação do diploma com fundamento nos incisos I (utilização de uma sala para reunião para tratar da questão dos convites) e V (suposta exoneração do servidor em período vedado) não se revela razoável ao concreto, mormente quando um dos fatos é absolutamente controverso nas provas dos autos (inciso V). 4.2. Art. 73, inciso III, da Lei das Eleições. A referida proibição alcança somente os servidores do Poder Executivo e não os do Legislativo (cf. o AgR-REspe nº 137472/RS, rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 1º.3.2016). 4.3. Majoração da multa com fundamento no inciso II. O Regional desconsiderou que o representado não era apenas deputado, mas presidente da Assembleia Legislativa, exigindo-se um cuidado maior no trato da coisa pública. E ainda: o valor da conduta vedada é representativo, levando-se em conta a própria remuneração do representado, razão pela qual a multa merece ser majorada. 5. Recursos ordinários dos representados providos. Recurso do MPE conhecido como ordinário e provido em parte. Recurso da Coligação desprovido. Prejudicada a AC nº 203-31/RS.

(Recurso Ordinário n. 265041, Acórdão, Relator Min. GILMAR MENDES, Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Tomo 88, Data 08.05.2017, Página 124.)

Não objetivo afrontar entendimento já pacificado, do Tribunal Superior Eleitoral, no sentido de que as esferas cível-eleitoral e criminal são independentes, não ensejando ofensa à coisa julgada o reexame, em sede de Ação Criminal, de fato já decidido em Ação de Investigação Judicial Eleitoral, em razão dos objetivos distintos que os instrumentos têm.

Assim:

HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL. IMPROCEDÊNCIA. REQUISITOS LEGAIS PREENCHIDOS. ART. 299, CE. PRECEDENTES.

1. A investigação judicial eleitoral julgada improcedente não constitui óbice para a instauração de ação penal.

2. O habeas corpus não se presta ao exame aprofundado da prova.

3. Recursos não providos. (RHC n. 51/GO, rel. Min. Carlos Mário da Silva Velloso, DJ de 6.6.2003)

DIREITOS ELEITORAL E PROCESSUAL. AGRAVO EM HABEAS CORPUS. PEDIDO DE JULGAMENTO DE MÉRITO PELO COLEGIADO. SUSPENSÃO DA AÇÃO PENAL; CORRUPÇÃO ELEITORAL. INVESTIGAÇÃO JUDICIAL JULGADA IMPROCEDENTE. IRRELEVÂNCIA. PRECEDENTES. DECISÃO AGRAVADA. FUNDAMENTOS NÃO INFIRMADOS. DESPROVIMENTO.

I – Dar-se-á o excepcional trancamento da ação penal quando, da exposição dos fatos na denúncia, constatar-se que não restou configurado algum tipo penal.

II – Pela via do habeas corpus não se pode trancar a ação penal, quando seu reconhecimento exigir exame aprofundado e valorativo da prova constante dos autos.

III – Decisão indeferitória de investigação judicial, por si só, não enseja trancamento, pela via do habeas corpus, de ação penal ainda que proposta sobre os mesmos fatos que a ensejaram e deles se puder extrair eventual corrupção eleitoral.

IV – Requer-se das razões do agravo interno que infirmem os fundamentos da decisão impugnada

(AgRgHC n. 438/RJ, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, DJ de 13.9.2002.)

 

Contudo, não posso desconsiderar o resultado do julgamento do RO nas AIJEs 2650-41 e 2651-26 na formação do meu convencimento na presente Ação Criminal, que passo a desenvolver.

1) Da denúncia pelo art. 316 do Código Penal, crime de Concussão, imputado a ARTHUR ALEXANDRE SOUTO E GILMAR SOSSELLA:

Tipifica o art. 316, caput, do Código Penal: “Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida: Pena de reclusão, de dois a oito anos, e multa”. 

A ação nuclear do tipo consubstancia-se no verbo exigir, isto é, ordenar, reivindicar, impor como obrigação. O funcionário público exige da vítima o pagamento de vantagem que não é devida. A vítima cede às exigências formuladas pelo agente ante o temor de represálias, imediatas ou futuras, relacionadas à função pública por ele exercida.

Relaciono a conclusão do TSE no julgamento do RO nas AIJEs 2650-41 e 2651-26 (fls. 1177 e 1178 das AIJEs) no sentido de que:

(…) o próprio servidor Nelson Delavald Júnior, supostamente demitido por não ter comprado o convite, esclareceu que tem afinidade com Jair Luiz Muller, pessoa que ofereceu o convite pela segunda vez, em que ele expressamente informou que não era obrigatória a compra do convite.

Do depoimento do servidor percebe-se a inexistência do núcleo do tipo, isto é, não houve exigência, imposição, ordem de compra dos convites, o que se mostra indispensável para a configuração do crime de Concussão.

Há semelhança entre a concussão, prevista no art. 316 do Código Penal, e a coação, descrita no art. 153 do Código Civil.

Não dispõe de livre vontade o agente passivo do crime de concussão, ao sofrer “exigência de vantagem indevida para si ou para outrem”, ou do ato de coação, ao ceder a tal pressão a ponto de incutir-lhe “fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens”, seja para conceder ao opressor “vantagem indevida”, seja para assentir com negócio jurídico do qual não deseja participar.

