RE - 56718 - Sessão: 06/09/2017 às 17:00

RELATÓRIO

Submeto a julgamento conjunto, em voto único, os recursos eleitorais interpostos pelo PARTIDO TRABALHISTA BRASILEIRO (PTB) de IVOTI (fls. 1056-1070) e pelo MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL (fls. 521-541), respectivamente, nos autos dos processos RE 567-18 e RE 569-85, contra a sentença que julgou improcedentes as ações de investigação judicial eleitoral (AIJE) propostas contra MARIA DE LOURDES BAUERMANN e MILTON MAYER, prefeita e vice-prefeito eleitos do Município de Ivoti nas Eleições 2016, entendendo não comprovada a prática de abuso de poder político e econômico nos fatos narrados nas iniciais.

Em suas razões, o PARTIDO TRABALHISTA BRASILEIRO (PTB) de IVOTI afirma que a configuração do ato abusivo independe de prova do dano infligido à higidez do voto ou à isonomia eleitoral. Sustenta que a gravidade das circunstâncias deve ser analisada em seu aspecto qualitativo, e não quantitativo. Defende terem sido sobejamente demonstrados os atos abusivos alegados, uma vez que a candidata se valeu da facilitação de acesso a serviços públicos de saúde para angariar o voto de inúmeros eleitores, além de fornecer transporte a título gratuito aos beneficiados. Aponta que a fraude foi praticada por meio da ordem de marcação de consultas e de procedimentos médicos do Sistema Único de Saúde (SUS) para residentes em Ivoti, com a alteração do cadastro para que os pacientes constassem como moradores do Município de Taquara. Tece considerações sobre a robustez da prova coligida, colaciona jurisprudência e postula a reforma da decisão para o fim de serem julgados procedentes os pedidos condenatórios.

O MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL também recorre da sentença, asseverando que a recorrida MARIA DE LOURDES BAUERMANN praticou corrupção por meio de um esquema de fraude nos agendamentos de procedimentos médicos do SUS, e de fornecimento de transporte aos pacientes favorecidos. Alega que a candidata obteve manifesto proveito político de forma ilegítima, desequilibrando o pleito, ao indicar eleitores para serem atendidos pelo SUS de forma mais rápida do que a prevista para os agendamentos regulares. Sustenta que os fatos, caracterizadores de abuso de poder econômico e de autoridade, foram realizados por intermédio de uma “complexa rede de contatos políticos”, a fim de propiciar, de modo fraudulento, consultas, exames e cirurgias para inúmeros eleitores de Ivoti. Enfatiza que as ordens de cadastramento indevido dos eleitores de Ivoti como moradores de Taquara eram repassadas pela candidata, por meio de conversas telefônicas ou de mensagens em aplicativos para smartphones, nas quais comunicava o nome completo do eleitor, filiação, número de cadastro no SUS, o procedimento médico e o local em que a pessoa deveria ser buscada de carro. A prática permitia que os beneficiados “furassem a fila” de agendamentos, com o consequente apoio político à campanha da candidata, que também oferecia, de forma estruturada, veículos e pessoas para prover o transporte dos eleitores. Assinala terem os fatos a gravidade suficiente para o juízo de condenação, pois praticados em troca de capital político, com manifesta finalidade eleitoreira. Aponta não ser necessária a demonstração do nexo de causalidade entre o ilícito e a vitória dos candidatos no pleito, nem a comprovação de que o benefício foi concedido em troca do voto do eleitor. Invoca doutrina e jurisprudência, postulando sejam conhecidos os novos documentos acostados ao recurso, relativos ao resultado de sindicância realizada pelo Hospital São Lucas, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Porto Alegre. Requer o provimento do apelo, para o fim de ser declarada a inelegibilidade dos recorridos, com a consequente cassação dos diplomas dos eleitos.

Em contrarrazões, a candidata a prefeita MARIA DE LOURDES BAUERMANN argui a preliminar de não conhecimento e de desentranhamento dos novos documentos que acompanham a peça recursal apresentada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL, por ausência de contraditório. Aponta que as declarações colhidas na referida sindicância não merecem ser consideradas, porque apresentam contradições. No mérito, sustenta que a sentença não é extra petita, pois a tese acusatória sempre foi pautada no sentido de que o agir da candidata foi direcionado à obtenção do voto do eleitor. Narra dedicar-se à saúde do povo de Ivoti há mais de 30 anos, independentemente de pretensões eleitorais e de qualquer tipo de contraprestação, circunstância que defende ter sido demonstrada pela prova testemunhal. Afirma ter frequentado hospitais de Porto Alegre em todas as semanas das últimas décadas, sempre intercedendo em favor dos moradores de Ivoti que estão em tratamento, mesmo no período em que não estava vinculada à prefeitura. Entende que a alegação de ter auxiliado pessoas somente em períodos eleitorais, ou em datas próximas às eleições, foi realizada por quem desconhece sua pessoa e a realidade de Ivoti. Explica ter prestado ajuda à população em datas diversas ao exercício de cargos no Poder Executivo, dada a sua rotina sempre voltada para a assistência social. Argumenta que acordava às 4h da manhã para levar pessoas até os hospitais, no trajeto de Ivoti para Porto Alegre, a fim de conduzi-las até as salas de consulta ou de exames, na condição de acompanhante, para que pudessem compreender os resultados dos procedimentos e os diagnósticos. Nessa condição, relata que ficava como responsável por avisar os familiares dos casos de internação ou de óbito. Assevera que sua conduta nunca foi pautada pela necessidade de votos, tendo sido eleita Prefeita de Ivoti nas eleições de 2004, 2008, e agora, em 2016. Assinala a ausência de prática de abuso de poder e a falta de nexo de causalidade entre os fatos narrados e a vitória nas eleições. Colaciona jurisprudência, junta documentação para contrapor os novos documentos acostados ao recurso ministerial, e postula seja negado provimento aos recursos interpostos.

O candidato a vice-prefeito, MILTON MAYER, apresenta contrarrazões defendendo a manutenção da sentença recorrida, ponderando que em momento algum dos autos foi apontada a sua participação nos ilícitos supostamente praticados. Sustenta que não deve ser atingido pelas penalidades requeridas pelos recorrentes. Reprisa os argumentos expostos pela candidata recorrida e postula o desprovimento dos recursos interpostos.

Os autos de ambos os feitos foram remetidos com vista à Procuradoria Regional Eleitoral, que opinou pelo provimento dos recursos.

É o relatório.

 

VOTO

Os apelos são regulares, tempestivos e comportam conhecimento.

1. Preliminar

Inicialmente, rejeito a preliminar, arguida pela recorrente Maria de Lourdes Bauermann, de desentranhamento e de não conhecimento dos novos documentos que acompanham a peça recursal interposta pelo Ministério Público Eleitoral.

Trata-se, tão somente, do resultado de sindicância realizada pelo Hospital São Lucas, da PUC de Porto Alegre, expediente que já havia sido noticiado nos autos pelo agente ministerial, desde o ajuizamento da ação. A apuração somente foi concluída pelo órgão hospitalar após a prolação da sentença, evidenciando a ausência de má-fé pela juntada do relatório apenas na fase recursal.

A sindicância tratou, especificamente, do caso da paciente Zuleika Arnecke Schneider, pessoa referida nas mensagens encontradas no celular da candidata, a qual foi ouvida em juízo como testemunha – e teve contra si a imputação de cometer o crime de falso testemunho, conforme registro em ata realizado pelo Parquet. Os documentos concluem ter a recorrida, Maria de Lourdes Bauermann, ordenado que funcionários do hospital alterassem o endereço da paciente no cadastro do SUS, a fim de propiciar-lhe uma consulta médica na instituição.

Importa observar que o resultado da sindicância nada mais faz senão comprovar que o ilícito narrado na inicial foi perpetrado também em relação à referida paciente, inexistindo qualquer modificação dos fatos, ou ampliação da discussão, como sugerido em contrarrazões.

Neste contexto, o que ocorreu foi a juntada posterior de documentos pelo órgão do Ministério Público Eleitoral, os quais demonstram a mesma atividade ilícita apontada na inicial: agilização graciosa de consultas médicas por meio de fraude no cadastro do sistema de agendamentos do SUS.

Em outras palavras, pedido e causa de pedir permaneceram inalterados, e a situação é amparada pelo caput do art. 435 do Código de Processo Civil, que admite a posterior juntada de “documentos novos, quando destinados a fazer prova de fatos ocorridos depois dos articulados”:

Art. 435. É lícito às partes, em qualquer tempo, juntar aos autos documentos novos, quando destinados a fazer prova de fatos ocorridos depois dos articulados ou para contrapô-los aos que foram produzidos nos autos.

Parágrafo único. Admite-se também a juntada posterior de documentos formados após a petição inicial ou a contestação, bem como dos que se tornaram conhecidos, acessíveis ou disponíveis após esses atos, cabendo à parte que os produzir comprovar o motivo que a impediu de juntá-los anteriormente e incumbindo ao juiz, em qualquer caso, avaliar a conduta da parte de acordo com o art. 5º.

A questão está também albergada pelo caput do art. 266 do Código Eleitoral, que autoriza a juntada de novos documentos com o recurso inominado eleitoral:

Art. 266. O recurso independerá de termo e será interposto por petição devidamente fundamentada, dirigida ao juiz eleitoral e acompanhada, se o entender o recorrente, de novos documentos.

Aliás, com fundamento nesses dispositivos legais, é permitida a juntada de documentos novos para contrapor os acostados a eventual recurso, razão pela qual também merece ser conhecida a ata notarial apresentada pela candidata com as suas contrarrazões recursais, prova utilizada para impugnar a veracidade de um dos depoimentos colhidos na referida sindicância hospitalar.

Essa prova inclusive contribui para demonstrar que foi possibilitado à parte recorrida o exercício do contraditório relativamente aos documentos que acompanham o recurso ministerial.

A legalidade do procedimento bem ilustra-se pelo aresto ora trasladado, de relatoria do Ministro Luiz Fux:

PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. JUNTADA DE DOCUMENTO COM A APELAÇÃO. POSSIBILIDADE. ARTS. 397 E 398, CPC. EXEGESE. PRECEDENTES DO STJ.

1. O Direito Brasileiro veda o novorum iudicium na apelação, porquanto o juízo recursal é de controle e não de criação (revisio prioriae instantiae). Em consequência, o art. 517 do CPC interdita a arguição superveniente no segundo grau de jurisdição de fato novo, que não se confunde com documento novo acerca de fato alegado.

2. Precedentes do STJ no sentido de que a juntada de documentos com a apelação é possível, desde que respeitado o contraditório e inocorrente a má-fé, com fulcro no art. 397 do CPC.

3. Recurso especial provido.

(STJ, RESP n. 466.751, DJ 23.6.2003.) (Grifei.)

