RE - 48019 - Sessão: 12/12/2017 às 17:00

RELATÓRIO

Trata-se de recurso interposto por VERA LÚCIA LUCION contra a sentença, fls. 459-478, do d. Juízo da 100ª Zona Eleitoral, a qual julgou procedente a Ação de Investigação Judicial Eleitoral proposta pelo MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL, em decisão que reconheceu a prática de abuso de poder econômico e de captação ilícita de sufrágio e cassou o diploma, determinou a inelegibilidade pelo período de 8 (oito) anos, bem como o pagamento de multa no valor equivalente a 5.000 (cinco mil) UFIRs.

Nas razões para a reforma, fls. 495-537, sustenta uma série de nulidades, quais sejam: 1) por “inversão do silogismo”; 2) por “não apreciação das teses defensivas”; 3) por “ausência de oitiva da representada”, 4) por inobservância do devido processo legal; 5) por uso indevido dos depoimentos da fase policial como elemento de convicção; 6) pelo fato de que a sentença foi ultra petita; e 7) pela “reforma da sentença pelo próprio julgador”. No mérito, requer a exclusão da prova oral da fase policial, entende que a sentença fez “pressuposições” sem prova, eis que estaria “comprometida” com a tese ministerial. Traz considerações sobre a prova testemunhal havida, para aduzir que não houve participação, conhecimento ou autorização, de parte da recorrente, nos fatos. Sustenta, ainda, ausência de reflexo na liberdade do voto e a impossibilidade de atribuir-se à recorrente o rol de veículos abastecidos. Entende não preenchidos os requisitos para a configuração do art. 41-A da Lei n. 9.504/97, bem como não configurada a prática de abuso de poder econômico, considerados os valores envolvidos. Alega que o art. 14, § 9º, da CF estabelece valoração para a declaração de inelegibilidade, em interpretação combinada com o art. 22, inc. XVI, da LC n. 64/90. Questiona a aplicação cumulativa das sanções, aquilatando-se às particularidades de cada processo. Requer, preferencialmente, a anulação da sentença ou, subsidiariamente, o conhecimento e provimento do apelo, para afastar as penas impostas e declarar nula a decisão prolatada em sede de embargos de declaração.

Após as contrarrazões, fls. 552-558, a Procuradoria Regional Eleitoral exarou parecer pelo desprovimento do recurso. (fls. 562-570).

É o relatório.

 

VOTO

O recurso é tempestivo. A decisão referente aos embargos declaratórios opostos pelo MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL foi publicada no DEJERS na data de 05.9.2017, fl. 490, e a irresignação foi apresentada no dia 08.9.2017, fl. 495.

Há uma série de questões preliminares suscitadas pela recorrente VERA LÚCIA LUCION, todas elas vindicando a nulidade da sentença, conforme relatado.

À análise.

1 - “Inversão de silogismo”

Em resumo, a recorrente entende que a decisão recorrida padece de nulidade pois teria invertido “o silogismo que informa a lógica, pois antes de identificar fundamentos anunciou: 'as provas produzidas, tanto documentais como orais, comprovam os fatos descritos na peça pórtica”.

Sem razão. Trata-se de mera técnica de redação, não desobediente ao art. 93, inc. IX, da Constituição Federal, ou aos arts. 11 e 489 do Código de Processo Civil. A magistrada apenas indicou, já ao início da fundamentação, a conclusão à qual chegou da análise dos autos, exame este que não é realizado, por óbvio, de maneira concomitante à elaboração do texto, em si mesmo, da decisão.

A recorrente alega que “quando na formação do raciocínio a pessoa antecipa sua conclusão, todo o restante do texto será montado para justificar aquilo que antecipou”, o que de fato é verdade.

Contudo, olvida que o momento da construção do raciocínio (exame dos autos) não é, necessariamente, o mesmo da exposição do raciocínio (redação da sentença). Tal diferenciação ocorre amiúde no campo jurídico e ironicamente as próprias razões de recurso assim procedem: primeiro afirmam algo, para na sequência explicar o motivo pelo qual a afirmação ocorreu. Por exemplo ao final da fl. 498, oportunidade em que, ao iniciar o ponto 2.2 das razões, a recorrente afirma que “a julgadora estava tão comprometida com sua afirmativa inicial, que deixou de examinar os argumentos apresentados pela defesa”.