Se ambos os institutos têm em comum a supressão da livre manifestação de vontade, não havendo opressão, não há coação e tampouco concussão.

Essa foi, afinal, a conclusão do Tribunal Superior Eleitoral no julgamento do RO nas AIJEs 2650-41 e 2651-26 (fls. 1177 e 1178 das AIJEs):

Quanto à suposta coação no oferecimento dos convites a servidores (eventual perda de função em caso de recusa na aquisição de convite do jantar), a prova testemunhal dos autos, produzida em juízo, indica uma situação de desconforto ou, quando muito, um temor reverencial. Nesse ponto, nos termos do art. 153 do Código Civil, não se qualifica como coação 'a ameaça do exercício normal de um direito, nem o simples temor reverencial'. A própria matéria jornalística não fala em coação, mas apenas revela que o problema do 'churrasco salgado' seria o preço do convite (fl. 42 do anexo 2). De fato, o próprio servidor Nelson Delavald Júnior, supostamente demitido por não ter comprado o convite, esclareceu que tem afinidade com Jair Luiz Muller, pessoa que ofereceu o convite pela segunda vez, em que ele expressamente informou que não era obrigatória a compra do convite.

E conclui:

“Não há, pois, provas nos autos que revelem, com a imprescindível coerência, a alegada coação sobre os servidores, mormente quando se verifica que de 2.500 servidores da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul apenas 19 com função compraram o convite do jantar (de um montante de 189 servidores com FG).”

 

Reunindo as considerações conclui-se pela absolvição de ambos os acusados, pois os fatos apurados, tendo por núcleo a venda de convites, não constituem crime, assim como inexiste prova suficiente da coação, como estabelecem os incs. III e VII do art. 386 do Código de Processo Penal.

Refiro-me ao segundo fato ilícito descrito na denúncia, falsidade ideológica para fins eleitorais, na prestação de contas eleitorais do então candidato.

Coação, já se viu, não houve, como não há falsidade, pois, essencialmente, o recibo representa o valor em dinheiro relativo à aquisição do convite.

Na verdade, o ilustrado Órgão do Ministério Público está desdobrando os mesmos fatos para caracterizar dois ilícitos que não existem nem estão demonstrados.

Assim, como consequência da imputação pelo crime de concussão, surge a denúncia pelo delito de falsidade ideológica para fins eleitorais inscrito no artigo 350 da Lei n. 4.737/65, que, na concepção da denúncia, concretiza-se nos recibos eleitorais da prestação de contas de campanha que continham assinaturas de doadores supostamente coagidos.

José Jairo Gomes, na análise do crime específico do artigo 350 do Código Eleitoral e de seu correspondente no Direito Penal - o Crime de Falsidade Intelectual do artigo 299 do CP -, explica que a falsidade ideológica não se relaciona a vício no documento apresentado, mas à situação fática a que se propõe comprovar:

Na falsidade intelectual, a estrutura ou o suporte do documento (aspectos externos) é impecável – o documento é autêntico, porém o seu teor não corresponde à verdade, é falso, mentiroso.

(GOMES, José Jairo “Crimes Eleitorais e Processo Penal Eleitoral” - p. 207 – 2.ed. - Ed. Atlas.)

O autor prossegue, citando Nelson Hungria:

Fala-se em falsidade ideológica (ou intelectual), que é modalidade do falsum documental, quando à genuidade formal do documento não corresponde a sua veracidade intrínseca. O documento é genuíno ou materialmente verdadeiro (isto é, emana realmente da pessoa que nele figura como seu autor ou signatário), mas o seu conteúdo intelectual não exprime a verdade. Enquanto a falsidade material afeta a autenticidade ou inalterabilidade do documento na sua forma extrínseca e conteúdo intrínseco, a falsidade ideológica afeta-o tão somente na sua ideação, no pensamento que as letras encerram. A genuidade não é garantia de veracidade (…). Na falsidade material, o que se falsifica é a materialidade gráfica, visível do documento (e, portanto, simultânea e necessariamente, o seu teor intelectual); na falsidade ideológica, é apenas o seu teor ideativo.

Desconstituindo-se o pressuposto fático da concussão ou coação, decai o fundamento lógico da alegada falsidade ideológica dos recibos juntados à Prestação de Contas Eleitorais.

Relaciono precedentes da jurisprudência do TSE e do Tribunal Regional Eleitoral de Roraima:

HABEAS CORPUS. AÇÃO PENAL. ART. 350 DO CÓDIGO ELEITORAL. FALSIDADE IDEOLÓGICA ELEITORAL. ATIPICIDADE DA CONDUTA. CONCESSÃO DA ORDEM. 1. A configuração do crime de falsidade ideológica eleitoral exige que a declaração falsa inserida no documento seja apta a provar um fato juridicamente relevante. 2. Na espécie, a declaração falsa do paciente de que não havia efetuado movimentação financeira na conta bancária de campanha é irrelevante no processo de prestação de contas de campanha, visto que o art. 30 da Resolução-TSE 22.715/2008 exige a apresentação do extrato bancário para demonstrar a movimentação financeira. Desse modo, a conduta é atípica, pois não possui aptidão para lesionar a fé pública eleitoral. 3. Ordem concedida.