No mesmo sentido é a lição doutrinária: “a lei não proíbe a juntada de documento novo referente a fato velho em sede de apelação, desde que se demonstre que ele não pôde ter sido juntado antes” (DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 3. 7. ed. Salvador: Jus Podivm, p. 128).

Portanto, não há que se falar em inovação do debate em sede recursal, surpresa ou vulnerações à ampla defesa ou ao devido processo legal, mas em simples documento novo referente a fato sobejamente tratado nos autos, relativamente ao qual foi produzido contraditório.

Com essas considerações, rejeito a preliminar.

 

2. Mérito

a) Fatos e provas

De acordo com os recorrentes, Maria de Lourdes Bauermann, campeã de votos nas eleições para a Prefeitura de Ivoti nos anos de 2004, 2008 e, agora, em 2016, na qual obteve uma votação superior a 8.700 votos, venceu a eleição praticando abuso de poder político e econômico. As ações eleitorais foram ajuizadas com base no procedimento investigatório criminal denominado “Operação F5”, cuja cópia integral foi juntada aos autos do processo RE 569-85, na forma de cinco anexos, e em arquivo digital no formato “PDF”, e que também consta dos volumes 1 a 4 dos autos do processo RE 567-18.

Os fatos foram, na época, amplamente divulgados na grande mídia nacional, pela TV, jornais e internet, conforme matérias jornalísticas juntadas aos autos de ambos os feitos.

A investigação foi instaurada em 16.9.2016, a partir das declarações prestadas perante a Promotoria de Justiça de Estância Velha, por funcionário público lotado na Secretaria Municipal da Saúde de Ivoti, revelando que, por razões partidárias, havia fraude na marcação de consultas médicas especializadas do Sistema Único de Saúde (SUS), com a finalidade de agilizar o atendimento em unidades hospitalares localizadas em Porto Alegre.

A fraude se deu por meio da inserção de dados falsos sobre o endereço de pacientes – notoriamente domiciliados em Ivoti, na condição de residentes em Taquara – no sistema informatizado em utilização pela central de agendamentos da rede pública de saúde (Sistema Aghos do SUS). A prática contrariou a determinação legal de que o acesso à saúde seja realizado de acordo com as vagas existentes no domicílio do paciente, princípio/diretriz relativo à “descentralização com ênfase na municipalização”, disposto no Decreto Federal n. 7.508 de 2011, que regulamenta a Lei n. 8.080/90 – Lei Orgânica da Saúde (LOS).

A interferência na fila de espera do SUS prejudicou os pacientes realmente graves, que esperavam regularmente por atendimento médico, em situação mais premente do que as pessoas favorecidas pela candidata recorrida.

Os pacientes reclamavam aos servidores da Secretaria Municipal de Saúde de Ivoti da demora no agendamento, e retiravam a documentação médica lá depositada, afirmando que entregariam diretamente para Maria de Lourdes Bauermann, “porque ela conseguiria agendar de forma muito mais rápida”.

Com base em documentos indicando datas, nomes de pacientes, de servidores públicos e de pessoas vinculadas a outros órgãos de acesso ao SUS, a Promotoria de Justiça realizou extensa investigação. Após, verificou que, efetivamente, pessoas domiciliadas em Ivoti, com o cartão do SUS também registrado com endereço de Ivoti, estavam sendo recadastradas no sistema de agendamentos do SUS como residentes em Taquara, porque referido município possui maior oferta de agendamentos médicos.

A inclusão desses dados inverídicos possibilitava que diversos pacientes de Ivoti obtivessem vantagens na designação de atendimento médico em Porto Alegre, com a marcação rápida de consultas, exames, cirurgias e diversos procedimentos em poucos dias, sem a devida comprovação de urgência ou necessidade. Na ordem natural do sistema, tais atendimentos demorariam meses ou anos para serem realizados.

Depois da análise dos dados do sistema eletrônico de saúde, e de diligências in loco, o Ministério Público verificou que, por diversas vezes, foi inserido como residência dos pacientes, moradores de Ivoti, endereços falsos na Cidade de Taquara.

Foi ordenada judicialmente a busca e apreensão de documentos de diversas pessoas investigadas no expediente criminal, inclusive da recorrente Maria de Lourdes, tendo sido apreendidos diversos equipamentos eletrônicos e documentos relativos a consultas e exames médicos de inúmeros eleitores, e aparelhos de telefone celular.

No anexo 2 e nos volumes 1 e 2 dos autos do processo RE 569-85 (e também nos volumes 1, 2, 3 e 4 dos autos do processo RE 567-18), foi juntado o detalhado “Relatório Análise” das conversas registradas nos telefones apreendidos.

As provas juntadas aos autos demonstram que a candidata Maria de Lourdes gerenciava um serviço de transporte diário dos eleitores para as instituições hospitalares onde seriam atendidos, por meio de seu automóvel particular, de veículos e de outros motoristas: Rogério, de Presidente Lucena, Vanderlei, de São José do Hortêncio, Adriano Graeff e Paulo, este último conhecido como “Pitoco”.

A presente decisão tomará por base os fatos cometidos no ano de 2016 até datas próximas ao pleito municipal, sem perder de vista o entendimento destacado pelo diligente órgão ministerial: “a jurisprudência do TSE admite, na AIJE, o exame de fatos ocorridos antes do registro de candidatura” (TSE, AgRegRO n. 107-87, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJE 06.11.2015).

A seguir, apresento uma amostragem das conversas registradas nos autos (na forma original como foram grafadas), pois são inúmeros os diálogos nos quais a candidata trata da concessão de vantagens aos eleitores de Ivoti, demonstrando que a agilização de atendimentos do SUS e o serviço de transporte foram benesses concedidas a pleno vapor durante o período de campanha eleitoral.

A íntegra está no “Relatório Análise” da operação policial. Há, realmente, número abundante de mensagens enviadas e recebidas pela candidata, sempre envolvendo um contingente de beneficiários pela sua ingerência na marcação de procedimentos de saúde custeados pelo SUS e no serviço de transporte dos eleitores beneficiados.

Inicio pela referência às conversas travadas pela candidata em 2016, no ano da eleição, em 15.6.2016, 1.9.2016, 28.9.2016 e em 30.9.2016, consoante amostras selecionadas pelo Parquet em sua petição inicial:

Em diálogo colhido, a ré é informada do agendamento da consulta solicitada por Corete Bockorny para seu esposo Paulo Pedro Bockorny, em 22.7.2016. No mesmo diálogo, a investigada destaca como deve ser a “encenação” do favorecido. Confira-se:

Corete: Bom dia Maria ligaram da ulbra que a consulta do paulo é dia 22 .7.

Maria de Lourdes: Nossa tão rápido? Leva todos os exames e me deixa a par de tudo.

Maria de Lourdes: Vamos tentar conseguir.

Corete: OK tudo bem.

Corete: Obrigada por enquanto.

Maria de Lourdes: no dia da consulta tem que chorar bastante e ainda falo contigo antes! Abraço.

Mais próximo ao pleito eleitoral, em setembro de 2016, sutilmente Maria de Lourdes traz à memória de Corete quem lhe havia ajudado. Confira-se:

Maria de Lourdes: Boa tarde! És uma pessoa muito especial para mim!

Corete: Você também pra nós.

Conforme acertadamente concluiu o diligente Promotor Eleitoral, o colóquio entre Maria de Lourdes e Corete, no período eleitoral, elucida o especial fim de agir e o desejo de retribuição, em votos, pelo auxílio recebido pela eleitora na esfera da saúde. Evidencia-se a dívida de gratidão, que fica, pela graça obtida. Daí decorre a afirmativa: “estamos com você vamos a vitória” e “armei mais uns votos”:

Corete: Maria a ulbra ligou pra nós que a consulta foi pro dia 26 do 10.

Corete: 26 de outubro do traumatologista.

Corete: A outra é pra semana que vem os papéis estão com você.

Corete: Já recebi os papéis.

Maria de Lourdes: Que bom!

Corete: Obrigada.

Corete: Estamos com você vamos a vitória.

Corete: Armei mais uns votos.

Maria de Lourdes: Que bom! Obrigada pelo apoio!

Outra eleitora, Soeli Dhein, também enviou mensagens para Maria de Lourdes, relativas à marcação de consultas e ao fornecimento de transporte para o hospital, em 23.6.2016 e em 25.6.2016, questionando se a candidata havia conseguido realizar os agendamentos:

Soeli Dhein: Bom dia tudo bem???

Soeli Dhein: Não consigo mais falar com você “”gostaria de saber c conseguiu marcar as coisas da minha filha e neta c não conseguiu me avisa p ela dar outro jeito beijos.

Maria de Lourdes: A Dra não colocou o motivo dos exames.

Maria de Lourdes: Pedir endoscopia para criança?

Maria de Lourdes: Da tua filha porque estes exames.

Soeli Dhein: Bom dia posso ir com você na PUC terça-feira preciso internar as horas vou fazer cirurgia hérnia bj.

No mesmo sentido também são as mensagens enviadas por Gilmar Mot, ocorridas em diversas datas e, inclusive, em 28.6.2016, em benefício do eleitor Nelmo Kuns. Nos diálogos são repassadas apenas uma foto do cartão do SUS e uma requisição médica de exames, com a indicação “Ele precisa traumato quadril”, para que fossem tomadas as providências de agilidade no agendamento. A seguir, reproduzo a conversa registrada:

Gilmar Mot: Maria tu precisa ver o retorno do seu Nelmo kunz.

Gilmar Mot: Pai da Rita.

Maria de Lourdes: Tem marcado não te preocupa! Abraço.

Como se vê, o serviço assistencialista devia ser solicitado diretamente à candidata Maria de Lourdes, que ordenava a interferência na fila de espera do SUS e confirmava, pessoalmente, os agendamentos providenciados.

Reproduzo, também, as mensagens trocadas entre a candidata e a ex-detentora de cargo em comissão, Cristiani Heylmann, que trabalhou no gabinete da candidata recorrida quando Maria de Lourdes foi Prefeita de Ivoti. Os diálogos estão separados pela data e revelam, com clareza, a forma com que a candidata administrava seu esquema de caronas aos eleitores, e a concessão de vantagens nos agendamentos da rede pública de saúde:

1. 12.7.2016:

Cristiani Heylmann: Bom dia!!

Cristiani Heylmann: A eco da Sueli não tem como marcar para quinta feira dia 14.7.

Cristiani Heylmann: O teu amigo falou que os médicos não vem na quinta.

Cristiani Heylmann: Marcou para sexta agora.

Cristiani Heylmann: Mas qualquer coisa ele desmarca.

Maria de Lourdes: De manhã.

Maria de Lourdes: Cris vai e remarca para segunda ou terça feira de manhã prefiro na terça.