Mera técnica de redação. Afasto a preliminar.

2 – Ausência da oitiva da representada, inobservância do devido processo legal, reforma da sentença pelo próprio julgador e uso indevido dos depoimentos da fase policial como elemento de convicção da julgadora

A análise de quatro preliminares de nulidade será realizada em conjunto, pela nítida correlação que guardam entre si. Resumidamente, a recorrente entende não ter havido obediência ao devido processo legal, consubstanciada em uma série de ocorrências.

Ao que importa: a partir de denúncias recebidas pela Polícia Civil de Tapejara, no sentido de que estariam sendo distribuídos “vales” para abastecimento de combustível em postos do município, a autoridade policial instaurou inquérito, no bojo do qual requereu a expedição de mandados de busca e apreensão. Foram apreendidos documentos e, a partir disso, realizou-se a oitiva de testemunhas, ainda em sede policial.

O material integra a documentação apresentada pelo Ministério Público Eleitoral juntamente com a petição inicial e foi inserido no contexto probatório da demanda, com legitimidade inarredável, pois não constatada ilicitude em sua colheita.

Note-se, ademais, que, ato contínuo à apresentação da petição inicial, e devidamente citada, a representante apresentou defesa, fls. 136-149, na qual pugnou pela produção de provas e oitiva de testemunhas, sem requerer o próprio depoimento.

Não pode, portanto, atribuir ao juízo a inocorrência da realização da prova. As provas das quais a recorrente requereu produção foram, efetivamente, construídas, como a oitiva das testemunhas que arrolou, fl. 149.

Nessa linha, e se tratando o feito de natureza cível, não cabe falar em nulidade pela ausência de depoimento pessoal se a própria defesa técnica, nas oportunidades de manifestação conferidas pelo juízo, não pugnou por tal meio de prova, podendo-se cogitar inclusive de que, naquele momento, a opção tratou-se de estratégia da defesa.

A questão precluiu, nitidamente.

Finalmente, a recorrente desdobra em duas preliminares o mesmo fato e entende desatendido o devido processo legal, pois não conferido o direito de apresentar contrarrazões, conforme o art. 1023, § 2º, o qual prevê que a possibilidade de efeito modificativo via embargos de declaração deva ser precedida de contraditório, de forma que teria havido “reforma da sentença pelo próprio julgador”.

Ocorre que, conforme fundamentado na decisão constante às fls. 488-489, tratou-se de erro material. Foi apenas explicitado o momento da geração dos efeitos da sentença prolatada.

Ou seja: em primeiro lugar, a concessão de oportunidade de manifestação pela recorrida sequer teria utilidade, eis que os embargos tiveram função de correção de mero equívoco, de uma inexatidão, cuja possibilidade de correção é admitida inclusive de ofício, a teor do art. 494, inc. I, do CPC. Aliás, o Ministério Público sequer necessitaria ter oposto embargos de declaração, mas apenas requerer, em petição avulsa, que fosse esclarecida a circunstância do início dos efeitos da cassação da sentença, o que por si só já afasta a pretensa aplicação do art. 1023, § 2º.

Finalmente, friso que a jurisprudência do TSE indica que, para que seja decretada a nulidade de ato processual ao argumento de cerceamento de defesa, deve ser demonstrada a efetiva ocorrência de prejuízo, conforme o art. 219 do Código Eleitoral. Nessa linha, precedente:

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2014. GOVERNADOR. REPRESENTAÇÃO. CONDUTA VEDADA AOS AGENTES PÚBLICOS. PUBLICIDADE INSTITUCIONAL. ART. 73, VI, B, DA LEI Nº 9.504/97. CONFIGURAÇÃO. MULTA. DESPROVIMENTO.

