INQ - 11178 - Sessão: 29/10/2018 às 17:00

RELATÓRIO

Trata-se de inquérito policial instaurado para apurar a possível prática do crime previsto no art. 39, § 5º, inc. III, da Lei n. 9.504/97 pelo então candidato a Prefeito de Gravataí/RS, MARCO AURÉLIO SOARES ALBA, por ocasião da renovação das eleições de 2016 realizada naquele município em 12.3.2017.

O feito tramitou originalmente perante o Juízo da 71ª Zona Eleitoral de Gravataí que, acolhendo promoção do Ministério Público Eleitoral de 1º grau, determinou a remessa para este Tribunal (fl. 10), onde foi reconhecida a competência para o processamento da investigação, uma vez que o investigado se encontra no exercício do cargo de Prefeito daquele município (fl. 17).

Concluído o inquérito com o indiciamento de MARCO ALBA como incurso na conduta descrita no art. 39, § 5º, inc. III, da Lei n. 9.504/97 (fls. 63-64). Foram os autos com vista à Procuradoria Regional Eleitoral, que se manifestou pelo declínio da competência ao Juízo Eleitoral da 71ª Zona Eleitoral - Gravataí, em razão da recente interpretação restritiva conferida pelo Supremo Tribunal Federal ao instituto do foro por prerrogativa de função (fls. 77-83).

É o relatório.

VOTO

Conforme relatado, trata-se de inquérito policial instaurado para apurar a possível prática do crime de boca de urna, previsto no art. 39 da Lei das Eleições, na renovação do pleito municipal de 2016, no qual restou indiciado o atual Prefeito de Gravataí/RS, MARCO AURÉLIO SOARES ALBA.

A Procuradoria Regional Eleitoral, em face da decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal em questão de ordem levantada durante o trâmite da Ação Penal n. 937/RJ, que analisou o foro por prerrogativa de função, requer a declinação de competência para o acompanhamento do inquérito ao Juízo da 71ª Zona Eleitoral deste Estado, sob o seguinte fundamento, in verbis:

(...)

Versam os presentes autos sobre suposta propaganda eleitoral realizada através do Facebook no dia das eleições por parte do candidato a Prefeito do município de Gravataí na eleição 2016, Sr. MARCO AURÉLIO SOARES ALBA, conduta que configuraria, em tese, o crime do inciso III do §5º do artigo 39 da Lei n. 9.504/1997.

(...)

No caso concreto, o investigado MARCO AURÉLIO SOARES ALBA exercia o cargo de Prefeito de Gravataí quando da suposta prática da infração penal.

Contudo, o ilícito praticado, consistente na realização de propaganda eleitoral na sua página no Facebook no dia das eleições, não possui relação com as funções públicas desempenhadas. Nesse sentido, basta analisar as postagens relacionadas na informação da Polícia Federal, às fls. 39-47, para se concluir que não se tratam de manifestações do Prefeito Municipal, mas sim do candidato.

Logo, diante da interpretação restritiva conferida ao foro por prerrogativa de função pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Penal n. 937 e do princípio da parametricidade, conclui-se que, ausente a competência desse colendo TRE-RS, esta Procuradoria Regional Eleitoral não detém atribuição para a formação da opinio delicti no presente inquérito.

(Grifos no original.)

Inicialmente, verifico que o ilustre Procurador Regional Eleitoral se equivoca ao afirmar que o investigado exercia o cargo de Prefeito de Gravataí na data do fato, 12.3.2017.

MARCO AURÉLIO SOARES ALBA exerceu o cargo de Prefeito de Gravataí de 1º.01.2013 a 1º.01.2017, quando, conforme notícia veiculada no site oficial da Câmara Legislativa de Gravataí em 1º.01.2017, o posto de chefe do Executivo foi assumido interinamente pelo então presidente da Câmara de Vereadores, Nadir Rocha, em razão de decisão definitiva do TSE - proferida em sede de embargos de declaração nos autos do REspe n. 13273 -, a qual, conferindo efeitos infringentes aos aclaratórios, confirmou acórdão deste Regional que havia indeferido o pedido de registro de candidatura de Daniel Bordignon, candidato eleito ao cargo de Prefeito no pleito de 02.10.2016 e declarado inelegível com base na Lei da Ficha Limpa, e, via de consequência, determinou a realização de novas eleições.

Dessa forma, contrariamente ao afirmado pela Procuradoria Regional Eleitoral à fl. 82v., o indiciado não se encontrava no exercício do cargo de Prefeito na data do fato.

Feito esse esclarecimento, prossigo na análise da matéria.

O foro por prerrogativa de função ou, simplesmente, “foro privilegiado” é um dos modos de se determinar a competência penal. Com esse instituto jurídico, o órgão competente para julgar ações penais contra determinados agentes é estabelecido levando-se em conta o cargo ou a função que eles ocupam, de modo a proteger a função e a coisa pública.