 

2. 25.7.2016 a 27.7.2016 (conversa iniciada pelo envio de uma foto para a candidata):

Cristiani Heylmann: Rua João Antônio da Silveira, 48 centro CEP 93510-300 Casa Condomínio madri.

Cristiani Heylmann: Oi.

Cristiani Heylmann: Com quem eu falo hoje a tarde se acaso não quiserem fazer a mamografia da Lucema??

Maria de Lourdes: Me liga!

Cristiani Heylmann: Me vê com a Ione a consulta do Pedro Henrique Xavier.

Cristiani Heylmann: Teu certo com a Lucema.

Cristiani Heylmann: Locema já foi chamada agora.

Maria de Lourdes: Eu sabia!

Maria de Lourdes: E o Adriano aonde está.

Cristiani Heylmann: Acho que vou ver uma carona para ela.

Cristiani Heylmann: O que você acha??

Maria de Lourdes: Sim liga para Rogério de Presidente Lucena para o Vanderlei de São José do Hortêncio.

Maria de Lourdes: Tudo certo para amanhã! O pitoco motorista e a saída às 11 horas. Vai junto o Mombach tens a ficha no clínicas e a Maria Bernardete Land também no clínicas. E vocês vão no Shopping.

Maria de Lourdes: Bernardete buscar em casa.

 

3. 04.8.2016:

Cristiani Heylmann: Não entendi as coisas do Matheus Shallenberger

Cristiani Heylmann: Onde vou marcar??

Maria de Lourdes: Na cirurgia pediátrico ou pediatria o primeiro ambulatório a esquerda antes do bar.

Maria de Lourdes: e logo depois dos guardas.

Cristiani Heylmann: sim.

Cristiani Heylmann: já marquei.

 

4. 11.8.2016:

Cristiani Heylmann: Oi.

Cristiani Heylmann: Sabe que o Saulo não trabalha mais aqui.

Cristiani Heylmann: Tem 2 funcionaria nova marcando.

Cristiani Heylmann: E agora??

Maria de Lourdes: O Saulo foi para onde!!! descobre!!!

Cristiani Heylmann: Tem carona para meu tio de Presidente Lucena??

Cristiani Heylmann: Ele está pronto e o Rogério vai só depois do meio dia.

Maria de Lourdes: Sim.

Maria de Lourdes: Estou puta da cara vou cortar as relações com a llse ! Ontem estava no baile e hoje diz que o carro tem problema! O Rodrigo está trazendo ela e eu gostaria que tu ficasse com ela é exame e consulta!

Maria de Lourdes: Daí não tenho compromisso com ela quanto ao emprego.

 

5. 23.8.2016:

Maria de Lourdes: Amanhã de manhã não precisas ir na Puc!

Maria de Lourdes: Na quinta feira sim: retira a da Keully Tauane Kaiper e a consulta na oncologia.

Maria de Lourdes: Anna Carolina Rost.

Maria de Lourdes: Cris olha amanhã no carro na frente uma notinha de combustível assinada pelo Adriano.

 

6. 21.9.2016:

Maria de Lourdes: Cris: ligar para o Inácio da Márcia e pedir para eles irem com Presidente Lucena amanhã!

Maria de Lourdes: Ligar para o Rogério de Presidente Lucena e perguntar se eles podem ir junto amanhã.

Maria de Lourdes: Ligar para a Nelly e disser que buscas o retorno de hoje de tarde ás 11 horas e 30 minutos!

Cristiani Heylmann: Já estou com o retorno da Marcia aqui em casa.

Maria de Lourdes: A Zuleica embarque ca na tua casa ás 11 horas e 30 minutos!

 

7. 22.9.2016:

Maria de Lourdes: Vou passar na tua casa!

Cristiani Heylmann: Soeli Dhein não vai amanhã de manhã.

Cristiani Heylmann: A consulta dela foi cancelada.

Cristiani Heylmann: A Rejane da Puc vai ligar para ela em outubro para passar nova data.

 

Cristiani Heylmann: O Adriano quer sair mais tarde amanhã de manhã.

Cristiani Heylmann: Se for só o Clederson pode ser 06:15??

Maria de Lourdes: Sim!

Cristiani Heylmann: Vou avisar o Clederson.

Maria de Lourdes: Sim!

 

8. 8.10.2016:

Maria de Lourdes: Como foram as outras!!

Cristiani Heylmann: Não sei Maria.

Cristiani Heylmann: Nossa telefone estão também grampiados.

Cristiani Heylmann: Hoje a tarde vou atrás de algumas pessoas.

Maria de Lourdes: Ok!

Cristiani Heylmann: Mas foi pesado.

Maria de Lourdes: Lógico!!

Cristiani Heylmann: Eu estou muito preocupado mas não te mostro.

Cristiani Heylmann: Vamos enfrentar as feras.

Cristiani Heylmann: Tem muitos papéis na tua casa ainda.

Maria de Lourdes: Porque?

Maria de Lourdes: No meu quarto tenho a minha agenda! Em cima da banquete! Leva no Darcio.

 

9. 13.10.2016:

Cristiani Heylmann: Olá… tudo??

Cristiani Heylmann: A Ilse veio me falar que ligaram do hospital Geral que a irmã da Maristela a Angela Pohren tem colonoscopia.

Cristiani Heylmann: Ela vai lá buscar hoje a tarde o preparo e ver a data que foi marcado.

Maria de Lourdes: OK!

Cristiani Heylmann: Ilse me pediu papéis.

Maria de Lourdes: Papéis estão com a Ione do Daltro! Manda um watts para ela pedindo!

Cristiani Heylmann: Sim.

 

10. 14.10.2016:

Cristiani Heylmann: Agora vim aqui na Puc buscar as receitas da Soeli de Souza Dhein.

Maria de Lourdes: Quem tirou as letras?

Cristiani Heylmann: O Adriano e o Dijone na quarta a tarde.

Cristiani Heylmann: Desculpa ontem a tarde.

Cristiani Heylmann: O que você acha em desmarcar aquele 2 dentista de quarta a tarde das 15:00??

Cristiani Heylmann: Um é filho da Bernardete e o outro do Lírio.

Especificamente quanto ao fornecimento de serviço de transporte dos eleitores, de Ivoti para a capital, e a obtenção de consultas médicas do SUS, no período de campanha, transcrevo, ainda, as seguintes conversas entre Cristiani Heylmann e Maria de Lourdes:

01. 14.8.2016:

Cristiani Heylmann: Tenho que comprar o dulcolax.

Maria de Lourdes: Sim.

Maria de Lourdes: O Adriano te busca às 6 horas e aí tu buscas a Lúcia cabeleireira que vai na puc contigo e o Mombach no Clínicas!

 

02. 15.8.2016 e 17.8.2016:

Maria de Lourdes: E a mamografia da Lucena e os dentistas e as fichas dele.

Cristiani Heylmann: Estão em casa.

Cristiani Heylmann: Não levei ontem com os outros papéis porque fui a pé e ia dar muito volume.

Maria de Lourdes: Amanhã às 11 horas e 30 minutos na Socaltur !!!

Cristiani Heylmann: Queres que eu deixo a mamografia da Locema amanhã quando volto de Poa??

 

3. 11.9.2016:

Maria de Lourdes: Já ligou para o Pitoco para ir na terça feira manhã às 5 horas e 30 minutos?

Cristiani Heylmann: Ele não atendeu.

Cristiani Heylmann: Acho que estava no jogo do crêmio.

Cristiani Heylmann: Ligo amanhã de manhã.

Maria de Lourdes: Liga logo @.

Cristiani Heylmann: Amanhã eu e o mombach com o Adriano as 06:00.

Maria de Lourdes: Sim e a Nelly quando tem que ir no Clínicas?

Cristiani Heylmann: Na quinta a tarde.

Cristiani Heylmann: E a Lourdes quer ir na quinta de manhã.

 

4. 12.9.2016, 19.9.2016 e 21.9.2016:

Cristiani Heylmann: Avisei o pitoco para amanhã as 05:30.

Cristiani Heylmann: Falei com a mãe a pouco e disse que pode vir trabalhar hoje a tarde.

Maria de Lourdes: Cris : ligar para i Inácio da Márcia e pedir para eles irem com Presidente Lucena amanhã!

Maria de Lourdes: Ligar para o Rogério de Presidente Lucena e perguntar se eles podem ir junto amanhã.

Maria de Lourdes: Ligar para a Nelly e disser que buscas o retorno hoje de tarde ás 11 horas e 30 minutos!

Cristiani Heylmann: Já estou com o retorno da Marcia aqui em casa.

Maria de Lourdes: A Zuleica embarque ca na tua casa ás 11 horas e 30 minutos!

Cristiani Heylmann: Eles vieram aqui em casa ontem a noite.

Maria de Lourdes: Amanhã fala com o Pitoco para ir às 11 horas e 30 minutos para poa e levar a Clarice do Gilberto e tu vais junto para remarcar algumas coisas do Clínicas!

Cristiani Heylmann: Ok.

 

5. 21.9.2016

Maria de Lourdes: Liga para o Vanderlei de São José do Hortêncio.

Maria de Lourdes: Eles embarcam no posto Schelling na avenida bom jardim.

Maria de Lourdes: Shell.

Maria de Lourdes: Deu certo?

Maria de Lourdes: Amanhã preciso entregar Papéis urgente!

Cristiani Heylmann: É os da Zuleica??

Maria de Lourdes: Puc.

Também importa mencionar haver registros apontando que a candidata estava orientando o depoimento de testemunhas após a deflagração das investigações dos fatos ora apurados.

Em conversa gravada pela autoridade policial, em 06.10.2016, travada com Regis Weber, a candidata questiona sobre a investigação dos fatos e a coleta de depoimentos promovida pelo órgão ministerial, oportunidade em que Regis informa ter orientado as pessoas a não envolver o nome de Maria de Lourdes em suas declarações.

Noutra mensagem, de 06.10.2016, Maria de Lourdes pede para Cristiani Heylmann orientar Sonia Franz a dizer que “sempre foi com a prefeitura”. Ainda, em 07.10.2016, Cristiani Heylmann envia mensagem para a candidata informando que “Vilmar já foi orientado”.

O conteúdo dos diálogos comprova o envolvimento da candidata nos fatos, e deixa claro que o fornecimento de transporte e o serviço de agilização de agendamentos do SUS foi o verdadeiro palanque da sua campanha eleitoral.

Conforme já referido, há inúmeras outras conversas, no período de campanha eleitoral, com a mesma temática dos diálogos acima transcritos: facilitação de agendamentos médicos e concessão de transporte a diversos eleitores de Ivoti.