1. O recurso cabível no caso é o especial, pois na inicial pugnou-se apenas pela imposição de multa aos agravantes.

2. A decretação de nulidade de ato processual sob a alegação de cerceamento de defesa pressupõe a efetiva demonstração de prejuízo (art. 219 do Código Eleitoral). No caso, a despeito da adoção do rito do art. 96 da Lei nº 9.504/97 em detrimento do previsto no art. 22 da LC nº 64/90, a matéria versada é exclusiva de direito, sendo irrelevante para o deslinde da controvérsia a produção de outras provas.

3. A conduta vedada do art. 73, VI, b, da Lei nº 9.504/97 - proibição de publicidade institucional nos três meses que antecedem a eleição - possui natureza objetiva e configura-se independentemente do momento em que autorizada a publicidade, bastando a sua manutenção no período vedado. Precedentes.

4. O fato de a publicidade ter sido veiculada na página oficial do Governo do Paraná no facebook, rede social de cadastro e acesso gratuito, não afasta a ilicitude da conduta.

5. Manutenção da multa imposta no mínimo legal a cada um dos agravantes.

6. Agravo regimental desprovido.

Decisão: O Tribunal, por unanimidade, desproveu o agravo regimental, nos termos do voto do Relator. (Grifei.)

(Acórdão de 26.02.2015. Relator Min. João Otávio De Noronha. Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Tomo 55, Data 20.03.2015, Página 60/61.)

Afasto, portanto, as preliminares de ausência da oitiva da representada, inobservância do devido processo legal, reforma da sentença pelo próprio julgador e uso indevido dos depoimentos da fase policial como elemento de convicção.

3 – Preliminar de ausência de análise das teses defensivas

Nota-se, pelo teor da sentença, que a alegada ausência de análise das teses defensivas, na verdade, diz respeito ao juízo de mérito da causa, e lá será enfrentada.

4 – Sentença ultra petita

Em resumo, a preliminar suscita nulidade, ao fundamento de que a condenação extrapolou as penas requeridas na petição inicial pelo Ministério Público Eleitoral.

O argumento não merece guarida.

É pacífica a jurisprudência no sentido de que o demandado, nos feitos de natureza eleitoral, deve defender-se dos fatos a ele imputados, não se prendendo, por exemplo, à capitulação legal indicada na petição inicial:

ELEIÇÕES 2012. CANDIDATOS ELEITOS. PREFEITO. VICE-PREFEITO. REPRESENTAÇÃO. CONDUTA VEDADA. PUBLICIDADE INSTITUCIONAL REALIZADA EM PERÍODO VEDADO.

1. A parte se defende dos fatos alegados, não importando a capitulação legal que o autor da ação lhe tenha atribuído na inicial. Preliminar de cerceamento de defesa rejeitada.

2. O prévio conhecimento dos beneficiários da propaganda institucional, devidamente comprovado nos autos, é suficiente para atrair a responsabilidade sobre a realização da propaganda institucional em período vedado.

3. Inexistem motivos para reduzir o valor da multa aplicada, uma vez que a Corte Regional, empregando o princípio da proporcionalidade, considerou as peculiaridades do caso concreto. A mera repetição de razões já exaustivamente apreciadas é insuficiente para afastar os fundamentos da decisão agravada.

4. Agravo regimental desprovido.

(RESPE - Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral n. 52884 - NHANDEARA – SP. Acórdão de 28.11.2016 - Relator Min. Gilmar Ferreira Mendes. DJE de 21.3.2017.)

 

Ora, com muito mais razão há de ser afastada a preliminar do caso dos autos, pois o Ministério Público Eleitoral capitula, ainda que em tese, corretamente as condutas atribuídas à VERA. Da mesma forma, as penas imputadas encontram-se previstas na legislação eleitoral e são compatíveis com as condutas, repito, ainda que hipoteticamente.

Afasto, portanto, todas as preliminares.

Mérito

A questão de fundo diz com os fatos indicados e a ocorrência, ou inocorrência, de atos contrários à legislação eleitoral.

E a recorrente, VERA LÚCIA LUCION, foi condenada pela prática de captação ilícita de sufrágio, art. 41-A da Lei n. 9.504/97, e abuso de poder econômico, com suporte legal no art. 22, caput e inc. XIV, da LC n. 64/90. Como sanções, a cassação do mandato de vereadora, a aplicação de multa no valor equivalente a 5.000 UFIRs e, como efeito da condenação, a declaração de inelegibilidade pelo período de 8 (oito) anos.