(TSE - HC: 71519 SP, Relator: Min. FÁTIMA NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 20.03.2013, Data de Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Tomo 77, Data 25.04.2013, Página 63.)

 

Recurso criminal. Crime eleitoral. Falsidade ideológica eleitoral. Doação simulada. Prestação de contas. Ausência de comprovação. Pleno conhecimento da simulação. Vedação de responsabilidade penal objetiva. Provas insuficientes. Princípio in dubio pro reo. Modificação da sentença.

I - Para que a conduta praticada pelo recorrente se amolde no tipo penal citado deverá o agente ter inserido ou feito inserir declaração que sabia ser falsa, ou seja, ter a plena consciência da falsidade da informação ou dado inserido para fins eleitorais.

II - Não se verifica nos autos provas suficientes de que a recorrente tenha efetivamente praticado a conduta de inserir ou fazer inserir dolosamente declaração que sabia ser falsa em prestação de contas de sua campanha eleitoral.

III - A ausência de comprovação do pleno conhecimento por parte do candidato da falsidade da doação feita por meio de cheque, impede a constatação do dolo na conduta do agente, o que levaria a uma responsabilização objetiva, situação vedada pelo nosso ordenamento jurídico.

IV - Cabível também ao presente caso o benefício da dúvida (princípio in dubio pro reo), porquanto não ser possível se perquirir a finalidade do valor objeto da doação.

(RECURSO CRIMINAL n. 1667, Acórdão n. 265/2014 de 07.10.2014, Relator ROOSEVELT QUEIROZ COSTA, Publicação: DJE/TRE-RO - Diário Eletrônico da Justiça Eleitoral, Tomo 196, Data 20.10.2014, Página 4.)

 

Ante o exposto, voto pela absolvição da denúncia do crime de Falsidade Ideológica do artigo 350 do Código Eleitoral, com fundamento no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal.

O terceiro e último fato da denúncia diz respeito à divulgação de propaganda no dia do pleito, em que o candidato teria enviado aproximadamente 15 mil mensagens de texto a eleitores, nos 9 dias que antecederam a eleição, contendo pedido de votos, sendo 4.989 (quatro mil, novecentos e oitenta e nove) somente no dia do pleito, a partir da linha de telefone móvel funcional do candidato.

Superada a hipótese de atipicidade delitiva sustentada pela defesa, em princípio, o ilícito de propaganda eleitoral é doloso e de mera conduta, não exige o convencimento do eleitor ou a obtenção do voto, dispensa resultado material para a sua configuração.

Assim:

Habeas corpus. Prática de boca de urna. Denúncia formal e materialmente viável. Observância ao art. 41 do Código de Processo Penal (art. 357, § 2º, do Código Eleitoral). Ausência dos requisitos para trancamento da ação penal. Crime de mera conduta. Precedentes do Tribunal Superior Eleitoral. Ordem denegada. O trancamento da ação penal só se dá quando, de plano, se evidencia a falta de justa causa para a persecução penal, seja pela atipicidade do fato, seja pela absoluta falta de indício quanto à autoria do crime imputado ou pela extinção da punibilidade. Não é inepta a denúncia que atende aos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, ainda que sucinta (art. 357, § 2º, do Código Eleitoral). O crime de boca de urna independe da obtenção do resultado, que, na espécie em foco, seria o aludido convencimento ou coação do eleitor. Precedentes.

(TSE - HC: 669 RJ, Relator: Min. CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, Data de Julgamento: 23.03.2010, Data de Publicação: DJE - Diário da Justiça Eletrônico, Data 19.05.2010, Página 27.)

Semelhante à distribuição de santinhos, o envio de mensagens de texto contendo pedido de votos para o candidato, no dia do pleito, pode configurar-se como boca de urna, punível com pena de detenção pelo período de seis meses a um ano, com a alternativa de prestação de serviços à comunidade pelo mesmo período, além da multa de cinco a quinze mil UFIRs.

Quanto a esse fato, supera-se a questão da tipicidade, o fato é típico, a partir do que pode-se ponderar pela incidência da Súmula n. 337 do STJ: “É cabível a suspensão condicional do processo na desclassificação do crime e na procedência parcial da pretensão punitiva”.

Chego à parte final do meu voto, em que reúno todas as considerações.

Estando em curso o processo cível-eleitoral, poder-se-ia aguardar ou regular o recebimento da denúncia criminal da qual se desenvolveu todo procedimento, ao fim do qual se constata a inexistência jurídica e criminal dos dois primeiros fatos, a cujo respeito, se pudesse retroagir, a denúncia poderia não ser recebida, sendo fundamento para tanto o Acórdão do Tribunal Superior Eleitoral sobre os mesmos fatos, daí também a justificação para o reconhecimento da Súmula n. 337, já mencionada, que a defesa alega e que o relator admite.

Em conclusão, absolvo pelos dois primeiros fatos, aplicável medida cabível em relação ao terceiro.

 

Des. Dall'Agnol:

Com a vênia, respeitando os entendimentos contrários, estou acompanhando o voto parcial do eminente relator, mas com as achegas de Vossa Excelência, e absolvendo ambos os acusados com encaminhamento tal como feito por Vossa Excelência.

 

Des. Jamil Bannura: 

Senhor Presidente, após ter ouvido atentamente os votos dos que me antecederam, vou divergir parcialmente do eminente relator para acompanhar o Des. Federal Paulo Afonso quanto ao reconhecimento da responsabilidade de Gilmar Sossella.