Além disso, foi apurado que os eleitores referidos nas mensagens de Maria de Lourdes foram, efetivamente, beneficiados por consultas realizadas pelo SUS sem que tenham sido encaminhados pela Secretaria Municipal da Saúde de Ivoti, merecendo registro os casos mencionados na inicial do RE 569-85:

1. Mário Felippe Closs obteve consulta em traumatologia no Hospital da Ulbra, em Canoas, no dia 29.6.2016;

2. Paulo Wilwert obteve consulta em traumatologia no Hospital Geral, em Novo Hamburgo (com o mesmo Dr. Luciano Urnauerl, indicado pela Médica Ione), no dia 16.6.2016;

3. Paulo Pedro Bockorny obteve consulta no Hospital da Ulbra, em Canoas, no dia 22.7.16;

4. Zuleica Arnecke obteve exame de tomografia, no Hospital da PUC, em Porto Alegre, no dia 22.9.2016.

No Relatório de Auditoria, realizada pelo Hospital São Lucas da PUC de Porto Alegre (volume 2 dos autos do processo RE 569-85), a Secretaria Municipal da Saúde de Ivoti confirma que pacientes residentes em Ivoti, sem apontamento de emergência, foram beneficiados com marcação de procedimentos médicos de forma urgente.

Aliás, nos termos já mencionados em sede preliminar, a sindicância realizada pelo referido hospital concluiu que Maria de Lourdes Bauermann ordenou aos funcionários que alterassem o endereço da paciente Zuleika Arnecke Schneider no cadastro do SUS, a fim de propiciar-lhe uma consulta médica na instituição.

No Relatório de Averiguações Irregulares nas Marcações de Especialidades em Sistema Aghos, acostado no anexo 1 dos autos do processo RE 569-85, é demonstrada a irregularidade na inserção de dados de diversos moradores de Ivoti, que possuem cartão do SUS também registrado em Ivoti, e a troca de residência para municípios vizinhos como Taquara. Dessa forma, tais pacientes eram beneficiados com maior rapidez nos agendamentos médicos.

Foi reportado o caso da eleitora Maria Marlene Pilger, cadastrada no sistema do SUS como domiciliada em Taquara, mas notoriamente moradora de Ivoti. No mesmo dia do cadastro, foi solicitada uma consulta com a especialidade oftalmologia, que foi realizada apenas cinco dias após, enquanto que o tempo médio para o referido atendimento é de dois anos ou mais, com cerca de 60 pessoas em fila de espera.

Igual é o caso da eleitora Irene Rosane Dhein Weber, que embora residente em Ivoti, teve seu cadastro no SUS alterado de Ivoti para Taquara. No mesmo dia da alteração foi aprazada uma consulta médica na especialidade oftalmologia, atendimento que foi realizado duas semanas após, sem a devida comprovação de emergência, enquanto que os casos urgentes, com diagnóstico de provável perda de visão, são atendidos no prazo médio de 50 dias.

A eleitora Clarice Hilda Guthel Koch, da mesma forma, teve o cadastro do SUS modificado de Ivoti para Taquara, e teve consulta com oncologista marcada para cinco dias após a alteração, enquanto que o tempo médio de espera de agendamento regular pode levar até 55 dias.

A mesma situação é reportada quanto aos eleitores Ronald Backes, Gabriela Backes, Vilmar José da Silva, Juliana Erhart Fuhr, Adriana Barros, Isoldi Maria Hub Schallenberger, Edilce Nair Winter dos Passos, Renati Backes, Sidonia Felten Toebe, André Luis da Silva, Franciele dos Santos Hammes, Sonia Franz, Vandelino Becker, todos sabidamente residentes em Ivoti e recadastrados no SUS para o Município de Taquara.

No anexo 5 dos autos do processo RE 569-85 (e no volume 5 dos autos do processo RE 567-18) foi acostada cópia dos cadernos 01, 02 e 03, apreendidos com a candidata Maria de Lourdes. Nos documentos estão registradas diversas anotações, com nomes de instituições hospitalares e dados de diversos eleitores (nome, filiação, número do CPF e do cadastro no SUS), associados a pedidos de atendimento médico, ao nome de enfermidades, e a procedimentos de saúde a serem realizados.

Cito, como exemplo, as seguintes anotações:

- 1. Ulbra; 2. Conceição; 3. Independência – Dr. João Alberto Barreto Benfica – Urologista – Laci Kunst;

- Tenho 3 tomografia: Ilaine Graeff, TC de Região Cervical; Rosane Bastos, TC de Crânio; Denise Moreita, TC Pulmão (nódulos);

- Janete Terezinha Weber Britz – Leito A – Pedra nos rins – Rogério;

- Ulbra Canoas – Anibaldo Luis Paulus – tomografia;

- Edio José Fry – medicina interna;

- Barbara Bech Utzig – otorrinolaringologia;

- Márcia Eunice Hoff – exame colonoscopia;

- Lori Maria Dias – reumatologia.

O contundente acervo probatório apresentado com a petição inicial também foi confirmado pelos depoimentos das testemunhas arroladas pelas partes, colhidos em respeito ao contraditório e à ampla defesa.

O servidor da Secretaria Municipal da Saúde de Ivoti, Eduardo Soares de Lima, confirmou o depoimento prestado perante a Promotoria de Justiça de Estância Velha, no sentido de que as pessoas buscavam sua documentação médica para entregar a Maria de Lourdes, justificando que ela conseguia as consultas de forma mais rápida. Todos os servidores sabiam dessa prática. O caso mais emblemático foi o do paciente Vilmar, que apareceu na reportagem divulgada pela RBSTV, pois ele aguardava por uma cirurgia há bastante tempo e, quando verificaram no sistema, constataram que o endereço do paciente havia sido alterado para a Cidade de Taquara. Narrou ter recebido reclamações de que alguns pacientes estavam sendo atendidos com prioridade pelo SUS. Após verificações de dados nos sistemas de cadastro do SUS e da Secretaria Municipal da Saúde de Ivoti, foi constatado que as pessoas eram encaminhadas para o Município de Taquara mediante alteração de endereço, procedimento realizado por uma servidora de Ivoti e também por uma servidora de Taquara, que tinham acesso ao sistema de agendamentos. Os atendimentos eram aprazados até mesmo para pacientes novos, que sequer estavam aguardando na fila de espera. Revelou que na maior parte dos casos identificados, em que pacientes conseguiram a antecipação da consulta, as próprias pessoas reconheciam terem obtido intervenção de Maria de Lourdes nos agendamentos do Município de Taquara, e afirmaram que a candidata também providenciava o transporte até Porto Alegre, pessoalmente ou por intermédio de Adriano Graeff e de Paulo, conhecido como “Pitoco”. A testemunha teceu considerações sobre o prejuízo dessa prática para as pessoas que aguardavam por consultas e procedimentos médicos, tais como exames e cirurgias, e referiu que a candidata é muito admirada na Cidade de Ivoti em razão dos serviços que prestava para a população.

A técnica de enfermagem Maria Menzen confessou que, algumas vezes, Maria de Lourdes transportou sua tia de Ivoti para Porto Alegre, às 5h da manhã, para realização de consultas médicas e exames, sendo que a última vez foi pouco antes do mês de julho de 2016. Afirmou não saber se era pago algum valor pelo serviço ou se o transporte era condicionado a qualquer tipo de vantagem eleitoral.

A servidora da Secretaria Municipal da Saúde de Ivoti, Marne Luciane Steffen, relatou ter tomado conhecimento dos fatos entre 2014 e 2016, a partir da constatação de que uma paciente, residente em Ivoti, tinha uma consulta médica em Porto Alegre, a qual não foi agendada por intermédio da Secretaria da Saúde de Ivoti, e sim por Taquara. Na ocasião, a paciente afirmou nunca ter morado em Taquara e ter entregue sua documentação médica para o vereador Roberto Schneider, para que fosse repassada a Maria de Lourdes, a qual providenciou o agendamento. Afirmou que os pacientes reclamavam e questionavam os servidores da Secretaria da Saúde: “Como a Maria de Lourdes consegue e vocês não conseguem marcar as consultas?”. Disse que a candidata fazia o transporte de pacientes de Ivoti até Porto Alegre todos os dias, fato conhecido por toda a população e praticado mesmo antes de Maria de Lourdes ser prefeita.

A agente de saúde Rejane de Fátima Rodrigues Arnold declarou que, nas visitas às residências dos moradores de Ivoti, várias pessoas xingavam e reclamavam do fato de que a Secretaria Municipal de Saúde não conseguia marcar consultas médicas, dizendo que Maria de Lourdes agendava com mais rapidez e facilidade, além de fornecer transporte até Porto Alegre. Disse que viu a candidata realizar transporte de pessoas até o Hospital da PUC por meio de dois automóveis na cor prata.

A servidora da Secretaria Estadual da Saúde, Miriam Beatriz Belinaso, que trabalha no Núcleo de Monitoramento e Avaliação do Departamento de Regulação Estadual, relatou que, em maio de 2016, foi observado um grande volume de solicitações, cadastradas no tipo “copia e cola”, demonstrando que não havia urgência ou justificação médica para o agendamento de consulta. Verificou-se que 92% dos agendamentos de Taquara tinham CID inespecífico, e que, dos 6.139 agendamentos realizados pelo Município de Taquara, 5.136 haviam sido solicitados e cadastrados pela mesma servidora, Magali.

A servidora da Secretaria Estadual da Saúde, Mayra Marcela Souza Rodriguez, confirmou os fatos narrados por Miriam Beatriz, no sentido de ter sido constatado que os cadastros suspeitos eram sempre realizados pela mesma servidora e sem preenchimento adequado, evidenciando-se um verdadeiro “copia e cola”, prática que interferia no andamento normal do processo de regulação de consultas e na prioridade de casos clínicos graves.

A eleitora Sidonia Felten Toebe, moradora de Ivoti, confirmou que Maria de Lourdes lhe ajudava na marcação das consultas médicas, providenciando também o transporte, e alegou nunca ter residido ou ter vínculo com o município de Taquara. Disse que era sempre o mesmo motorista que a buscava em casa, e que o carro sempre estava “cheio”, lotado com outras pessoas ajudadas por Maria de Lourdes e que precisavam de consultas médicas. Disse que ligava para a candidata para que ela auxiliasse com os agendamentos médicos, e que conhece muitas pessoas que eram ajudadas pela candidata, mesmo antes de ser prefeita. Negou que tenha sido solicitado algo em troca do auxílio.

O eleitor Vilmar José da Silva, morador de Ivoti, negou ter residido em Taquara. Narrou ter tentado agendar duas cirurgias por meio da prefeitura, mas depois de muita demora, entrou em contato com Maria de Lourdes, que marcou a consulta, após ter recebido seus documentos médicos, que foram entregues à candidata pelo genro de Vilmar. Informou ter realizado as duas intervenções cirúrgicas, em 2016 e 2017.