O instituto está previsto em diversas disposições da Constituição Federal de 1988.

No caso de Prefeitos, a prerrogativa encontra-se disciplinada no art. 29, inc. X, do texto constitucional, in verbis:

Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: (…)

X- julgamento do Prefeito perante o Tribunal de Justiça;

Em se tratando do cometimento de crimes eleitorais, sob a ótica da simetria, a competência para processar e julgar o titular do Executivo municipal é do Tribunal Regional Eleitoral do respectivo estado:

Habeas corpus. Art. 350 do Código Eleitoral. Prefeito municipal. Inquérito policial instaurado por requisição do Ministério Público Eleitoral sem supervisão do TRE. Procuradoria-Geral Eleitoral opina pela concessão da ordem. Ordem concedida. 1. Compete ao Tribunal Superior Eleitoral processar e julgar habeas corpus contra ato supostamente ilegal praticado por procurador regional eleitoral. Precedentes do TSE. 2. A instauracão do inquérito policial para averiguar suposto crime praticado por prefeito depende de supervisão do Tribunal Regional Eleitoral competente para processar e julgar o titular do Poder Executivo municipal nos crimes eleitorais. Precedentes do TSE e do STF. 3. A prerrogativa de foro é uma garantia voltada não exatamente para a defesa de interesses de titulares de cargos relevantes, mas para a própria regularidade das instituições. Se a interpretação das normas constitucionais leva à conclusão de que o chefe do Executivo municipal responde por crime eleitoral perante o respectivo TRE, não há razão plausível para que as atividades diretamente relacionadas à supervisão judicial (abertura de procedimento investigatório) sejam retiradas do controle judicial daquele órgão. 4. Ordem concedida". (Ac. de 8.4.2014 no HC no 42907, rel. Min. Gilmar Mendes.)

A questão posta pelo Procurador Regional Eleitoral nestes autos trata dos critérios para a definição de tal competência.

Argumenta o ilustre representante do Parquet nesta Corte em sua manifestação (fls. 77-83) que, na AP n. 937/RJ, o Supremo Tribunal Federal definiu o contexto de aplicação do foro por prerrogativa de função, restringido sua incidência a crimes cometidos durante o mandato e em função dele.

Com efeito, no dia 3 de maio do corrente ano, o Plenário do Supremo Tribunal Federal conferiu nova interpretação ao art. 102, inc. I, als. "b" e "c", da Constituição Federal, assentando a competência da Corte Suprema para processar e julgar os membros do Congresso Nacional exclusivamente quanto aos crimes praticados no exercício e em razão da função pública.

A matéria foi levantada por meio de Questão de Ordem, suscitada pelo eminente Ministro Luiz Roberto Barroso, em voto proferido no julgamento da AP n. 937, cujo acórdão restou assim ementado: 

DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. QUESTÃO DE ORDEM EM AÇÃO PENAL. LIMITAÇÃO DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO AOS CRIMES PRATICADOS NO CARGO E EM RAZÃO DELE. ESTABELECIMENTO DE MARCO TEMPORAL DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA. I. Quanto ao sentido e alcance do foro por prerrogativa 1. O foro por prerrogativa de função, ou foro privilegiado, na interpretação até aqui adotada pelo Supremo Tribunal Federal, alcança todos os crimes de que são acusados os agentes públicos previstos no art. 102, I, b e c da Constituição, inclusive os praticados antes da investidura no cargo e os que não guardam qualquer relação com o seu exercício. 2. Impõe-se, todavia, a alteração desta linha de entendimento, para restringir o foro privilegiado aos crimes praticados no cargo e em razão do cargo. É que a prática atual não realiza adequadamente princípios constitucionais estruturantes, como igualdade e república, por impedir, em grande número de casos, a responsabilização de agentes públicos por crimes de naturezas diversas. Além disso, a falta de efetividade mínima do sistema penal, nesses casos, frustra valores constitucionais importantes, como a probidade e a moralidade administrativa. 3. Para assegurar que a prerrogativa de foro sirva ao seu papel constitucional de garantir o livre exercício das funções - e não ao fim ilegítimo de assegurar impunidade - é indispensável que haja relação de causalidade entre o crime imputado e o exercício do cargo. A experiência e as estatísticas revelam a manifesta disfuncionalidade do sistema, causando indignação à sociedade e trazendo desprestígio para o Supremo. 4. A orientação aqui preconizada encontra-se em harmonia com diversos precedentes do STF. De fato, o Tribunal adotou idêntica lógica ao condicionar a imunidade parlamentar material - i.e., a que os protege por suas opiniões, palavras e votos - à exigência de que a manifestação tivesse relação com o exercício do mandato. Ademais, em inúmeros casos, o STF realizou interpretação restritiva de suas competências constitucionais, para adequá-las às suas finalidades. Precedentes. II. Quanto ao momento da fixação definitiva da competência do STF 5. A partir do final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais - do STF ou de qualquer outro órgão - não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo. A jurisprudência desta Corte admite a possibilidade de prorrogação de competências constitucionais quando necessária para preservar a efetividade e a racionalidade da prestação jurisdicional. Precedentes. III. Conclusão 6. Resolução da questão de ordem com a fixação das seguintes teses: "(i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (ii) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo''. 7. Aplicação da nova linha interpretativa aos processos em curso. Ressalva de todos os atos praticados e decisões proferidas pelo STF e demais juízos com base na jurisprudência anterior. 8. Como resultado, determinação de baixa da ação penal ao Juízo da 256a Zona Eleitoral do Rio de Janeiro, em razão de o réu ter renunciado ao cargo de Deputado Federal e tendo em vista que a instrução processual já havia sido finalizada perante a I a instância.