Todavia, quanto à penalidade a ser imposta aos acusados, acompanho a dosimetria fixada pelo Dr. Luciano Losekann, por se mostrar mais adequada às circunstâncias do caso.

Divirjo, entretanto, no tocante à determinação de cumprimento imediato da pena, pois, no ponto, comungo integralmente com as considerações tecidas pela Dra. Gisele Anne no julgamento do Recurso Criminal n. 33-95, julgado por esta Corte na data de 15.6.2016:

Portanto, por maioria de sete votos a quatro, o Pleno retornou ao entendimento anterior daquela Corte, afirmando ser possível a execução imediata da pena aplicada em decisão condenatória confirmada em segunda instância.

E essa é a questão com a qual nos deparamos agora: aplicar (ou não) a recente decisão do STF e determinar a execução imediata da pena.

Pois bem, adianto que me inclino pela não aplicação. Pedindo redobradas vênias à maioria dos ministros e ministras da Suprema Corte, entendo que determinar a imediata execução da pena, antes do trânsito em julgado da persecução criminal, é violar a cláusula constitucional consagradora da presunção de inocência disposta no art. 5º, inc. LVII, de nossa Constituição Federal, o qual preceitua que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

Segundo sintetizado no voto do ministro Teori:

[...] o tema relacionado com a execução provisória de sentenças penais condenatórias envolve reflexão sobre (a) o alcance do princípio da presunção da inocência aliado à (b) busca de um necessário equilíbrio entre esse princípio e a efetividade da função jurisdicional penal, que deve atender a valores caros não apenas aos acusados, mas também à sociedade, diante da realidade de nosso intricado e complexo sistema de justiça criminal.

Assim, após muito refletir sobre o tema, entendi por acompanhar a tese que restou vencida no julgamento do HC 126.292.

Em minha compreensão, não podemos afastar o princípio da presunção de inocência, positivado no inc. LVII do art. 5º da Constituição Federal de 1988, sob pena de retroagirmos a um sistema de desrespeito dos direitos fundamentais insculpidos na Carta Magna.

E nesse ponto, compactuo com a inteligência do ministro Celso de Mello, ao afirmar que:

[...] a Constituição brasileira promulgada em 1988 e destinada a reger uma sociedade fundada em bases genuinamente democráticas é bem o símbolo representativo da antítese ao absolutismo do Estado e à força opressiva do poder, considerado o contexto histórico que justificou, em nosso processo político, a ruptura com paradigmas autocráticos do passado e o banimento, por isso mesmo, no plano das liberdades públicas, de qualquer ensaio autoritário de uma inaceitável hermenêutica de submissão, somente justificável numa perspectiva “ex parte principis”, cujo efeito mais conspícuo, em face daqueles que presumem a culpabilidade do réu, será a virtual (e gravíssima) esterilização de uma das mais expressivas conquistas históricas da cidadania: o direito do indivíduo de jamais ser tratado, pelo Poder Público, como se culpado fosse (HC 126.292).

Ao defender a redação constitucional do princípio da presunção de inocência, o decano da mais alta Corte do nosso Poder Judiciário traz doutrina do eminente Professor LUIZ FLÁVIO GOMES, em obra escrita com o Professor VALÉRIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI, (“Direito Penal – Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos/Pacto de San José da Costa Rica”, vol. 4/85-91, 2008, RT). Assim advertem os notáveis doutrinadores:

O correto é mesmo falar em princípio da presunção de inocência (tal como descrito na Convenção Americana), não em princípio da não-culpabilidade (…).

Trata-se de princípio consagrado não só no art. 8º, 2, da Convenção Americana senão também (em parte) no art. 5º, LVII, da Constituição Federal, segundo o qual toda pessoa se presume inocente até que tenha sido declarada culpada por sentença transitada em julgado. Tem previsão normativa desde 1789, posto que já constava da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Do princípio da presunção de inocência (‘todo acusado é presumido inocente até que se comprove sua culpabilidade’) emanam duas regras: (a) regra de tratamento e (b) regra probatória. ‘Regra de tratamento’: o acusado não pode ser tratado como condenado antes do trânsito em julgado final da sentença condenatória (CF, art. 5º, LVII).

O acusado, por força da regra que estamos estudando, tem o direito de receber a devida ‘consideração’ bem como o direito de ser tratado como não participante do fato imputado. Como ‘regra de tratamento’, a presunção de inocência impede qualquer antecipação de juízo condenatório ou de reconhecimento da culpabilidade do imputado, seja por situações, práticas, palavras, gestos etc., podendo-se exemplificar: a impropriedade de se manter o acusado em exposição humilhante no banco dos réus, o uso de algemas quando desnecessário, a divulgação abusiva de fatos e nomes de pessoas pelos meios de comunicação, a decretação ou manutenção de prisão cautelar desnecessária, a exigência de se recolher à prisão para apelar em razão da existência de condenação em primeira instância etc. É contrária à presunção de inocência a exibição de uma pessoa aos meios de comunicação vestida com traje infamante (Corte Interamericana, Caso Cantoral Benavides, Sentença de 18.08.2000, § 119).

