RC - 425 - Sessão: 13/11/2017 às 17:00

RELATÓRIO

Trata-se de recurso em processo-crime eleitoral interposto por JOSIANE SILVA DE PINHO (fls. 184-185v.) contra decisão do Juízo Eleitoral da 66ª Zona, que condenou a recorrente pela prática do delito de abandono do serviço eleitoral, tipificado no art. 344 do Código Eleitoral, em razão do seguinte fato, assim descrito na denúncia:

No dia 31 de outubro de 2010, dia das eleições, na parte da tarde, na rua Clóvis Beviláqua, 693, Centro, Canoas/RS, na Escola Estadual Guilherme de Almeida, onde estava instalada a mesa receptora de votos da Seção n. 296 da 66ª Zona Eleitoral, a denunciada, JOSIANE SILVA DE PINHO, abandonou o serviço eleitoral sem justa causa.

Na ocasião, a denunciada foi convocada para atuar como mesária, comparecendo ao serviço eleitoral na parte da manhã. Todavia, sem possuir justa causa, a denunciada abandonou o serviço eleitoral e não retornou na parte da tarde para compor a mesa receptora de votos.

Foi recebida a denúncia no dia 19 de dezembro de 2011 (fl. 26).

Ao ser citada, a denunciada manifestou interesse na nomeação de defensor (fl. 111v.).

Os autos foram encaminhados à Defensoria Pública da União, que ofereceu resposta (fl. 116). Designada audiência para seu interrogatório, a ré não compareceu à solenidade, sendo decretada a sua revelia (fl. 133). Realizada audiência de instrução (fl. 154), foram apresentadas alegações finais.

A sentença (fls. 175-177) afastou a alegação de nulidade da citação por edital, pois a ré foi posteriormente localizada e pessoalmente citada. No mérito, considerou que a hipótese de abandono dos serviços eleitorais está tipificada no art. 344 do Código Eleitoral e não é afastada pela sanção administrativa do art. 124 do mesmo diploma. Entendeu estar caracterizada a conduta delitiva. Julgou procedente a denúncia para condenar a ré à pena de 15 dias de detenção, substituída por prestação de serviços à comunidade.

Em suas razões recursais (fls. 184-186), a acusada afirma não haver provas robustas de seu dolo, mas apenas indícios, insuficientes para a condenação. Sustenta não ser cabível a condenação criminal, pois, na hipótese, incide somente a sanção administrativa do art. 124 do Código Eleitoral, conforme entendimento firmado pelo TSE.

Com as contrarrazões (fls. 195-196), nesta instância, os autos foram remetidos em vista ao Ministério Público Eleitoral, que se manifestou pelo desprovimento do recurso (fls. 204-209).

O Plenário do Tribunal converteu o julgamento em diligências, reconhecendo a necessidade de intimação pessoal da acusada acerca da sentença (fls. 217-219).

Os autos retornaram ao primeiro grau, onde foi realizada intimação por edital (fl. 254) e foram realizadas diligências perante a CORSAN e a RGE (fls. 238-240) para localização da ré, que restaram infrutíferas (fl. 244 e 252).

 

É o relatório.

 

VOTOS

Dr. Jamil Andraus Hanna Bannura (relator)

O recurso é tempestivo. A Defensoria Pública foi intimada da sentença no dia 25.01.2016 (fl. 181), e o recurso foi interposto no dia 1º.02.2016 (fl. 184), dentro, portanto, do prazo de 10 dias previstos no art. 362 do Código Eleitoral.

O feito foi levado a julgamento em dezembro de 2016, quando foi determinado o retorno dos autos à origem para a intimação pessoal da acusada acerca da sentença (fls. 217-218v.)

O juízo de primeiro grau realizou intimação por edital da acusada (fl. 254) e tentou obter seu endereço perante a CORSAN e a RGE (fls. 238-240) para sua localização, providência que restou frustrada (fl. 244 e 252).

Atendida, assim, a exigência de intimação da acusada acerca da sentença condenatória, conforme pacífico entendimento jurisprudencial:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 214 C/C ART. 224, ALÍNEA A, DO CP. NULIDADES. CITAÇÃO PESSOAL. INOCORRÊNCIA. COMPARECIMENTO A INTERROGATÓRIO. ACOMPANHAMENTO POR CURADOR. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO.

INTIMAÇÃO DA SENTENÇA POR EDITAL. ESGOTAMENTO DE TODOS OS MEIOS DE LOCALIZAÇÃO.

I - O fato de a citação ter sido realizada na pessoa da irmã do acusado, que se comprometeu a repassar o mandado ao réu, não gera, por si, nulidade, se não há demonstração do efetivo prejuízo (Precedentes).

II - Não há que se falar em nulidade, na hipótese dos autos, em atenção ao princípio pas de nullité sans grief, uma vez que o réu compareceu espontaneamente à sessão de interrogatório - devidamente assistido por curador - e declarou estar ciente da acusação e deu sua versão dos fatos.