O eleitor Clederson Rogério Baches, morador de Ivoti, narrou que, em setembro de 2014, a candidata intercedeu junto à direção do Hospital da PUC, para reclamar sobre a demora de uma cirurgia médica. Após a candidata discutir pessoalmente com a administração do hospital, o procedimento foi realizado em 2 semanas. Disse que o transporte foi providenciado pela prefeitura municipal. Negou que o auxílio tenha sido fornecido em troca de votos ou de dinheiro.

A eleitora Elisa Pohren Enzweiler, residente em Dois Irmãos, disse que há trinta anos a representada lhe agendou uma cirurgia no Hospital Banco de Olhos, na cidade de Porto Alegre.

A eleitora Marli Laux Rohr, moradora de Ivoti, disse que Maria de Lourdes lhe ajudou com questões relacionadas à saúde em 1987.

O eleitor Neuri Celso Scharpp, residente em Ivoti, afirmou que a candidata auxiliou sua esposa no ano de 2013, acometida por um câncer.

A eleitora Rovenia Schneider Utsig, moradora de Ivoti, contou que em 2011, quando foi acometida por câncer, Maria de Lourdes, que era Prefeita de Ivoti, ajudou-lhe dando palavras de apoio.

A eleitora Verena Graeff, domiciliada em Ivoti, declarou que a candidata lhe auxiliou em 2011, na época em que foi acometida por câncer, fornecendo transporte até o hospital, dando apoio e a visitando, sem pedir nada em troca.

O eleitor Leonardo Hoff, residente em Novo Hamburgo, disse que, entre 2006 e 2008, foi diretor do Hospital Geral de Novo Hamburgo, e que a candidata nunca lhe solicitou auxílio na marcação de consultas.

A eleitora Irene Rosane Dhein Weber disse que mora em Ivoti e que nunca residiu na cidade de Taquara. Afirmou que, no ano de 2016, sua cunhada, chamada Irani, realizou seu cadastramento junto ao SUS para obtenção de uma consulta oftalmológica, agendada para três meses depois, sem a interferência de Maria de Lourdes.

A eleitora Irani Weber, corré de Maria de Lourdes na ação penal criminal movida pelo Parquet pelos mesmos fatos ora apurados, não prestou declarações em juízo.

O eleitor Mário Felippe Closs, morador de Ivoti, referiu nunca ter residido na cidade de Taquara, e que, nos anos de 2015 e de 2016, a Prefeitura de Ivoti agendou-lhe consultas médicas pelo SUS, realizadas no Hospital da Ulbra, na Cidade de Canoas, também providenciando o transporte.

O eleitor Paulo Wilwert disse que reside na cidade de Ivoti, que nunca morou no Município de Taquara, e que, em 2016, compareceu a consultas médicas no Hospital Geral de Novo Hamburgo, agendadas por Maria de Lourdes. Afirmou que aguardou por dois anos para que a prefeitura marcasse a consulta, mas, após a demora, procurou a candidata, a qual agilizou o atendimento.

O eleitor Paulo Pedro Bockorny, morador de Ivoti, afirmou nunca ter morado em Taquara, e declarou que, em 2016, submeteu-se a uma consulta médica no Hospital da Ulbra, em Canoas. Reconheceu que sua esposa, Corete, é amiga de Maria de Lourdes. Questionado sobre as mensagens trocadas, por celular, entre Maria de Lourdes e Corete, nas quais esta pede que Maria de Lourdes agilize a marcação de uma consulta para Paulo, a testemunha disse que o atendimento médico foi agendado através da Prefeitura de Ivoti, e afirmou que o transporte foi também fornecido pela municipalidade.

A eleitora Zuleika Arnecke Schneider, técnica de enfermagem, disse ser moradora de Ivoti e nunca ter residido em Taquara. Afirmou sempre ter consultas marcadas através de amigos, negando-se a revelar seus nomes. Disse não ter solicitado consultas à Prefeitura de Ivoti ou a Maria de Lourdes. Ao ser alertada sobre a caracterização do crime de falso testemunho, em vista das provas contidas nos autos e devido à recusa em dizer quem realizou os seus agendamentos médicos, Zuleika assumiu a possibilidade de criminalização.

Na audiência de instrução, o Ministério Público Eleitoral consignou que instauraria o procedimento relativo ao crime de falso testemunho relativamente à testemunha Zuleika Arnecke Schneider.

 

b) Sentença recorrida

Examinados os fatos e provas presentes no processo, passo a tecer algumas considerações sobre a sentença recorrida.

A ação foi julgada improcedente sob o fundamento de não ter sido demonstrado o nexo de causalidade entre os atos ilícitos alegados e a vitória dos candidatos na eleição, especificamente porque não foi produzida prova de fornecimento de vantagens em troca de votos.

Além disso, ponderou a nobre juíza a quo que o histórico de vida pessoal da candidata eleita, Maria de Lourdes Bauermann, evidenciaria a ausência de ilicitude no seu agir:

Saliento, a propósito, que, ao contrário do que referido pelo Ministério Público Eleitoral, em suas alegações finais, inexiste qualquer prova nos autos de que os investigados, através destas ações, tenham condicionado qualquer favorecimento à obtenção do voto, pois há relatos de testemunhas que foram ajudadas muito antes de Maria de Lourdes concorrer a cargos eletivos. Ressalto que a primeira gestão municipal da representada ocorreu no ano de 2004, quando esta foi eleita com 70,70%, reelegendo-se em 2008 com 54,14%.

Assim, sobejam nos autos documentos no sentido de que nunca houve algum pedido como forma de retribuição pela representada quer pelo aprazamento de consultas médicas, quer pelo transporte oferecido.

No entanto, a decisão recorrida olvida do fato de que o pedido de voto não é elemento essencial de nenhuma das infrações eleitorais atualmente previstas na legislação.

Em verdade, o condicionamento ao voto, o pedido de votos, tem sido cada vez mais relegado ao segundo plano, sendo considerado uma circunstância irrelevante tanto para o legislador quanto para a jurisprudência. Considera-se desnecessária a apuração sobre a existência de pedido de votos para que a Justiça Eleitoral verifique, em determinado fato da vida, a intenção de interferência na vontade do eleitor, na sua consciência, e a consequente quebra da isonomia entre os concorrentes ao pleito.

Não é imprescindível a prova de pedido de votos para que o julgador verifique o desequilíbrio nos meios conducentes à obtenção da preferência do eleitorado, ou o desvio e o abuso de parcela de poder, seja econômico ou de autoridade, tendente a influenciar a vontade dos beneficiários das benesses concedidas.

No momento do julgamento de Ação de Investigação Judicial Eleitoral, os olhos do julgador devem estar voltados para os bens juridicamente tutelados pelo Direito Eleitoral, que objetivam proteger o interesse público por meio da igualdade entre os candidatos, do exercício do voto livre e da legitimidade das eleições.

A ausência de pedido de votos não obsta sejam verificados os reflexos de um ato tão caro no equilíbrio na disputa, na paridade de armas, na salvaguarda da imparcialidade e na higidez do resultado do pleito, enfim, na ausência de interferência na capacidade de escolha do eleitor.

É dizer: o interesse público da lisura eleitoral (art. 23 da LC n. 64/90) não é mitigado pela falta de comprovação de pedido de votos.

Em uma eleição, deve sair vitorioso o candidato mais preparado, o mais apto ao exercício do cargo, o vencedor da luta justa e honrada, e não aquele que obteve o sucesso concedendo bens e vantagens capazes de influenciar, de comprometer e, muitas vezes, de determinar o resultado da disputa, não importa se tenha ou não manifestado, expressamente, o pedido para ser escolhido na urna.

Na hipótese vertente, a ação foi ajuizada com base no § 9º do art. 14 da CF, no art. 19, caput, e art. 22 e seus incs. XIV e XVI, todos da LC n. 64/90, requerendo os autores a apuração de uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade em benefício dos candidatos, com a consequente cassação de seus diplomas e a declaração de inelegibilidade. Nenhum desses dispositivos legais exige que os atos sejam praticados com expressa contrapartida do voto do eleitor:

Constituição Federal:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

[…]

§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. (Redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão n. 4, de 1994.)

 

Lei Complementar n. 64/90

Art. 19. As transgressões pertinentes à origem de valores pecuniários, abuso do poder econômico ou político, em detrimento da liberdade de voto, serão apuradas mediante investigações jurisdicionais realizadas pelo Corregedor-Geral e Corregedores Regionais Eleitorais.

Parágrafo único. A apuração e a punição das transgressões mencionadas no caput deste artigo terão o objetivo de proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou do abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta, indireta e fundacional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

 

 

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito:

[…]

XIV – julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso, e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar;

(Redação dada pela Lei Complementar n. 135, de 2010.)

[…]

XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam.

(Incluído pela Lei Complementar n. 135, de 2010.)

Na AIJE, a causa de pedir são os abusos genericamente previstos, praticados com o intuito de obter vantagem, ainda que indireta ou reflexa, na disputa do pleito. Parte-se do fato de que a interferência na igualdade entre os candidatos está inexoravelmente arraigada à prática abusiva, sendo desnecessário o pedido de votos porque a interferência no resultado do pleito é inevitável, previsível, certeira. Exige-se apenas a evidência de que os atos foram praticados com a gravidade das circunstâncias.

Em verdade, não deveria causar surpresa o fato de ser desnecessário o pedido de votos para a procedência das ações eleitorais.

Ora, na seara político-partidária não há benefício desinteressado; todos são maximizadores de seus próprios interesses. Em época de campanha, toda a generosidade é revertida em votos. Desconhecer essa realidade é uma ingenuidade.

A própria captação ilícita de sufrágio, prevista no art. 41-A da Lei n. 9.504/97, infração coloquialmente chamada de "compra de votos", prescinde do expresso pedido do sufrágio para ser configurada, exigindo tão somente a evidência do especial fim de agir, ou seja, da intenção de conquistar o voto do eleitor. Essa é a expressa dicção do § 1º do referido dispositivo legal, verbis:

Art. 41-A. Ressalvado o disposto no art. 26 e seus incisos, constitui captação de sufrágio, vedada por esta Lei, o candidato doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive, sob pena de multa de mil a cinquenta mil Ufir, e cassação do registro ou do diploma, observado o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990.

(Incluído pela Lei n. 9.840, de 1999.)

§ 1º Para a caracterização da conduta ilícita, é desnecessário o pedido explícito de votos, bastando a evidência do dolo, consistente no especial fim de agir.

(Incluído pela Lei n. 12.034, de 2009.)

O art. 41-A da Lei das Eleições é a norma mais emblemática para apresentar a total desnecessidade de pedido de votos para a procedência das ações eleitorais. Observe-se que o legislador presume que o candidato carrega em si o objetivo de obter o voto ao conceder ou anuir com a concessão de benesses ao eleitorado (bens ou vantagens pessoais de qualquer natureza), sendo despicienda a demonstração de tal resultado, exigindo-se apenas que se extraia, do contexto dos fatos, a finalidade, a intenção de conquista do eleitor.