Os fatos apontados pelo Ministério Público Eleitoral, e reconhecidos pela magistrada, são, em resumo e infelizmente, situação um tanto comum de ser analisada por este Tribunal: esquema de distribuição de combustível a eleitores.

Ao esquadro legal, doutrinário e jurisprudencial das práticas reconhecidas pelo juízo a quo:

1 – Da captação ilícita de sufrágio

A caracterização legal das condutas apontadas como irregulares versaria acerca da infração eleitoral prevista no art. 41–A da Lei n. 9.504/97, que assim dispõe:

Art. 41-A. Ressalvado o disposto no art. 26 e seus incisos, constitui captação

de sufrágio, vedada por esta Lei, o candidato doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive, sob pena de multa de mil a cinquenta mil Ufir, e cassação do registro ou do diploma, observado o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar nº 64 de 18 de maio de 1990.

Já na doutrina, a obra especializada de Francisco de Assis Vieira Sanseverino (Compra de votos – Análise à luz dos princípios democráticos, Ed. Verbo Jurídico, 2007, p.274.) traz a lição de que o art. 41-A da Lei n. 9.504/97 busca proteger, forma ampla, a normalidade e a legitimidade das eleições e, modo estrito, (1) o direito do eleitor de votar livremente e (2) a igualdade de oportunidades entre os competidores eleitorais.

Além, a ocorrência de captação ilícita de sufrágio há de ser antecedida por, ao menos, três elementos, segundo pacífica posição do Tribunal Superior Eleitoral: (1) a prática de uma conduta (doar, oferecer, prometer); (2) a existência de uma pessoa física (eleitor); (3) o resultado a que se propõe o agente (o fim de obter o voto).

Assim, para a configuração da hipótese do art. 41-A da Lei n. 9.504/97, necessária a conjugação dos elementos subjetivos e objetivos que envolvam uma situação concreta.

Nessa linha, a jurisprudência do TSE:

ELEIÇÕES 2012. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. REPRESENTAÇÃO. CARGO. VEREADOR. CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO (ART. 41-A DA LEI N° 9.504/97). CAPTAÇÃO OU GASTO ILÍCITO DE RECURSOS FINANCEIROS DE CAMPANHA ELEITORAL (ART. 30-A DA LEI DAS ELEIÇÕES). QUESTÃO DE ORDEM RELATIVA AO ART. 105-A DA LEI N° 9.504/97. PRECLUSÃO. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ART. 275 DO CÓDIGO ELEITORAL. ARCABOUÇO FÁTICO-PROBATÓRIO QUE DEMONSTRA A CARACTERIZAÇÃO DA CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO. PRESCINDIBILIDADE DA ANÁLISE QUANTO À CONFIGURAÇÃO DO ART. 30-A. INDEPENDÊNCIA DA PENA DE CASSAÇÃO DO MANDATO ANTE A CONSTATAÇÃO DA PRÁTICA DE CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO. DESPROVIMENTO.

1. A captação ilícita de sufrágio, nos termos do art. 41-A da Lei nº 9.504/97, aperfeiçoa-se com a conjugação dos seguintes elementos: (i) a realização de quaisquer das condutas típicas do art. 41-A (i.e., doar, oferecer, prometer ou entregar bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza a eleitor, bem como praticar violência ou grave ameaça ao eleitor), (ii) o fito específico de agir, consubstanciado na obtenção de voto do eleitor e, por fim, (iii) a ocorrência do fato durante o período eleitoral (GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 8ª ed. São Paulo: Atlas, p. 520).

2. A jurisprudência deste Tribunal pressupõe, ainda, a existência de provas robustas e incontestes para a configuração do ilícito descrito no art. 41-A da Lei nº 9.504/97, não podendo, bem por isso, encontrar-se a pretensão ancorada em frágeis ilações ou mesmo em presunções, nomeadamente em virtude da gravidade das sanções nele cominadas.

Precedentes.