Por esse motivo, o ministro Celso de Mello entende que:  

[...] a consagração constitucional da presunção de inocência como direito fundamental de qualquer pessoa – independentemente da gravidade ou da hediondez do delito que lhe haja sido imputado – há de viabilizar, sob a perspectiva da liberdade, uma hermenêutica essencialmente emancipatória dos direitos básicos da pessoa humana, cuja prerrogativa de ser sempre considerada inocente, para todos e quaisquer efeitos, deve prevalecer, até o superveniente trânsito em julgado da condenação criminal, como uma cláusula de insuperável bloqueio à imposição prematura de quaisquer medidas que afetem ou restrinjam a esfera jurídica das pessoas em geral (HC 126.292).

 

 Ou seja, ninguém pode ser considerado como culpado antes que sobrevenha contra ele condenação penal transitada em julgado. E esse tem sido o entendimento pacificado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: 

O POSTULADO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA IMPEDE QUE O ESTADO TRATE, COMO SE CULPADO FOSSE, AQUELE QUE AINDA NÃO SOFREU CONDENAÇÃO PENAL IRRECORRÍVEL.

– A prerrogativa jurídica da liberdade – que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) – não pode ser ofendida por interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais que culminem por consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos e garantias fundamentais proclamados pela Constituição da República, a ideologia da lei e da ordem. Mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, e até que sobrevenha sentença penal condenatória irrecorrível, não se revela possível – por efeito de insuperável vedação constitucional (CF, art. 5º, LVII) – presumir-lhe a culpabilidade. Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio constitucional da presunção de inocência, em nosso sistema jurídico, consagra, além de outras relevantes consequências, uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, por sentença do Poder Judiciário. Precedentes. (HC 96.095/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

 

Aqui, cumpre fazer uma ressalva. A tese vencedora exposta pelo ministro Teori no julgamento do HC 126.292, embora extremamente bem fundamentada – aliás, como costumam ser os votos daquele eminente julgador –, constitui precedente isolado naquela Corte constitucional. Precedente, diga-se, sem caráter vinculante. Precedente que se constitui em orientação, tal como sugeriu o ministro Teori em sua manifestação: Essas são razões suficientes para justificar a proposta de orientação, que ora apresento, restaurando o tradicional entendimento desta Suprema Corte, no seguinte sentido: a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência. Precedente que não constitui súmula vinculante daquela Corte. Lembro que a súmula vinculante, instituída a partir da inclusão do art. 103-A na Constituição Federal por meio da EC 45/2004, confere ao STF, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, a possibilidade de editar verbetes com efeito vinculante que contêm, de forma concisa, a jurisprudência consolidada daquela Corte sobre determinada matéria. A edição, o cancelamento e a revisão de súmulas vinculantes têm de ser aprovados por, no mínimo, oito ministros do STF, o equivalente a dois terços da composição daquele Tribunal, após manifestação do procurador-geral da República. A propósito, ressalto: como acima referido, a edição de súmula vinculante tem que ser aprovada por no mínimo oito dos onze ministros do STF. O resultado da votação do HC 126.292, como já apontado, foi por sete votos a quatro. Assim, na atual composição do Supremo, tendo em vista a posição dos ministros exposta no HC 126.292, não se mostraria viável a edição de súmula vinculante dispondo que a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência.

Por essas razões, entendo que devemos encarar o precedente com a devida cautela, visto que a numerosa e consolidada jurisprudência da Suprema Corte traz compreensão diversa.

Cabe igualmente registrar que, em minha compreensão, o preceito constitucional disposto no art. 5º, inc. LVII, não permite interpretações.

Segundo o ministro Marco Aurélio há uma máxima, em termos de noção de interpretação, de hermenêutica, segundo a qual, onde o texto é claro e preciso, cessa a interpretação, sob pena de se reescrever a norma jurídica, e, no caso, o preceito constitucional. Há de vingar o princípio da autocontenção (HC 126.292).

E esse também é o entendimento do ministro Ricardo Lewandowski (HC 126.292):

Assim como fiz, ao proferir um longo voto no HC 84.078, relatado pelo eminente Ministro Eros Grau, eu quero reafirmar que não consigo, assim como expressou o Ministro Marco Aurélio, ultrapassar a taxatividade desse dispositivo constitucional, que diz que a presunção de inocência se mantém até o trânsito em julgado. Isso é absolutamente taxativo, categórico; não vejo como se possa interpretar esse dispositivo. Voltando a, talvez, um ultrapassadíssimo preceito da antiga escola da exegese, eu diria que in claris cessat interpretatio. E aqui nós estamos, evidentemente, in claris, e aí não podemos interpretar, data venia.

E no mesmo norte segue a compreensão do ministro Celso de Mello (HC 126.292):

Veja-se, pois, que esta Corte, no caso em exame, está a expor e a interpretar o sentido da cláusula constitucional consagradora da presunção de inocência, tal como esta se acha definida pela nossa Constituição, cujo art. 5º, inc. LVII (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”), estabelece, de modo inequívoco, que a presunção de inocência somente perderá a sua eficácia e a sua força normativa após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

É por isso que se mostra inadequado invocar-se a prática e a experiência registradas nos Estados Unidos da América e na França, entre outros Estados democráticos, cujas Constituições, ao contrário da nossa, não impõem a necessária observância do trânsito em julgado da condenação criminal.