Segundo o TSE: “Presume-se o que normalmente ocorre, sendo excepcional a solidariedade no campo econômico, a filantropia” (RESPE 5146, Rel. desig. Min. Março Aurélio Mendes de Farias Mello, DJ - 20.4.2006, pág. 124).

A rigor, ter como imprescindível o pedido explícito de voto significa negar aplicação ao disposto nas normas eleitorais.

Até porque, prevendo não haver concessão de vantagem desinteressada em época de campanha eleitoral, o legislador previu uma série de regras para proteger a legitimidade do pleito, o voto livre do eleitor e a isonomia entre os candidatos.

Estabeleceu-se o instituto da desincompatibilização, pelo qual a pessoa que pretende concorrer a mandato eletivo deve afastar-se de cargo, emprego ou função pública, evitando-se que tal circunstância seja utilizada pelo candidato em prol de sua campanha (CF, art. 14, § 9º).

Como antídoto à figura da reeleição, instituíram-se uma série de condutas vedadas a agentes públicos, assentando-se que seu cometimento será sempre tendente a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais (Lei das Eleições, arts. 73 a 78).

Pra manter a igualdade de oportunidades e a interferência abusiva do poder econômico, proibiu-se a distribuição de qualquer bem que possa ser pecuniariamente avaliado, que possa reverter-se em proveito, em vantagem econômica para o eleitor, tais como a distribuição de camisetas, chaveiros, bonés, canetas, brindes e cestas básicas. Proibiu-se a realização de showmícios e eventos assemelhados para promoção de candidaturas, assim como o uso de outdoors, em razão do elevado custo dessas formas de propaganda (Lei das Eleições, art. 39, §§ 6º, 7º e 8º).

E, logicamente, para manter a posição equânime entre os concorrentes ao pleito, os candidatos não podem fornecer transporte gratuito aos eleitores.

 

c) Enquadramento legal dos fatos narrados nas petições iniciais

As considerações até aqui delineadas são importantes para a demonstração de que o fornecimento de transporte  caracteriza a entrega de vantagem aos eleitores, e também abuso de poder econômico.

Todavia, constato ser inviável o julgamento de procedência das ações com base no reconhecimento de prática de abuso de poder político ou de autoridade, porque, por expressa previsão do art. 19 da LC n. 64/90, o abuso de poder político ou de autoridade efetiva-se por meio do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta, indireta e fundacional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

A propósito da necessidade de que o legitimado passivo da Ação de Investigação Judicial Eleitoral, por prática de abuso de poder político ou de autoridade, exerça um cargo público, colhe-se, na célebre doutrina de Rodrigo López Zilio, a lição de que, se o candidato não detém função pública, não é legitimado para responder por prática dessa forma de abuso:

Abuso de poder de autoridade é todo ato emanado de pessoa que exerce cargo, emprego ou função que excede aos limites da legalidade ou de competência. O ato de abuso de poder de autoridade pressupõe o exercício de parcela de poder, não podendo se cogitar da incidência desta espécie de abuso quando o ato é praticado por pessoa desvinculada da administração pública (lato sensu).

(Direito Eleitoral. 5. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2016, p. 558.)

Com idêntico entendimento, a abalizada jurisprudência do TSE:

RECURSO ORDINÁRIO. ELEIÇÕES 2014. GOVERNADOR. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ABUSO DE PODER POLÍTICO, DE AUTORIDADE E ECONÔMICO. CONDUTA VEDADA A AGENTES PÚBLICOS. PROVIMENTO PARCIAL. IMPOSIÇÃO DE MULTA.

Do abuso de poder político e econômico (art. 22 da LC 64/90), do abuso de autoridade (art. 74 da Lei 9.504/97) e das condutas vedadas a agentes públicos (art. 73, IV, VI, b, e § 10, da Lei 9.504/97).

1. Abuso de poder político configura-se quando agente público, valendo-se de condição funcional e em manifesto desvio de finalidade, desequilibra disputa em benefício de sua candidatura ou de terceiros, ao passo que abuso de poder econômico caracteriza-se por emprego desproporcional de recursos patrimoniais, públicos ou privados, de forma a comprometer a legitimidade do pleito e a paridade de armas entre candidatos. Precedentes.

[…]

(Recurso Ordinário n. 378375, Acórdão, Relator Min. Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 107, Data 06.6.2016, Página 9-10.)

 

RECURSO ORDINÁRIO. ABUSO DE PODER POLÍTICO. ELEIÇÕES 2006. CANDIDATO NÃO DETENTOR DE MANDATO OU FUNÇÃO PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO IMPROVIDO.

1. Para a incidência da inelegibilidade, por abuso de poder político - art. 22, caput, da Lei Complementar n. 64/90 -, é necessário que o candidato tenha praticado o ato na condição de detentor de cargo na administração pública.

Precedente.

2. Recurso ordinário a que se nega provimento.

(RECURSO ORDINÁRIO n. 1413, Acórdão, Relator Min. Enrique Ricardo Lewandowski, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 166, Data 01.9.2009, Página 40-41.)

Assim, tendo em conta que, no caso concreto, a recorrida Maria de Lourdes Bauermann não exercia cargo na administração pública quando do cometimento dos fatos apurados nas presentes ações de investigação judicial eleitoral, não há se falar em abuso de poder de autoridade.

Não se desconhece que a prova dos autos demonstra a intensa atividade política desempenhada pela recorrida ao longo dos anos: antes de ser candidata e galgar o cargo de prefeita (eleições 2004 e 2008), Maria de Lourdes Bauermann foi assessora dos deputados Renato Molling (federal) e João Fischer (estadual) , ambos do PP, partido pelo qual concorreu ao pleito de Ivoti em 2016.

Também foi muito bem demonstrado que a candidata tinha estreitos contatos com os servidores que possuíam senha para alterar os dados nos sistemas de agendamentos de saúde no SUS – os verdadeiros elos da prática ilícita verificada –, e também com os motoristas que lhe realizavam o transporte de eleitores para a capital.

Do exame do caderno probatório, até pode sobressair notórias a influência e a capacidade de sugestionamento que a candidata detinha em relação aos servidores municipais e aos demais agentes envolvidos nos fatos.

No entanto, esse poder de influência sobre as pessoas que trabalharam como fio condutor da prática ilícita não caracteriza prática de abuso de poder político ou de autoridade, pois a candidata não detinha função de autoridade nem desviou a finalidade de eventual cargo público ocupado.

Dessa forma, relativamente à alegação de prática de abuso de poder político ou de autoridade, não prospera o pedido de reforma da sentença recorrida, dado que a candidata estava desvinculada da administração pública, não podendo praticar atos através do abuso no exercício de cargo na administração pública, conforme expressamente prevê o § 9º do art. 14 da Carta de Direitos, pois, em última instância, não detinha qualquer parcela de poder político.

Contudo, além de o feito poder ser analisado sob a ótica do abuso de poder econômico, há possibilidade de ser procedido o reenquadramento legal dos fatos alegados nas petições iniciais, pois, durante a instrução processual, restou sobejamente demonstrada a prática de captação ilícita de sufrágio por parte da candidata recorrida, com gravidade suficiente a embasar uma condenação com arrimo no art. 41-A da Lei das Eleições.

Tenho tranquilidade em consignar que o reconhecimento da captação ilícita de sufrágio, nos fatos descritos pelos autores, não caracteriza inovação do debate em sede recursal, surpresa ou vulneração à ampla defesa, pois, conforme já muito referido, a própria sentença recorrida examinou os autos à luz da entrega de vantagens em troca do voto do eleitor, merecendo reiteração o seguinte excerto da decisão: “ […] inexiste qualquer prova nos autos de que os investigados, através destas ações, tenham condicionado qualquer favorecimento à obtenção do voto”.

A maior prova de que inexiste qualquer modificação dos fatos ou ampliação da discussão consiste nas contrarrazões apresentadas pelos recorridos, nas quais sustentam que “a tese acusatória sempre foi no sentido de que o agir da candidata foi direcionado à obtenção do voto do eleitor”.

Bem se vê que, embora não indicado na inicial, o disposto no art. 41-A da Lei das Eleições sempre esteve presente tanto para as partes do feito quanto para a julgadora a quo.

Mas a circunstância de o autor fornecer uma ou outra capitulação jurídica dos fatos, ou até narrá-los, direcionando-os a um determinado enquadramento, não obsta a que o Estado-Juiz faça a adequação legal. Essa é a inteligência da Súmula n. 62 do TSE: “Os limites do pedido são demarcados pelos fatos imputados na inicial, dos quais a parte se defende, e não pela capitulação legal atribuída pelo autor”.

Referido enunciado demonstra que o Direito Eleitoral brasileiro acolhe o princípio de que o réu defende-se de fatos, e não da definição jurídica, bem como a teoria da substanciação e o princípio da instrumentalidade das formas, segundo o qual as normas processuais não são óbices para a aplicação do direito material.

Aplica-se ao caso dos autos os consagrados brocardos da mihi factum, dabo tibi jus ("dá-me o fato, que te darei o direito") e iura novit curia ("o juiz conhece o direito").

Segundo tais institutos, os limites da causa são demarcados pela ratio petendi substancial, ou seja, segundo os fatos imputados à parte passiva, e não pela errônea capitulação legal que deles se faça, na medida em que “cabe ao julgador estabelecer a norma jurídica que deverá ser aplicada aos fatos narrados, e essa atividade se dá com exclusividade, independentemente da vontade das partes litigantes” (TSE, AgR-AI n. 8058/MG, Rel. Min. Marcelo Ribeiro, DJE de 23.9.2008, e AI n. 3.066/MS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 17.5.2002).

Aliás, de acordo a Corte Superior Eleitoral, “o reenquadramento jurídico dos fatos, por tratar-se de quaestio iuris, é cognoscível na estreita via do recurso especial eleitoral” (RESPE 45867, Rel. Min Luiz Fux, DJE 30.8.2016).

Confira-se também, pela clareza de raciocínio, o seguinte precedente:

RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. RECONHECIMENTO, NA ORIGEM, DA PRÁTICA DA CONDUTA VEDADA NO INCISO III DO ART. 73 DA LEI N. 9.504197. PRAZO DECADENCIAL. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESTA PARTE, NÃO PROVIDO.

[...]