3. In casu, as premissas fáticas delineadas no aresto regional evidenciam a caracterização da captação ilícita de sufrágio, em especial pela distribuição indiscriminada de combustível em troca de apoio político.

4. O exame das ponderações acerca da configuração do ilícito disposto no art. 30-A da Lei das Eleições e da aplicação da cassação do diploma com fundamento no aludido dispositivo, à luz do princípio da proporcionalidade, revela-se prescindível, na medida em que a cassação do diploma subsistirá em virtude da caracterização da captação ilícita de sufrágio.

5. A análise da matéria relativa ao art. 105-A da Lei das Eleições, suscitada em questão de ordem, é inviável no caso vertente ante a sua preclusão consumativa, uma vez que o ora Agravante não se insurgiu contra a conclusão da Corte Regional sobre o tema na ocasião da interposição de seu recurso especial.

6. Agravo regimental desprovido.

O Tribunal, por unanimidade, negou provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do Relator.

(0000672-93.2012.6.13..0041. AI - Agravo Regimental em Agravo de Instrumento n. 67293/MG. Ac de 25.08.2016. Rel. Min. Luiz Fux. Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Data 27.09.2016.) (Grifei.)

2. Do abuso de poder econômico

Por seu turno, a norma contida no caput do art. 22 da Lei Complementar n. 64/90 busca impedir que o poder econômico seja utilizado por candidato em detrimento da liberdade do voto, preservando os princípios da moralidade e da igualdade a que têm direito os postulantes a cargo eletivo na corrida eleitoral.

O abuso de poder é conceito jurídico indeterminado, não sendo definido por rol taxativo, mas pela finalidade de impedir condutas e comportamentos que extrapolem o exercício regular e legítimo da capacidade econômica e de posições públicas dos candidatos, capazes de causar indevido desequilíbrio ao pleito.

A respeito do tema, a doutrina de Carlos Velloso e Walber Agra:

O abuso de poder econômico e do político é de difícil conceituação e mais difícil ainda sua transplantação para a realidade fática. O primeiro é a exacerbação de recursos financeiros para cooptar votos para determinado(s) candidato(s), relegando a importância da mensagem política. O segundo configura-se na utilização das prerrogativas auferidas pelo exercício de uma função pública para a obtenção de votos, esquecendo-se do tratamento isonômico a que todos os cidadãos têm direito, geralmente com o emprego de desvio de finalidade. (Elementos de Direito Eleitoral, 2ªed., 2010, p. 377.)

Ainda, considerando que a vedação ao abuso preserva de forma direta a legitimidade do pleito, será ilícita apenas aquela conduta tendente a afetá-la. A quebra da normalidade do pleito está vinculada à gravidade da conduta, sem a necessidade da demonstração de que, sem a conduta abusiva, o resultado das urnas seria diferente. É o que dispõe o artigo 22, inc. XVI, da Lei Complementar 64/90:

Art. 22.

XVI - para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam.

Diferentemente do que ocorre na captação ilícita de sufrágio, no abuso de poder econômico não há, especificamente, a figura do corrompido, pois a captação do voto se faz de maneira indireta, sutil, às vezes imperceptível até mesmo aos olhos do próprio eleitor, o sujeito passivo.

Em síntese, busca-se a adesão, a simpatia do eleitor por meio de um benefício economicamente mensurável, pois “muitas vezes o titular do uso do poder econômico não age como um corruptor do eleitorado, e os meios que emprega são moralmente admissíveis. A ilicitude está no desequilíbrio, na ofensa ao princípio da igualdade de oportunidades, relativamente aos partidos e candidatos que se conduziram, no decorrer da propaganda eleitoral, dentro dos parâmetros legais” (TRE-SC, RREP n. 759, Rel. Otávio Roberto Pamplona, DJESC de 15.09.2001).

