RC - 29792 - Sessão: 23/08/2017 às 17:00

RELATÓRIO

Trata-se de recurso criminal interposto por RONIE VON DOS SANTOS PEREIRA contra a sentença (fls. 93-104) prolatada pelo Juízo da 150ª Zona Eleitoral – Capão da Canoa/RS – que julgou procedente a denúncia oferecida pelo MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL, condenando-o à pena de dois anos e dois meses de detenção e 20 dias-multa, entendendo comprovada a prática dos crimes de difamação na propaganda eleitoral e de desobediência eleitoral, previstos nos arts. 325 e 347, ambos do Código Eleitoral, e do crime de desacato, previsto no art. 331, na forma do art. 69, ambos do Código Penal, com base nos seguintes fatos descritos na denúncia (fls. 93-94):

1º FATO:

Em 1º de setembro de 2016, em Capão da Canoa/RS, em página da rede social 'Facebook', o denunciado RONNIE VON DOS SANTOS PEREIRA difamou Ledorino Brogni, candidato ao cargo de Prefeito nesta cidade, imputando-lhe fatos ofensivos as suas reputações.

Na oportunidade, o denunciado difamou Ledorino Brogni, utilizando-se de sua página pessoal no 'Facebook' (www.facebook.com.br/ro-nnie.vondorff), ao postar imagem de campanha eleitoral de Ledorino sob o efeito de montagens, com a seguinte descrição: 'Coroné Pedorino, Beto Pucha'. Além disso, o denunciado adicionou à imagem o 'emotion' pejorativo com figura alusiva a 'fezes', difamando e denegrindo, assim, a conduta e imagem de Ledorino, candidato ao cargo de Prefeito de Capão da Canoa/RS.

2º FATO:

No dia 02 de setembro de 2016, por volta das 20h55min, nesta cidade, o denunciado RONNIE VON DOS SANTOS PEREIRA recusou ordens da Justiça Eleitoral, qual seja, de retirar, no prazo de duas horas, as postagens junto ao Facebook, sendo vendada a divulgação e compartilhamento de mensagens pejorativas, montagens e trucagens que venham a contrariar a legislação e denegrir a imagem de Ledorino e Beto Rocha, candidatos a Prefeito e Vice-Prefeito, respectivamente.

Na oportunidade, o denunciado, mesmo intimado por telefone (fls. 10 e 13), para que retirasse as postagens ofensivas contra Ledorino Brogni da sua página no 'Facebook', não o fez, tendo, ainda, continuado a denegrir a imagem e conduta de Ledorino Brogni, além de fazer referências ofensivas à celeridade da Justiça Eleitoral, mediante postagens da referida página da rede social (fls. 16/17).

3º FATO:

Nas mesmas circunstâncias de tempo e local descritas no segundo fato, o denunciado RONNIE VON DOS SANTOS PEREIRA desacatou Guilherme Baroni Becker, Chefe do Cartório Eleitoral, funcionário público no exercício da função.

Na ocasião, em decorrência do segundo fato, o denunciado efetuou ligação telefônica para o Cartório Eleitoral e desacatou Guilherme Baroni Becker, proferindo-lhe palavras de baixo calão, como 'arigó, filho da puta, vagabundo, chinelão', entre outras palavras.

4º FATO:

Nas mesmas circunstâncias de tempo e local no segundo fato, o denunciado RONNIE VON DOS SANTOS PEREIRA descatou Amita Antônia Leão Bacellos Mileto, Juíza Eleitoral da 150ª Zona Eleitora, funcionária pública no exercício da função.

Na ocasião, após o desacato praticado pelo denunciado, o funcionário público Guilherme contatou a Juíza Eleitoral, a fim de relatar o ocorrido, oportunidade em que o denunciado, novamente, efetuou ligação telefônica para o Cartório Eleitoral e passou a desacatar a Juíza Eleitoral mencionada, proferindo-lhe palavras de baixo calão, como 'arigó, vagabunda, filha da puta', entre outras palavras.

Em suas razões recursais (fls. 11-118), o denunciado sustenta que não foram reconhecidas as atenuantes de confissão espontânea e de embriaguez. Assevera a ausência do elemento subjetivo relativo ao dolo de ofender as vítimas. Aduz não ter criado a imagem difamatória publicada no Facebook, e que várias pessoas postaram a mesma imagem nas redes sociais. Defende que a postagem decorre do livre direito de expressão. Argumenta que a dosagem da pena não se mostra razoável, não havendo razões para apenamento acima do mínimo legal. Requer a absolvição e, caso não seja esse o entendimento, o reconhecimento das atenuantes relativas ao erro sobre a ilicitude e ao desconhecimento da lei, com a consequente suspensão da pena ou suspensão condicional do processo e da pena.

Com contrarrazões (fls. 122-123v.), os autos foram remetidos à Procuradoria Regional Eleitoral, que se manifestou pelo desprovimento do recurso (fls. 126-130v.).

É o relatório.

 

VOTO

Antes de analisar o mérito recursal, cumpre arguir, de ofício, questão preliminar relativa à incompetência absoluta da Justiça Eleitoral para julgamento do crime de desacato, previsto no art. 331 do Código Penal:

Desacato

Art. 331 - Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela:

Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.

O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça têm jurisprudência assentada no sentido de que o desacato cometido contra juiz estadual, investido da jurisdição eleitoral, é crime comum, de competência da Justiça Federal, por atentar contra interesse da União, representada que está, em casos tais, por um de seus órgãos.