Mais intensa, portanto, no modelo constitucional brasileiro, a proteção à presunção de inocência.

Desse modo, infere-se que a norma disposta no art. 5º, inc. LVII, da Constituição Federal é de evidente clareza. Não há, portanto, o que nela ser interpretado.

Vale lembrar que esta foi a intenção do constituinte originário. Intenção baseada em componentes de índole histórica, política e sociológica prevalentes naquele momento pelo qual atravessava o País, ao final da década de oitenta do século passado. E não vejo, na época contemporânea, elementos que justifiquem a alteração de tal preceito constitucional.

E nesse ponto, faço minhas as palavras do ministro Marco Aurélio (HC 126.292):

Reconheço que a Justiça é morosa, que o Estado, em termos de persecução criminal, é moroso. Reconheço, ainda, que, no campo do Direito Penal, o tempo é precioso, e o é para o Estado-acusador e para o próprio acusado, implicando a prescrição da pretensão punitiva, muito embora existam diversos fatores interruptivos do prazo prescricional. Reconheço que a época é de crise. Crise maior. Mas justamente, em quadra de crise maior, é que devem ser guardados parâmetros, princípios e valores, não se gerando instabilidade, porque a sociedade não pode viver aos sobressaltos, sendo surpreendida.

Portanto, devemos respeitar o princípio da presunção de inocência tal como insculpido na Carta Magna, pois aquela é a redação derivada do constituinte originário. Redação inspirada na realidade de nosso país, e não na experiência vivenciada em nações como a Inglaterra, França ou Estados Unidos.

E atento para a realidade nacional, o ministro Lewandowski assim mostrou sua perplexidade diante da guinada jurisprudencial da Corte Suprema (HC 126.292):

Eu também, respeitosamente, queria manifestar a minha perplexidade desta guinada da Corte com relação a esta decisão paradigmática, minha perplexidade diante do fato de ela ser tomada logo depois de nós termos assentado, na ADPF 347 e no RE 592.581, que o sistema penitenciário brasileiro está absolutamente falido. E mais, nós afirmamos, e essas são as palavras do eminente Relator naquele caso, que o sistema penitenciário brasileiro se encontra num estado de coisas inconstitucional. Então, agora, nós vamos facilitar a entrada de pessoas neste verdadeiro inferno de Dante, que é o nosso sistema prisional? Ou seja, abrandando esse princípio maior da nossa Carta Magna, uma verdadeira cláusula pétrea. Então isto, com todo o respeito, data venia, me causa a maior estranheza.

Apenas para relembrar, na ADPF 347, interposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), o STF decretou o “estado de coisas inconstitucional”, e determinou medidas de intervenção orçamentária e estrutural no sistema prisional pátrio, resultando na exigência de que juízes realizem a audiência de custódia, bem como na liberação da verba do Fundo Penitenciário para a sua finalidade precípua, sem qualquer tipo de contingenciamento. Naquela oportunidade, o Presidente da Corte Ricardo Lewandowski esclareceu que “o estado de coisas inconstitucional (…) foi uma medida desenvolvida pela Corte Nacional da Colômbia a qual identificou um quadro insuportável e permanente de violação de direitos fundamentais a exigir intervenção do Poder judiciário de caráter estrutural e orçamentário”.

Nesse cenário, cumpre igualmente trazer as considerações do ministro Lewandowski a respeito do sistema prisional pátrio (HC 216.292):

Eu queria, também, finalizar e dizer o seguinte: eu tenho trazido sempre a esta egrégia Corte alguns números que são muito impressionantes relativos ao nosso sistema prisional, dizendo que nós temos hoje no Brasil a quarta população de presos, em termos mundiais, logo depois dos Estados Unidos, da China e da Rússia, nós temos seiscentos mil presos. Desses seiscentos mil presos, 40%, ou seja, duzentos e quarenta mil presos são presos provisórios. Com essa nossa decisão, ou seja, na medida que nós agora autorizamos, depois de uma decisão de segundo grau, que as pessoas sejam presas, certamente, a esses duzentos e quarenta mil presos provisórios, nós vamos acrescer dezenas ou centenas de milhares de novos presos.'

As estatísticas trazidas pelo eminente ministro encontram consonância com levantamento realizado pela Fundação Getúlio Vargas com o objetivo de analisar dados detalhados da quantidade, espécie, origem, resultado e fundamento da dos processos de habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal entre os anos de 2006 e 2014.

O objetivo específico da referida pesquisa foi a apresentação de medidas concretas capazes de aperfeiçoar o sistema de prestação jurisdicional, sem que se inviabilize o acesso à jurisdição nem se limitem direitos e garantias fundamentais.

O relatório final do trabalho apresenta propostas com base nos dados coligidos pela equipe de pesquisa e derivam tanto da análise quantitativa como da análise qualitativa (acesso pelo link: http://direitorio.fgv.br/sites/direitorio.fgv.br/files/u100/relatorio_final_pesquisa_hc_ipea-mj_-_junho_-_2014_-_para_publicacao.pdf).