Na doutrina, assevera José Jairo Gomes (Direito Eleitoral, 12ª Ed. Atlas, São Paulo, p. 312) que:

a configuração do abuso de poder econômico no âmbito eleitoral é fato autônomo, devendo ser considerado em si mesmo. Dispensáveis são quaisquer correlações com as contas a serem prestadas pelo candidato ou com os gastos estimados de campanha. Ou seja: sua caracterização independe de os valores abusivamente despendidos no custeio de eventos ou na aquisição de produtos encontrarem-se previstos na estimativa de gastos apresentada ao Tribunal Eleitoral por ocasião do pedido de registro de candidatura […] Basta que o uso de poder econômico em benefício de candidato seja distorcido, de maneira a desvirtuar o sentido das ideias de normalidade do pleito, liberdade, justiça e sinceridade nas eleições, democracia igualitária e participativa.

 

3 - À análise do caso propriamente dito

Colho trecho da decisão do 1º Grau:

Nesse tipo de esquema - distribuição de combustível - além da captação do voto ocorre uma triangulação entre o motorista, o candidato e os demais eleitores. O motorista que circula com o carro adesivado em troca de vantagem não precisa internamente se vincular a votar no candidato, bastando que os demais eleitores acreditem que assim acontecerá. Isso faz incutir na mente dos outros eleitores que o candidato é forte e vai se eleger, dado o número de veículos adesivados com a propaganda. O motorista externa a todos a aparência de que aderiu ao candidato e suas propostas. Se votará ou não, impossível saber, dado o sigilo do voto. Há uma verdadeira mensagem subliminar, potencializando a campanha do candidato e, neste mesmo viés, a captação ilícita de sufrágio.

Tal extensão, por mim grifada, não é possível.

Não há, nos autos, comprovação da prática de “doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição”, de parte da então candidata VERA LÚCIA LUCION.

Nessa linha, a jurisprudência do e. Tribunal Superior Eleitoral:

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ABUSO DO PODER POLÍTICO E ECONÔMICO. CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO. PREFEITO. VICE-PREFEITO. ELEIÇÕES 2012.

[…]

3. O Tribunal de origem entendeu frágil e contraditória a prova testemunhal produzida para a comprovação da alegada captação ilícita de sufrágio, conclusão que não pode ser revista em sede extraordinária.

4. Na linha da jurisprudência desta Corte, para a condenação com base no ilícito descrito no art. 41-A da Lei nº 9.504/97, são necessárias provas robustas, incontestes e harmônicas, o que não se verificou na espécie.

Agravo regimental a que se nega provimento."

(AgR-REspe n. 853-77/SC, Rel. Min. Henrique Neves, DJe de 30.6.2016.)

Entendo, portanto, que há de ser dado provimento ao recurso para entender não comprovada a ocorrência de captação ilícita de sufrágio.

No que concerne à prática de abuso de poder econômico, contudo, entendo que o apelo não merece guarida.

Andou bem a sentença.

Por mais que as combativas razões de recurso queiram colocar em dúvida os testemunhos havidos em sede policial, confrontando-os topicamente e, de uma maneira mais ampla, toda a prova dos autos, é certo ter havido esquema de distribuição de vale-combustível, com suficiente demonstração de liame entre a entrega do referido produto e a prática de abuso de poder econômico em benefício de VERA LÚCIA LUCION, candidata a vereadora no Município de Tapejara nas eleições de 2016.

Em termos gerais: os eleitores colocavam um adesivo da candidatura de VERA no carro e se dirigiam ao Posto de Combustíveis OLIVEIRA, onde recebiam, gratuitamente, no mínimo 10 (dez) litros de gasolina.

Ressalto que tal linha de fatos é constante e consistente nos testemunhos, ainda que, de fato, alguns deles tenham se modificado perante o Juízo, se comparados aos conteúdos daqueles prestados perante a autoridade policial; e, mesmo que consideradas as alegadas contradições ou inconsistências da testemunha Aldemir dos Santos, conforme esgrimado nas razões 3.4.1 do recurso, ainda restam elementos de condenação.

Há uma série de irresignações da recorrente no que toca a este ponto da prova, mas que não subsistem a uma análise mais detida, pois o cerne, o núcleo da prática abusiva restou amplamente comprovado.

Por exemplo: o abuso econômico, no caso, ocorreu sob o prisma da forma pela qual recursos foram utilizados. O recurso se fundamenta em alguns testemunhos para asseverar que “nem todos os carros abasteceram, e nem todos que abasteceram eram destinados à candidatura da recorrente”.