2. Nada impede, em nosso ordenamento jurídico, a aplicação, no processo judicial eleitoral, da teoria da substanciação, por via da qual o juiz não está vinculado à justificação legal escolhida pela parte em sua petição inicial. Em razão dessa teoria, é permitido ao juiz impor a penalidade do art. 73, § 5o , da Lei no 9.504/97, em razão de os fatos apurados encerrarem violação ao inc. III do art. 73 da referida lei, quando a parte demandada defendeu-se, amplamente, de todos as circunstâncias da situação concreta posta nos autos. 3. Inexistência de cerceamento de defesa quando a parte que a alega se utiliza, plenamente, no curso da instrução, de todos os meios processuais colocados ao seu alcance para contrariar a acusação contra si instaurada.

[...]

6. Recurso parcialmente conhecido e, nesta parte, não provido. Manutenção do acórdão recorrido.

(TSE, REspe 25.890/GO, DJ de 31.8.2006, reI. Min. José Augusto Delgado.) (Grifei.)

Na hipótese em tela, a ausência de classificação dos fatos como captação ilícita de sufrágio configura mera indicação errônea dos dispositivos legais tidos por violados, o que pode ser contornado de ofício pelo magistrado, com a devida adequação legal, pois não se pode levar a forma ao status de fim, dado que as regras processuais nada mais são do que o meio de realização da justiça, esta sim, o fim maior colimado pelo ordenamento jurídico.

De lembrar aqui a lição do STJ, no sentido de que “o acolhimento de pedido extraído da interpretação lógico-sistemática de toda a argumentação desenvolvida da petição inicial, e não apenas do pleito formulado no fecho da petição, não implica julgamento extra petita” (STJ, 5ª Turma, AgRg no Ag 1351484 , Rel. Min. Gilson Dipp, j. em 26.3.2012).

Cabível, inclusive, a condenação à pena de multa, pois a sanção é decorrência legal do art. 41-A da Lei das Eleições e se opera ope legis, situação também já verificada no âmbito do TSE, merecendo ser trazido à colação o seguinte excerto do acórdão no AgR-RO n. 282772, rel. Min. Arnaldo Versiani, DJE 14.6.2012: “[…] o fato de o Ministério Público Eleitoral não ter formulado pedido de aplicação de multa não impede que o Tribunal a imponha, não se tratando, portanto, de decisão extra petita”.

E, da estrita análise das premissas fáticas narradas nas petições iniciais e das provas dos autos, extrai-se a convicção da prática do ilícito previsto no art. 41-A da Lei n. 9.504/97, inferindo-se, a partir do contexto probatório, o especial fim de agir no pertinente à captação do voto dos eleitores.

A captação ilícita de sufrágio configura-se quando o candidato concede bem ou vantagem para formar uma base de apoio político e, em consequência, atingir o eleitorado.

Já o abuso de poder econômico, na esfera eleitoral, ocorre quando o uso de parcela do poder financeiro é utilizada indevidamente, com o intuito de obter vantagem, ainda que indireta ou reflexa, na disputa do pleito.

Pela ótica doutrinária, o abuso de poder econômico consiste no “[...] emprego de recursos produtivos (bens e serviços de empresas particulares, ou recursos próprios do candidato que seja mais abastado), fora da moldura para tanto traçada pelas regras de financiamento de campanha constante da Lei n. 9.504/97” (DECOMAIN, Pedro Roberto. Elegibilidade e inelegibilidades. São Paulo: Dialética, 2004, p. 197).

Tais infrações encontram-se plenamente caracterizadas no caso dos autos, pois há farta prova de que, antes e durante a campanha para o pleito eleitoral de 2016, a candidata Maria de Lourdes, sempre por ordem direta e pessoal, forneceu transporte e vantagens aos eleitores de Ivoti, fraudando o sistema público de saúde para angariar a simpatia do eleitorado.

O cenário exposto nos autos faz cair por terra a tese defensiva de que a candidata estaria movida apenas por desígnios exclusivamente humanitários, por altruísmo genuíno, desinteressado, na prática assistencialista que desempenhava.

Além do mais, é impossível não ver como manifesta a motivação eleitoreira de candidato que, em pleno período de campanha, põe-se a favorecer seu eleitorado, vinculando seu nome, sua pessoa, à concessão de vantagens indevidas na área da saúde.

O interesse eleitoral e sua interferência na legitimidade do pleito sobressaem óbvios e ululantes.

É altruísta a preocupação em ajudar a quem sofre; mas, em seu agir, a recorrida interferia no andamento normal da lista de espera para atendimento do SUS, preterindo aqueles que se submetiam às mazelas da longa fila de espera, talvez com prazo indefinido, em proveito das pessoas por ela indicadas.

As provas são harmônicas e confirmam o envolvimento pessoal da candidata com a agilização de toda a sorte de agendamentos médicos do SUS, merecendo relevo a constatação de que todos os pacientes beneficiados pertencem ao seu eleitorado, situado na Cidade de Ivoti, não havendo notícia de que tenha favorecido, com a fraude orquestrada e o transporte efetuado, pessoa que não votasse no município em que concorria ao cargo de prefeita.

 

d) Interferência dos fatos na legitimidade das eleições e gravidade das circunstâncias que os caracterizam

Do cenário dos autos, extrai-se a convicção de ilegítimo auferimento de proveito eleitoral com a vantagem fornecida aos eleitores, utilizada como verdadeira máquina eleitoral, razão pela qual a tese defensiva de ausência de nexo causal, de exercício de altruísmo sem finalidade eleitoreira, não convence.

Impressiona a sofisticação do sistema criado: as pessoas eram atendidas, cuidadas e visitadas. Os favorecidos eram transportados pela candidata , até mesmo em seu veículo particular. Outros veículos e motoristas são integrados ao esquema. Tudo com o seu envolvimento pessoal e direto.

De todo o contexto, ressai inevitável que a benfeitoria tenha sido entendida, pelo eleitorado, como plataforma de campanha, pois tornou-se flagrante o fato de que a candidata se utilizava do sistema público de saúde – SUS – para praticar fraude e fornecer caronas destinadas a alavancar sua candidatura. Como todas as testemunhas declararam em juízo, a candidata é muito reconhecida por seus atos de benevolência para com a comunidade.

Os depoimentos foram harmônicos ao revelar que toda a cidade sabia que apenas Maria de Lourdes conseguia a marcação de consultas em prazo recorde, circunstância impossível aos servidores da Prefeitura de Ivoti, os quais operavam o sistema dentro da legalidade.

As mensagens recebidas e enviadas pela candidata (registradas em aplicativos como o WhatsApp, e redes sociais, como o Messenger, do Facebook), e as demais provas dos autos, documental e testemunhal, revelam um quadro notável: o esforço persuasivo de fornecer transporte e de interferir nos agendamentos de saúde do SUS, sempre no intuito de utilizar servidores públicos com acesso ao sistema de agendamentos – verdadeiros fios condutores da prática abusiva – para beneficiar eleitores de Ivoti com a rápida marcação de consultas, retornos, exames e toda a sorte de procedimentos médicos, receita infalível para ser usada de base de uma campanha à eleição ao cargo de prefeito.

A agilização de atendimentos médicos e o transporte até os hospitais, cedo da madrugada, não deixavam dúvida, na consciência de qualquer eleitor beneficiado, seja com marcação de consultas, seja com caronas, do tempo e do modo de demonstrar a sua gratidão, dada a premência da eleição.

É natural o sentimento de dívida criado, no eleitor enfermo e em seus familiares, com tamanho ato de filantropia realizado por aspirante ao pleito majoritário, sendo lógico e – como enfatizaria Nietzsche – "humano, demasiado humano", imaginar a conquista do voto com a benesse concedida, mormente porque a graça era dada pessoalmente pela candidata.

A mais antiga filosofia já estabelecia que, em relação ao benfeitor de quem recebemos privadamente algum benefício, ficamos particularmente obrigados. Essa realidade humana é composta de três níveis: reconhecimento, agradecimento e retribuição, “segundo as circunstâncias mais oportunas de tempo e lugar” (S. Tomás de Aquino. Suma Teológica. Disponível em https://sumateologica.files.wordpress.com/2017/04/suma-teolc3b3gica.pdf Acesso 04.8.2017).

Aliás, com relação aos benemerentes, ou alegadamente “solidários”, valho-me da lição de Joel José Cândido (Direito Eleitoral Brasileiro. São Paulo: Edipro, 2005, p. 458), em sua aguda reflexão, no sentido de que “são raros os casos de ingratidão explícita contra benemerentes”.

Daí concluo que a entrega de vantagens, na forma de caronas e de consultas, jamais poderia ter ocorrido, pois é elementar a relação de dádiva e dívida criada, vez que a generosidade, a gratidão e a retribuição formam uma tríade que caminha sempre junta, inexoravelmente.

Provado também está o abuso de poder econômico mediante deliberado fornecimento de transporte de forma gratuita à população, prática que tem um preço, sendo possível imaginar os elevados custos despendidos pela candidata com combustível e, quiçá, com os motoristas que serviram a sua campanha eleitoral.

É incontestável: a recorrida tornou impossível que outro candidato vencesse a eleição. A disputa não foi legítima.

O assistencialismo realizado durante o período de campanha eleitoral refoge aos fins democráticos do Estado de Direito, sendo mais grave ainda o uso do serviço público de saúde para fins privados.

Das provas coligidas, evidencia-se o desiderato eleitoral concomitante ao apoio aos enfermos de Ivoti, sendo coerente enxergar a conotação política da atividade desenvolvida pela candidata, ainda que sua conduta não tenha sido, a priori, dirigida ao seu retorno à chefia do Poder Executivo de Ivoti.

Ademais, no caso dos autos, não resta dúvida de que os eleitores favorecidos são pessoas carentes e doentes, usuários do SUS que sequer tinham condições de, por meios próprios, ir até hospitais. Fica clara a capacidade das vantagens para aliciar o eleitor e imprimir abuso de poder econômico na campanha.

As provas estão a revelar clara relação de clientelismo. “No clientelismo, o político concentra seus projetos e funções no objetivo de prover os interesses de indivíduos ou grupos com os quais mantém uma relação de proximidade pessoal, e em meio a esta relação de troca, recebe os votos que busca para se eleger no cargo desejado”, conforme nos ensinou o célebre Ministro Vitor Nunes Leal, em sua memorável obra (Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1948).

Diz-se que o clientelismo tem como finalidade principal “amarrar politicamente o beneficiado”, e que seu grande objetivo é o voto, desacortinando o que identificamos como corrupção.

Em específico texto sobre o tema, a Procuradora Regional da República, Silvana Batini, explica que o fenômeno do assistencialismo político é observado e estudado por diversos ângulos das ciências sociais, como prática arraigada na cultura política do Brasil:

Traço comum a todas as iniciativas, respeitadas as diferenças no modus operandi, são a exploração da miséria, a construção da liderança política em torno da suposta generosidade e benevolência, o cultivo da dependência e da subserviência, e os efeitos deletérios do atraso e da manutenção dos estados de carência (Centros assistencialistas, abuso de poder econômico e Democracia: o necessário enfoque. Revista de Jurisprudência, TRE-RJ, Rio de Janeiro, n. 2, p. 7-12, set. 2011. Disponível em: http://www.tre-rs.gov.br/arquivos/BATINI_Silvana_Centros_assistencialistas.pdf. Acesso em: 04.8.2017).