No mesmo sentido, cabe trazer o alerta registrado pelo ministro Lewandowski em seu voto na ADPF 144/DF, demonstrando, por meio de dados estatísticos, a importância de aguardar-se o trânsito em julgado da condenação criminal para, em respeito ao princípio da presunção de inocência, determinar a execução da pena. Vejamos:

[...] trago, finalmente, nessa minha breve intervenção, à consideração dos eminentes pares, um dado estatístico, elaborado a partir de informações veiculadas no portal de informações gerenciais da Secretaria de Tecnologia de Informação do Supremo Tribunal Federal (...). De 2006, ano em que ingressei no Supremo Tribunal Federal, até a presente data, 25,2% dos recursos extraordinários criminais foram providos por esta Corte, e 3,3% providos parcialmente. Somando-se os parcialmente providos com os integralmente providos, teremos o significativo porcentual de 28,5% de recursos. Quer dizer, quase um terço das decisões criminais oriundas das instâncias inferiores foi total ou parcialmente reformado pelo Supremo Tribunal Federal nesse período.

E o alerta é de extrema importância, pois segundo afirmou o ministro, 28,5% dos recursos criminais analisados pelo Supremo foram parcial ou integralmente providos. Ou seja, cerca de um terço das decisões criminais proferidas por instâncias inferiores foram total ou parcialmente reformadas pelo STF.

E é por esse motivo que o ministro Celso de Mello sustenta que "o Supremo Tribunal Federal tem repelido, por incompatíveis com esse direito fundamental (da presunção de inocência), restrições de ordem jurídica somente justificáveis em face da irrecorribilidade de decisões judiciais (HC 126.292)".

E, por oportuno, peço vênia para tomar como minhas as palavras de lástima proferidas pelo ilustre decano da nossa mais alta Corte judiciária:

Lamento (...) registrar-se, em tema tão caro e sensível às liberdades fundamentais dos cidadãos da República, essa preocupante inflexão hermenêutica, de perfil nitidamente conservador e regressista, revelada em julgamento que perigosamente parece desconsiderar que a majestade da Constituição jamais poderá subordinar-se à potestade do Estado.

E ainda que, eminentes colegas, desconsiderássemos o argumento constitucional alicerçado na presunção de inocência, do mesmo modo a execução antecipada da condenação estaria em dissonância com nosso ordenamento positivo. Isto porque a Lei 7.210/84, denominada Lei de Execução Penal (LEP), estabelece o trânsito em julgado como pressuposto inarredável de legitimação da execução de sentença condenatória.

Note-se que a regra disposta no art. 105 do referido ordenamento condiciona a execução da pena à ocorrência do trânsito em julgado da decisão penal condenatória:

Art. 105. Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução. 

No mesmo sentido é a exigência ditada pelo art. 147 da LEP em respeito à execução de penas restritivas de direitos:

Art. 147. Transitada em julgado a sentença que aplicou a pena restritiva de direitos, o Juiz da execução, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, promoverá a execução, podendo, para tanto, requisitar, quando necessário, a colaboração de entidades públicas ou solicitá-la a particulares. 

Somado a isso, cumpre observar que a decisão tomada pelo STF no HC 126.292, ao menos pelo que se tem notícia, não abordou a (in)constitucionalidade do art. 283 do CPP, com a redação dada pela Lei 12.403/2011. Tal norma penal assim dispõe:

Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.

À vista disso, conclui-se que tal normativa encontra-se em plena vigência, mostrando consonância com o princípio da presunção de inocência, pois estabelece que ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado.

Nota-se que a norma possibilita a prisão antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória apenas em duas hipóteses: prisão temporária ou prisão preventiva – e nenhuma destas situações enquadra-se ao caso sob análise.

Infere-se, portanto, que independente do caráter do fundamento jurídico adotado (seja de ordem legal, seja de cunho constitucional), nosso sistema penal inadmite que qualquer pena seja executada (seja ela de prisão, seja restritiva de direitos) sem a existência do título condenatório definitivo, o qual, na minha compreensão, decorre do trânsito em julgado da decisão penal condenatória.

Assim, considero que a execução da sentença penal condenatória, antes de consumado o seu trânsito em julgado, mostra-se evidentemente incompatível com o direito fundamental da presunção de inocência assegurado aos réus pela Constituição da República, em seu art. 5º, inc. LVII, motivo pelo qual entendo improcedente o pedido de execução provisória da pena formulado pela Procuradoria Regional Eleitoral.

Embora a Suprema Corte, ao julgar o ARE 964.246 em regime de repercussão geral, tenha firmado a tese de que “a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau recursal, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo art. 5º, inc. LVII, da Constituição Federal”, não extraio dessa conclusão uma imposição ou uma obrigatoriedade de execução imediata do acórdão recorrido.

O STF apenas afirmou que a execução provisória do acórdão condenatório não ofende o art. 5º, inc. LVII, da Constituição Federal, mas não estabeleceu a sua execução obrigatória. Primeiro, porque tratou tal prisão como “provisória”; segundo, porque está em plena vigência no ordenamento jurídico o art. 283 do Código de Processo Penal, estabelecendo que “ninguém poderá ser preso senão [...] em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado [...]”.

Colho aqui as palavras proferidas pelo Ministro Roberto Barroso no supracitado julgamento para registrar que “a presunção de inocência é princípio (e não regra) e, como tal, pode ser aplicada com maior ou menor intensidade quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes”.