Não é a tal conclusão que se chega, contudo, quando se examina os documentos apreendidos, fls. 23-75: lista de placas de veículos (mais de duzentas, fls. 24 a 28), em uma planilha que distribuiu temporalmente os abastecimentos, pois ao que tudo indica cada veículo tinha o direito de abastecer 10 litros por semana, o que por si só afasta as alegações de abastecimentos específicos para um comício ou carreata.

Duzentos veículos. O município de Tapejara, frise-se, conta com pouco mais de 16.000 (dezesseis mil) eleitores. A recorrente era candidata a vereadora, e fez 438 votos.

Além: cópias de adesivos e planilhas internas do Posto OLIVEIRA que demonstram a distribuição de combustíveis. A conduta do estabelecimento comercial, aliás, merece toda a reprovação, ainda que de passagem nestes autos, pois nitidamente atuou em conjunto na prática do ilícito. Os controles são codificados, utilizam apelidos como “tartaruga”, “cachorro 5lt”, “sol”, fls. 29-36, deixando claro que se trata de aferição não contábil, dissimulada, sub-reptícia, apenas com vistas a prestar informações sobre o esquema.

Adiante, fls. 37-75, as notas fiscais do “Comércio de Combustíveis Oliveira”, de regra referindo quantidades “redondas” de combustível.

Ainda que se argumente ser comum o condutor pedir 10 litros, ou 20 litros de combustível, refiro que há cópias de mais de 150 (cento e cinquenta) cupons fiscais apreendidos, acompanhados de uma etiqueta “autorização p/ abastecimento”, os quais indicam abastecimentos de 10, 15, 20 litros e assim por diante, o que configura a indiscriminada distribuição de combustíveis aludida pelo Ministério Público Eleitoral.

No que toca à prova testemunhal, sublinho que nada menos do que 6 (seis) testemunhas corroboraram, em juízo, ter recebido abastecimentos gratuitos em troca da adesivagem do veículo com a propaganda eleitoral de VERA: David dos Santos da Silva, Diego Stefani, Jurandir Varella Bittencourt, Lucas Duarte, Maicon Pegoraro, Natan Cechin Panisson. Há placas dos veículos dessas testemunhas nas planilhas do Posto Oliveira, fls. 24-26.

Some-se ainda o relato de Maiquel Zanelato, que testemunhou ter recebido a oferta, a qual recusou.

De resto, houve testemunhas que, de fato, modificaram os depoimentos em juízo após a oitiva em sede policial – Rosilei Terezinha da Silva, Aldair da Silva Machado Junior, Cidimar da Silva, Jandecir Mesadri.

Ocorre, contudo, que na maioria dos casos a modificação se deu porque a testemunha, em juízo, asseverou “não se lembrar” mais dos fatos, em negativas genéricas de recebimento de combustíveis. Tais testemunhos não afastam, por óbvio, aqueles que afirmaram o recebimento, e que se mostram suficientes para a condenação.

Essas as graves circunstâncias. Repito que a candidata auferiu 458 votos.

No relativo aos itens 3.4.2 e 3.4.3 do recurso, indico que a influência na liberdade específica do voto do eleitor e a imputação das listagens à recorrente são elementos dispensáveis à caracterização do abuso do poder econômico, em virtude da própria redação legal, a qual determina como bem jurídico tutelado a gravidade das circunstâncias e a constatação de candidatura beneficiada, como já afirmado no item 2 do presente voto.

Neste Tribunal, há precedente que se amolda à perfeição ao caso dos autos, pela identidade de circunstâncias e porte do município envolvido:

Recurso. Ação de investigação judicial eleitoral. Prefeito e vice não eleitos. Abuso de poder econômico. Captação ilícita de sufrágio. Art. 41-A da Lei n. 9.504/97. Inelegibilidade. Eleições 2012.

Preliminares de ilicitude da prova e de inovação recursal rejeitadas: a) a juntada de prova emprestada – realizada em processo criminal em que se apuraram os mesmos fatos –, antes da apresentação das alegações finais, não configura afronta ao devido processo legal. Oportunizado aos réus o contraditório, que dele se utilizaram e se manifestaram, inclusive sobre a prova cuja ilicitude se alega; b) pequena modificação à tese da defesa, nas razões recursais, não caracteriza inovação recursal.