Por todas essas razões e, porque, como ensina Norberto Bobbio, “o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não é mais de fundamentá-los, e sim o de protegê-los” (A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 25), merece ser tratada como gravíssima, e justificadora da pena de cassação, a utilização de transporte e do serviço público de saúde para o angariamento de voto dos eleitores.

A propósito do grau de reprovabilidade desse tipo de conduta, bem como da proporcionalidade e da razoabilidade das sanções de cassação de diploma e de multa acima do mínimo legal, a jurisprudência do TSE sobre o tema:

ELEIÇÕES 2010. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ORDINÁRIO. REPRESENTAÇÃO. CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO E CONDUTA VEDADA. SUBSISTÊNCIA DAS CONDENAÇÕES TÃO SOMENTE EM RELAÇÃO À CONDUTA VEDADA. ART. 73, INCISO IV, DA LEI Nº 9.504/97. UTILIZAÇÃO. CIRURGIAS DE LAQUEADURA SUBVENCIONADAS PELO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS). PROMOÇÃO ELEITORAL. CANDIDATURA. DEPUTADO ESTADUAL. COMPROVAÇÃO DA ANUÊNCIA DO BENEFICIÁRIO. REPETIÇÃO. FUNDAMENTOS RECURSAIS. INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO SUMULAR 182 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DESPROVIMENTO.

[...]

2. Hipótese em que, a teor do conjunto probatório angariado aos autos, restou incontroverso que, durante o período eleitoral de 2010, foram oferecidas cirurgias de laqueadura de trompas no âmbito de hospital particular subvencionado pelo SUS, as quais eram utilizadas como instrumento de promoção da candidatura do agravante ao cargo de deputado estadual. Tal fato denota o grau de reprovabilidade da conduta, bem assim, a proporcionalidade e razoabilidade da manutenção das sanções de cassação de diploma e de multa acima do mínimo legal (art. 73, inc. IV, §§ 4º e 5º, da Lei n. 9.504/97).

3. Agravo regimental a que se nega provimento

(Recurso Ordinário n. 6453, Acórdão, Relator(a) Min. Maria Thereza Rocha De Assis Moura, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Data 01.3.2016.)

 

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. RECURSO ORDINÁRIO. ELEIÇÕES 2014. DEPUTADO ESTADUAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ABUSO DE PODER POLÍTICO E ECONÔMICO. ASSISTENCIALISMO. RECURSOS DO SUS. DISTRIBUIÇÃO DE RECEITUÁRIOS, EXAMES, CIRURGIAS, REMÉDIOS E CONSULTAS EM COMITÊ DE CAMPANHA. IRREGULARIDADE GRAVÍSSIMA. OMISSÃO. CONTRADIÇÃO. OBSCURIDADE. INEXISTÊNCIA. REJEIÇÃO.

[...]

ACÓRDÃO EMBARGADO

2. Esta Corte, por unanimidade, proveu recurso ordinário para julgar procedente pedido em Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) ajuizada em desfavor da embargante - Suplente de deputado estadual nas Eleições 2014 e, antes, Vereadora de Duque de Caxias/RJ eleita em 2012 - por abuso de poder político e econômico (art. 22, caput, da LC 64/90).

3. Assentou-se que ela, valendo-se do cargo de vereadora e objetivando alavancar sua candidatura, distribuiu em seu comitê de campanha remédios e receituários, além de intermediar consultas, exames e cirurgias pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Concluiu-se que o desvirtuamento do cargo público, com desequilíbrio da disputa eleitoral e influência na legitimidade do pleito, constitui conduta gravíssima que deve ser rigorosamente punida por esta Justiça.

[...]

APRECIAÇÃO DOS EMBARGOS

JULGAMENTO EXTRA PETITA

5. "Os limites do pedido são demarcados pelos fatos imputados na inicial, dos quais a parte se defende, e não pela capitulação legal atribuída pelo autor" (Súmula 62/TSE).

[...]

NEXO CAUSAL ENTRE A DOCUMENTAÇÃO APREENDIDA E CANDIDATA

9. A embargante aduz que a busca pessoal em terceiros não produziu nenhuma prova de sua participação.

10. Todavia, o conjunto probatório demonstra vínculo insofismável entre ela e a distribuição assistencialista de benefícios ligados ao SUS, como receituários, exames, medicamentos e afins, realizada em seu comitê de campanha. Nesse contexto, verifica-se uso de influência política do cargo de vereador de Duque de Caxias/RJ para intermediar serviço de saúde pública, auferindo-se dividendos eleitorais sensíveis em prejuízo da isonomia entre candidatos e da legitimidade do pleito.

GRAVIDADE DOS FATOS: ART. 22, inc. XVI, DA LC 64/90

11. Segundo a embargante, a conduta em exame não foi grave o suficiente para comprometer o resultado do pleito, haja vista a quantidade de 11.908 votos por ela recebidos.

12. No entanto, desvio de finalidade do cargo de vereador, aproveitando-se da má condição do sistema de saúde pública, para alavancar-se candidatura, em desrespeito ao art. 196 da CF/88, constitui fato gravíssimo. Referida conduta também configura, em tese, crime de advocacia administrativa (art. 321 do Código Penal).

13. Ademais, os documentos apreendidos demonstram que centenas de pessoas foram contempladas com a nefasta conduta da embargante, o que revela grande alcance do ilícito.

CONCLUSÃO

[...]

15. Embargos declaratórios rejeitados, mantendo-se perda de diploma de suplente de vereador e inelegibilidade impostas à embargante, por abuso de poder político e econômico, devido à oferta indiscriminada de serviços de saúde pública em comitê de campanha.

(TSE, RO 803269, Rel. Min. Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin, DJE 13.12.2016.)

Concluo, portanto, que a candidata abusou do poder econômico e praticou captação ilícita de sufrágio no pleito de 2016, ferindo a legitimidade da eleição majoritária de Ivoti.

Não pode ser tomada como legítima a vitória, na eleição, de candidato que se vale de procedimentos médicos à revelia da sistemática pública de atendimento instituída, burlando o acesso à saúde e oferecendo transporte para conquistar o voto de quem se encontra na situação mais fragilizada em que um ser humano pode estar, com risco de vida próprio ou de familiar.

Tenho defendido, em todos os votos proferidos nesta Corte, desde minha assunção ao cargo de Desembargador Eleitoral, que as decisões devem pautar-se, preponderantemente, pelo prestígio ao resultado obtido nas urnas, evitando-se a alternância de poder com base em prova controvertida ou insuficiente.

Contudo, há prova incontestável, estreme de dúvidas e por demais visceral, de que a fraude realizada no Sistema Único de Saúde, associada ao fornecimento de transporte aos eleitores, militou em benefício da candidata, alavancando sua campanha.

A Justiça Eleitoral não pode permitir a manutenção de mandato obtido dessa forma, e este relator não pode se furtar do seu dever de aplicar a melhor Justiça.

 

e) Penalidades

Por tudo o que consta dos autos, reconheço a incidência das penalidades previstas no inc. XIV do art. 22 da LC n. 64/90, e no caput do art. 41-A da Lei n. 9.504/97, razão pela qual condeno os recorridos – Maria de Lourdes Bauermann e Milton Mayer – à pena de cassação do diploma de candidatos eleitos.

Além da cassação do diploma, condeno a candidata Maria de Lourdes Bauermann ao pagamento da multa prevista no art. 41-A da Lei n. 9.504/97, cujos valores foram atualizados pelo art. 89 da Resolução TSE n. 23.457/15 entre os patamares de R$ 1.064,10 e R$ 53.205,00. 

Fixo a condenação acima do mínimo legal, no montante de R$ 20.000,00, quantia que entendo razoável e adequada para reprimir os gravíssimos ilícitos perpetrados pela recorrida.

Reconheço também, para Maria de Lourdes Bauermann, a incidência da inelegibilidade, sanção prevista no inc. XIV do art. 22 da LC n. 64/90, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes ao pleito de 2016.

O candidato a vice-prefeito Milton Mayer segue alcançado pela pena de cassação do diploma por força do princípio da indivisibilidade da chapa majoritária, previsto no art. 91 do Código Eleitoral: “O registro de candidatos a Presidente e Vice-Presidente, Governador e Vice-Governador, ou Prefeito e Vice-Prefeito, far-se-á sempre em chapa única e indivisível, ainda que resulte a indicação de aliança de partidos”.

Todavia, não há, nos autos, elemento algum a demonstrar tenha o candidato a vice-prefeito participado ativamente dos episódios narrados, razão pela qual não deve sofrer as demais penalidades aplicáveis à cabeça da chapa.

Como consequência das condenações impostas, determino sejam realizadas novas eleições suplementares no Município de Ivoti, na forma do art. 224 do Código Eleitoral, consignando que, de acordo com o entendimento firmado pelo Tribunal Superior Eleitoral, esse comando não fica condicionado ao trânsito em julgado do acórdão, cabendo a esta Corte adotar as providências necessárias para o novo pleito (TSE, ED em RESPE n. 22232, Rel. Min. Henrique Neves da Silva, Publicado em Sessão, 06.12.2016).

 

ANTE O EXPOSTO, afasto a matéria preliminar e VOTO pelo parcial provimento dos recursos interpostos, para o fim de cassar os diplomas expedidos a MARIA DE LOURDES BAUERMANN e MILTON MAYER, condenar MARIA DE LOURDES BAUERMANN ao pagamento de multa de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) e declarar sua inelegibilidade para os oito anos seguintes à eleição municipal de 2016, por prática de abuso de poder econômico (art. 22, LC n. 64/90) e captação ilícita de sufrágio (art. 41-A, Lei n. 9.504/97).

Considero prequestionada toda a matéria de defesa invocada nos autos, a fim de facilitar o acesso à instância recursal, e determino a adoção das seguintes providências:

a) o afastamento imediato de MARIA DE LOURDES BAUERMANN e de MILTON MAYER dos cargos de prefeita e vice-prefeito de Ivoti, assumindo o comando do Executivo Municipal o presidente da Câmara de Vereadores;

b) a realização de novas eleições no Município de Ivoti, nos termos do art. 224 do Código Eleitoral e de resolução a ser aprovada por este Tribunal;

c) após transcorrido o prazo ou julgados eventuais embargos de declaração, comunique-se à zona eleitoral para imediato cumprimento do acórdão;

d) transitada em julgado a decisão, efetue-se o registro das condenações nos sistemas pertinentes.