III - Ademais, foram apresentadas a defesa prévia e as alegações finais, sendo que, em nenhum momento, a nulidade foi alegada.

IV - Da mesma forma, não há nulidade na intimação da sentença condenatória realizada via edital, se o réu foi suficientemente procurado e não veio a ser encontrado nos locais indicados.

Ordem denegada.

(STJ, HC 85.758/MG, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 21/02/2008, DJe 14/04/2008)

No mérito, a recorrente foi condenada pelo delito de abandono do serviço eleitoral, tipificado no art. 344 do Código Eleitoral:

Art. 344. Recusar ou abandonar o serviço eleitoral sem justa causa:

Pena - detenção até dois meses ou pagamento de 90 a 120 dias-multa.

A acusada foi convocada para ser mesária no pleito de 2010, compareceu aos trabalhos no período da manhã e, após sair para o almoço, não retornou no período da tarde. Os fatos restam demonstrados pela assinatura da acusada na ata da mesa receptora (fl. 08), atestando o seu comparecimento, e pelo registro, no mesmo documento, de que “Josiane P. da Silva saiu para almoço e não voltou” (fl. 09).

Nesse mesmo sentido foi o testemunho de Carla Gabriel da Rosa, secretária de mesa da seção eleitoral da acusada, a qual confirmou que Josiane saiu para o almoço, e não retornou (fl. 154).

Em seu recurso, sustenta que não está cabalmente demonstrado o dolo da acusada de se ausentar do serviço sem justa causa, aduzindo, ainda, incidir sobre sua conduta apenas a sanção administrativa do art. 124 do Código Eleitoral, verbis:

Art. 124. O membro da mesa receptora que não comparecer no local, em dia e hora determinados para a realização de eleição, sem justa causa apresentada ao juiz eleitoral até 30 (trinta) dias após, incorrerá na multa de 50% (cinqüenta por cento) a 1 (um) salário-mínimo vigente na zona eleitoral cobrada mediante sêlo federal inutilizado no requerimento em que fôr solicitado o arbitramento ou através de executivo fiscal.

O recurso merece ser provido.

De fato, como pontuou o douto Procurador Regional Eleitoral, existem precedentes, inclusive um julgado desta Corte (HC 25059, Rel. Desa. Federal Maria Lúcia Luz Leiria, DJE: 05.9.2011), entendendo que o abandono do serviço eleitoral é conduta sancionada tanto na seara administrativa, pelo art. 124 do Código Eleitoral, quanto na penal, pelo art. 344 do mesmo diploma legal.

Todavia, esta não se afigura a melhor solução.

O art. 344 do Código Eleitoral estabelece um tipo especial do crime de desobediência previsto no Código Penal (art. 330: desobedecer a ordem legal de funcionário público), devendo-se aplicar aqui a mesma sistemática observada no delito do Código Penal, que somente incide quando não há punição administrativa ou, havendo, o texto faça expressa ressalva a respeito da cumulativa sanção penal. Nesse sentido é a jurisprudência:

HABEAS CORPUS. PREFEITO MUNICIPAL. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA DE ORDEM JUDICIAL PROFERIDA EM MANDADO DE SEGURANÇA COM PREVISÃO DE MULTA DIÁRIA PELO SEU EVENTUAL DESCUMPRIMENTO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ATIPICIDADE DA CONDUTA. PRECEDENTES DO STJ. ORDEM CONCEDIDA.

1. Consoante firme jurisprudência desta Corte, para a configuração do delito de desobediência de ordem judicial é indispensável que inexista a previsão de sanção de natureza civil, processual civil ou administrativa, salvo quando a norma admitir expressamente a referida cumulação.

2. Se a decisão proferida nos autos do Mandado de Segurança, cujo descumprimento justificou o oferecimento da denúncia, previu multa diária pelo seu descumprimento, não há que se falar em crime, merecendo ser trancada a Ação Penal, por atipicidade da conduta. Precedentes do STJ.

3. Parecer do MPF pela denegação da ordem.

4. Ordem concedida, para determinar o trancamento da Ação Penal 1000.6004. 2056, ajuizada contra o paciente. (STJ - HC n° 92.655/ES, DJ de 25.2.2008, NUNES MAIA FILHO).