Por certo que as regras são insuficientes para abranger as mais variadas situações que podem nascer no seio social e, tratando-se a presunção de inocência de um princípio a ser sopesado com outros, cabe ao julgador realizar tal ponderação no caso concreto, para concluir se determinado acórdão condenatório deve ou não ser imediatamente executado.

Vale dizer, cabe ao julgador, no caso concreto, analisar se as provas produzidas e as circunstâncias fáticas justificam a execução provisória da pena, ou se o acusado somente dará início ao cumprimento da pena no momento estabelecido no art. 283 do Código de Processo Penal: após o trânsito em julgado da decisão condenatória.

Na hipótese, tendo em vista o caráter fundamental da liberdade e da presunção de inocência, conforme acima exposto, não verifico nos autos circunstâncias excepcionais, capazes de justificar a execução provisória da pena, de forma que reconheço aos acusados o direito de, somente após o trânsito em julgado, iniciar o cumprimento das penalidades impostas.

DIANTE DO EXPOSTO, senhor Presidente:

(a) Acompanho o relator quanto à rejeição das preliminares, à absolvição do réu Gilmar Sossela no tocante ao crime previsto no art. 350 do Código Eleitoral e à condenação de Artur Alexandre Souto pela prática do delito tipificado no art. 316, caput, do Código Penal;

(b) Acompanho o voto proferido pelo Des. Paulo Afonso, para reconhecer a responsabilidade de Gilmar Sossella, condenando-o pelos crimes tipificados no art. 316 do Código Penal e no art. 39, § 5º, inc. III, da Lei n. 9.504/97;

(c) Acompanho o voto proferido pelo Dr. Luciano Losekann quanto à fixação das penalidades impostas;

(d) Divirjo do relator, para reconhecer aos ora condenados o direito de somente iniciar o cumprimento da pena após o trânsito em julgado da decisão.

 

Des. Eduardo Bainy:

Sr. Presidente, o meu voto é no mesmo sentido do Des. Jamil. Acompanho o Des. Losekann, com a ressalva de que também não admito a execução provisória.

 

Des. Marchionatti:

Ao final, após coleta dos votos, consignou o Presidente que o julgamento foi concluído por maioria de votos, nos seguintes termos:

Por unanimidade, rejeitaram as questões preliminares e absolveram o réu Gilmar Sossella do delito do art. 350 do Código Eleitoral (falsidade ideológica). Por maioria, condenaram o réu Gilmar Sossella pela prática dos delitos dos arts. 316 do Código Penal (concussão) e 39, § 5º, da Lei n. 9.504/97 (propaganda eleitoral no dia do pleito), com os votos dos Desembargadores Eleitorais Paulo Afonso Brum Vaz, Luciano André Losekann, Jamil Andraus Hanna Bannura e Eduardo Augusto Dias Bainy. Por maioria, condenaram o réu Artur Alexandre Souto pela prática do delito do art. 316 do Código Penal (concussão), com os votos dos Desembargadores Eleitorais Paulo Afonso Brum Vaz, Luciano André Losekann, Jamil Andraus Hanna Bannura, Eduardo Augusto Dias Bainy e do relator – Des. Silvio Ronaldo Santos de Moraes. Proferiram votos absolutórios para ambos os réus, com relação aos delitos dos arts. 316 do Código Penal e 350 do Código Eleitoral o Presidente – Des. Carlos Cini Marchionatti e o Des. Jorge Luís Dall'Agnol. Também por maioria, para ambos os acusados, decidiram pela não execução provisória da pena, conforme os votos dos Desembargadores Paulo Afonso, Jamil Bannura e Eduardo Bainy, acrescidos dos votos absolutórios dos Desembargadores Marchionatti e Dall'Agnol, vencidos os Desembargadores Silvio Ronaldo e Losekann. Igualmente, por maioria, decidiram pela inaplicabilidade da perda da função pública prevista no art. 92 do Código Penal, conforme os votos do relator, Desembargador Silvio Ronaldo, e dos Desembargadores Paulo Afonso, Marchionatti e Dall'Agnol, vencidos os Desembargadores Losekann, Jamil Bannura e Eduardo Bainy.

Por maioria, as penas individualizam-se conforme os votos dos Desembargadores Losekann, Jamil Bannura, Paulo Afonso e Eduardo Bainy:

GILMAR SOSSELLA: pena definitiva de 3 anos e 3 meses de reclusão e detenção (iniciando por reclusão), em regime aberto, e 12 dias-multa à razão de 2 salários mínimos vigentes à época do fato, e pagamento de multa de R$ 10.000,00.

SUBSTITUIÇÃO: prestação de serviços à comunidade por, no mínimo, 7 horas por semana, e pagamento de prestação pecuniária de 50 (cinquenta) salários mínimos para o delito de concussão e de 30 (trinta) salários mínimos para o crime de propaganda, totalizando 80 (oitenta) salários mínimos à época do efetivo pagamento.

 

ARTUR ALEXANDRE SOUTO: pena definitiva de 2 anos e 8 meses de reclusão e 12 dias-multa, à razão de 1 salário mínimo vigente à época do fato, em regime inicial aberto.

SUBSTITUIÇÃO: prestação de serviços à comunidade por, no mínimo, 7 horas por semana, e pagamento de prestação pecuniária de 50 (cinquenta) salários mínimos à data do efetivo pagamento.