1. Abuso de poder econômico. Existência de provas materiais e testemunhais demonstrando a distribuição de vales-combustível e a concomitante adesivação dos veículos dos eleitores com a propaganda dos recorrentes. Difusão massiva da candidatura no cenário de disputa política local, representando utilização de recursos financeiros de forma abusiva. Manutenção da condenação e da declaração da inelegibilidade dos recorrentes pela prática do abuso de poder econômico previsto no art. 22, caput, c/c inciso XIV, da Lei Complementar n. 64/90.

2. Captação ilícita de sufrágio. Entrega de dinheiro e vale-gás a eleitora em troca do voto. Ausência da prova robusta e incontroversa da ocorrência do especial fim de agir para a negociação do voto. Reforma da sentença no ponto. Afastada a pena de multa.

Provimento parcial.

(RE 464-29. Rel. para o ac. Dr. Leonardo Tricot Saldanha. Julgado em 8.10.2015. Por unanimidade, afastaram as preliminares e a condenação pela prática da captação ilícita de sufrágio e, por maioria, deram provimento parcial ao recurso, vencido em parte o relator, Des. Paulo Afonso Brum Vaz. Lavrou o acórdão o Dr. Leonardo Saldanha.) Grifei.

A título de desfecho, a análise de uma suposta necessidade de “valoração” como requisito para a inelegibilidade, pois “a Constituição parte do pressuposto que qualquer pessoa pode errar, no entanto, esse erro tem que ser de tal ordem que seja suficiente para comprometer o resultado das urnas, senão, estar-se-á suprimindo a vontade da maioria dos eleitores, ou seja, a pena passará da pessoa do candidato para atingir a todos os eleitores”.

A premissa, em si mesma, não é incorreta. A conclusão da recorrente, pelo afastamento da declaração de inelegibilidade, contudo, não merece acolhimento, pois a própria redação indicada pelo legislador prevê a declaração de inelegibilidade do candidato que tenha sido favorecido por abuso do poder econômico, a teor do multicitado art. 22, inc. XIV, combinado com o inc. XVI, da LC n. 64/90.

Ademais, o Supremo Tribunal Federal já enfrentou o tema, por ocasião do julgamento da ADC n. 29, da ADC n. 30 e da ADI n. 4578, julgamento no qual se decidiu pela constitucionalidade da LC n. 135/10, a “Lei da Ficha Limpa”, cujo trecho da ementa segue abaixo:

[...] 11. A inelegibilidade tem as suas causas previstas nos §§ 4º a 9º do art. 14 da Carta Magna de 1988, que se traduzem em condições objetivas cuja verificação impede o indivíduo de concorrer a cargos eletivos ou, acaso eleito, de os exercer, e não se confunde com a suspensão ou perda dos direitos políticos , cujas hipóteses são previstas no art. 15 da Constituição da República, e que importa restrição não apenas ao direito de concorrer a cargos eletivos (ius honorum), mas também ao direito de voto (ius sufragii). Por essa razão, não há inconstitucionalidade na cumulação entre a inelegibilidade e a suspensão de direitos políticos.

Diante do exposto, VOTO pelo afastamento das preliminares e pelo provimento parcial do recurso de VERA LÚCIA LUCION, notadamente para:

a) absolver da condenação pela prática de captação ilícita de sufrágio, art. 41-A da Lei n. 9.504/97, e afastar a aplicação da multa equivalente a 5.000 UFIRs;

b) manter a condenação pela prática de abuso de poder econômico decretada na sentença, bem como a sanção de cassação do diploma e a declaração de inelegibilidade pelo prazo de 8 (oito) anos, forte no art. 22, inc. XIV e inc. XVI, da Lei Complementar n. 64/90.

Determino, de ofício, a manutenção da votação recebida por VERA LÚCIA LUCION no quantitativo total da coligação pela qual concorreu, a PSB-PRB, por força do art. 175, § 4º, do Código Eleitoral.