Na decisão, fica clara a necessidade da análise de dois critérios para a definição da aplicação do foro por prerrogativa de função: o cometimento de crime durante a investidura em cargo público e a relação entre as funções exercidas no cargo e a ação criminosa.

Embora o precedente da Corte Suprema tenha sido proferido em contexto atinente ao cargo de Deputado Federal, o próprio STF, no julgamento do Inq. n. 4703, em 12.6.2018, de relatoria do Min. Luiz Fux, afirmou que o entendimento vale também para Ministros de Estado.

Desde então, vários tribunais do país, tomando o acórdão como orientação, passaram a aplicar a mesma linha interpretativa para outras hipóteses de foro privilegiado.

Foi o que decidiu, por exemplo, a Corte Especial do STJ que, seguindo a linha de raciocínio adotada pelo STF, limitou a amplitude do art. 105, inc. I, al. "a", da Constituição Federal/88 e estabeleceu que a restrição do foro deve alcançar Governadores e Conselheiros dos Tribunais de Contas estaduais (STJ. Corte Especial. APn 857/DF, Rel. para acórdão Min. João Otávio de Noronha, julgado em 20.6.2018).

Esse também é o caso deste Regional que, em sessão realizada no último dia 25.9.2018, aderiu ao posicionamento da Corte Excelsa, no julgamento do Inquérito n. 333, de relatoria do Des. Federal João Batista Pinto Silveira, cuja ementa reproduzo abaixo:

INQUÉRITO. CRIME ELEITORAL. ART. 324 DO CÓDIGO ELEITORAL. ELEIÇÕES 2016. NOVO ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PRERROGATIVA DE FORO. LIMITAÇÃO AO EXERCÍCIO DO CARGO. CANDIDATO AO CARGO DE PREFEITO NA ÉPOCA DO FATO. DECLÍNIO DE COMPETÊNCIA.

Suposta prática de crime durante debate eleitoral que antecedeu ao pleito, período em que o investigado detinha apenas a condição de candidato ao cargo de prefeito. Novo posicionamento do Supremo Tribunal Federal no sentido de limitar o foro por prerrogativa de função às hipóteses em que a prática delitiva ocorrer no exercício do cargo e em decorrência de suas atribuições. Alinhamento deste Tribunal à nova interpretação. Não subsiste a competência originária criminal desta Corte, reconhecida ao juízo eleitoral de primeiro grau. Acolhida a promoção ministerial.

No caso destes autos, o crime de propaganda de boca de urna - mediante publicação eleitoral na página do então candidato na rede social Facebook - foi cometido, em tese, pelo atual Prefeito de Gravataí, em 12 de março de 2017, dia da renovação da eleição municipal de 2016.

Assim, forçoso reconhecer que o crime cuja prática se atribui ao Prefeito MARCO ALBA não foi cometido durante o exercício do cargo e, por conseguinte, conforme bem observado pelo n. Procurador Regional Eleitoral, não guarda relação com o seu exercício.

Dessa sorte, com base nas definições apontadas pelo STF sobre a matéria e na linha do entendimento recentemente adotado por este Tribunal, impõe-se determinar a baixa dos autos ao Juízo da 71ª Zona Eleitoral do Rio Grande do Sul, tendo em vista que o crime imputado a MARCO AURÉLIO SOARES ALBA não foi cometido quando este ocupava o cargo de Prefeito da cidade de Gravataí ou em razão dele.

DIANTE DO EXPOSTO, voto pelo acolhimento da promoção ministerial, declinando da competência ao Juízo da 71ª Zona Eleitoral – Gravataí, para que, encaminhados os autos ao Promotor Eleitoral oficiante, adote as medidas que entender cabíveis.