A interpretação decorre do princípio da intervenção mínima do Direito Penal, o qual, nas palavras de Cezar Roberto Bitencourt:

O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelaram-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. Se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais. Por isso, o Direito Penal deve ser a ultima ratio, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do Direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade (BITENCOURT, Cezar Roberto. Liçóes de direito penal - Parte geral. 1995, p. 32)

Dessa forma, como existe a sanção administrativa do art. 124 para a conduta de ausentar-se ao serviço eleitoral, não incide sobre a espécie o tipo penal do art. 344 do mesmo diploma, pois entendeu o legislador ser suficiente a penalidade administrativa para reprimir a ausência ao serviço eleitoral, afastando-se a sanção penal, por força do princípio da insignificância. Nesse sentido posicionou-se o TSE:

HABEAS CORPUS. CONDENAÇÃO TRANSITADA EM JULGADO. CRIME PREVISTO NO ART. 344 DO CÓDIGO ELEITORAL. NÃO COMPARECIMENTO DO MESÁRIO CONVOCADO. MODALIDADE ESPECIAL DO CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. PREVISÃO DE SANÇÃO ADMINISTRATIVA. ART. 124 DO CÓDIGO ELEITORAL. AUSÊNCIA DE RESSALVA DE CUMULAÇÃO COM SANÇÃO PENAL. ORDEM CONCEDIDA.

1. O Supremo Tribunal Federal tem reconhecido, nos casos em que a decisão condenatória transitou em julgado, a excepcionalidade de manejo do habeas corpus, quando se busca o exame de nulidade ou de questão de direito, que independe da análise do conjunto fático-probatório. Precedentes.

2. O não comparecimento de mesário no dia da votação não configura o crime estabelecido no art. 344 do CE, pois prevista punição administrativa no art. 124 do referido diploma, o qual não contém ressalva quanto à possibilidade de cumulação com sanção de natureza penal.

3. Ordem concedida.

(TSE, Habeas Corpus nº 638, Acórdão de 28/04/2009, Relator(a) Min. MARCELO HENRIQUES RIBEIRO DE OLIVEIRA, Publicação: DJE - Diário da Justiça Eletrônico, Data 21/5/2009, Página 19 RJTSE - Revista de jurisprudência do TSE, Volume 20, Tomo 3, Data 28/4/2009, Página 16)

Não merece prevalecer, também, o entendimento adotado na sentença de que o art. 124 sanciona apenas a ausência do cidadão convocado, não alcançando a conduta de “abandono”, a qual sofreria a incidência do art. 344 do Código Eleitoral.

Não se pode conceber que a “ausência” e o “abandono” do serviço eleitoral sejam condutas a tal ponto díspares que justifiquem, no primeiro caso uma mera sanção administrativa e, no segundo, uma punição penal.

É necessário interpretar as leis de forma a prestigiar a coerência do sistema jurídico, além de atentar para a observância do princípio da igualdade. Ausência e abandono são condutas de igual lesividade ao serviço eleitoral, não sendo razoável levar-se em consideração unicamente o texto legal para concluir que o ordenamento considera a ausência uma irregularidade administrativa e o abandono do serviço um ilícito penal (art. 344 do Código Eleitoral).

Tanto uma quanto outra conduta são penalmente atípicas, por serem substancialmente idênticas naquela característica relevante para o seu sancionamento: o prejuízo aos trabalhos eleitorais. Nessa linha, identificam-se inúmeras decisões monocráticas proferidas no egrégio TSE tratando da mesma forma as condutas de recusa ou abandono das funções de mesário, sem distingui-las (AI nº 3615, Relator Min. Gilmar Ferreira Mendes, DJE: 03.02.2016; AI nº 3341, Relator: Min. Henrique Neves Da Silva,DJE: 11.11.2015; AI nº 654, Relator: Min. Arnaldo Versiani Leite Soares, DJE: 05.6.2012).

Os autos apresentam, ainda, uma peculiaridade que se soma aos fundamentos ora apresentados. Mesmo o tipo penal do art. 344 do Código Eleitoral sanciona apenas o abandono do serviço sem justa causa e, na hipótese, embora a recorrente tenha exercido de forma plena a sua defesa formal, restou prejudicada a sua defesa substancial, pois, apesar da sua citação, nem mesmo a defensoria pública conseguiu contato com a acusada, como informou na fl. 116 dos autos.

Por certo que a ausência de explicações pela acusada não poderiam servir como fundamento único da absolvição, especialmente porque houve sua efetiva citação e a parte se absteve de comparecer em juízo. No entanto, a inviabilidade do esclarecimento a respeito das circunstâncias concretas que levaram a acusada ao abandono do serviço público é circunstância que se agrega aos fundamentos acima expostos, pois a conduta ilícita não está perfeitamente demonstrada em todos os seus elementos, tendo em vista que a ausência de justa causa é apenas presumida, em razão da falta de informações sobre os fatos pela acusada.

Dessa forma, entendo, em consonância com a orientação firmada pelo egrégio Tribunal Superior Eleitoral, que a conduta da recorrente não sofre a incidência do tipo penal do art. 344 do Código Eleitoral, pois sancionada administrativamente pelo art. 124 do mesmo diploma legal, devendo ser absolvida da acusação, com fundamento no art. 386, inc.III, do Código de Processo Penal.

 

DIANTE DO EXPOSTO, voto pelo provimento do recurso, para o efeito de julgar improcedente a denúncia, e absolver Josiane da Silva Pinho, com fundamento no art. 386, inc. III, do Código de Processo Penal.