Com esse entendimento, os seguintes precedentes:

SÃO DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL, E NÃO DA JUSTIÇA ESTADUAL, O PROCESSO E O JULGAMENTO DOS CRIMES DE DESACATO (ART. 331 DO COD. PENAL) COMETIDO CONTRA JUIZ DE INVESTIDURA ESTADUAL, NO EXERCÍCIO DAS FUNÇÕES DE JUIZ ELEITORAL. 'HABEAS CORPUS' CONCEDIDO, DE OFICIO, COM REMESSA DOS AUTOS DA AÇÃO PENAL A SEÇÃO JUDICIÁRIA NO ESTADO DA BAHIA. RECURSO PREJUDICADO.

(STF, RHC 64963, Rel. Ministro OCTAVIO GALLOTTI, DJ 04.09.1987.) – grifei.

 

PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CRIME COMUM PRATICADO CONTRA JUIZ ELEITORAL. INTERESSE DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.

1. A competência criminal da Justiça Eleitoral se restringe ao processo e julgamento dos crimes tipicamente eleitorais.

2. O crime praticado contra Juiz Eleitoral, ou seja, contra órgão jurisdicional de cunho federal, evidencia o interesse da União em preservar a própria administração.

3. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo Federal do Juizado Especial Cível e Criminal da Seção Judiciária do Estado de Rondônia, ora suscitado.

(STJ, CC 45.552, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, julgado em 08.11.2006.) – grifei.

 

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. DESACATO A JUIZ ESTADUAL INVESTIDO DAS FUNÇÕES ELEITORAIS. CRIME COMUM, DE COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL. COISA JULGADA MATERIAL.

1. É da jurisprudência do Excelso Supremo Tribunal Federal que o desacato, cometido contra Juiz Estadual investido da jurisdição eleitoral, é crime comum, de competência da Justiça Federal, por atentar contra interesse da União, representada que está, em caso tais, por de um de seus órgãos.

2. Em sede penal, é da tradição jurisprudencial, consentânea com a proteção constitucional da liberdade da pessoa humana, atribuir-se plena eficácia à coisa julgada, ainda quando produzida em juízo incompetente, ou mesmo à que falte jurisdição.

3. Ordem concedida, para determinar o trancamento da ação penal.

(STJ, HC 18078 RJ, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, DJ 24.06.2002.) – grifei.

De acordo com os julgados supracitados, a Justiça Eleitoral é incompetente para julgar crime de desacato, ainda que conexo a crime eleitoral, uma vez que a Justiça Federal tem sua competência fixada expressamente na Constituição Federal, não podendo, por esse motivo, prevalecer as regras de conexão e continência, previstas no Código de Processo Penal e no Código Eleitoral, acerca da reunião dos processos no foro especial.

Tal entendimento, por simetria, deve ser adotado para o desacato cometido contra servidor investido no cargo de chefe de cartório eleitoral.

O crime de desacato, objeto de dois fatos narrados no presente feito, foi consumado contra juiz eleitoral e servidor da Justiça Eleitoral, configurando, portanto, crime cometido contra a Administração da Justiça Eleitoral, que não se confunde com o crime eleitoral, o qual, este sim, deve ser julgado por esta Justiça Especializada. Assim, é da Justiça Federal a competência para processar e julgar o delito de desacato no caso concreto. Nesse sentido, também já decidiram outros Regionais:

Inquérito Policial. Deputado Estadual. Prática, em tese, dos crimes capitulados nos arts. 296 do Código Eleitoral e 139, 140 e 331 do Código Penal.

Preliminar de incompetência em relação aos crimes de calúnia, injúria e desacato - acolhimento. As ofensas não foram dirigidas a candidato nem tinham destinação ligada à propaganda eleitoral. Inexistência, na esfera eleitoral, de tipo incriminador equivalente ao desacato. Competência declinada.

Art. 296 do Código Eleitoral - extinção da punibilidade. Reconhecimento. Arts. 109, inciso VI, e 107 do Código Penal.

Decisão unânime.

(TRE-MG, INQUÉRITO n 33232002, ACÓRDÃO n 516 de 18/03/2003, Relator(a) OSCAR DIAS CORRÊA JÚNIOR, Publicação: DJMG - Diário do Judiciário-Minas Gerais, Data 24/04/2003, Página 79 ) - grifei.

 

HABEAS CORPUS. PEDIDO DE LIMINAR. ARTIGO 323 DO CÓDIGO ELEITORAL. ATIPICIDADE DA CONDUTA IMPUTADA AOS PACIENTES. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA PARA TRANCAR O PROCESSO PENAL CORRESPONDENTE À ACUSAÇÃO PELO CRIME DE IMPUTAÇÃO DE FATO SABIDAMENTE INVERÍDICO. IMPUTAÇÃO DE DESACATO A JUIZ ELEITORAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL COMUM RECONHECIDA.

(TRE-SP, HABEAS CORPUS n 184, ACÓRDÃO de 11.11.2010, Relator FLÁVIO LUIZ YARSHELL, Publicação: DJESP - Diário da Justiça Eletrônico do TRE-SP, Data 18.11.2010, Página 11.)

Aplica-se ao caso o disposto no art. 109, inc. IV, da Constituição Federal, que dispõe sobre a competência da Justiça Federal para processar e julgar infração penal praticada em detrimento da União, que tem interesse na administração da Justiça Eleitoral.

A competência criminal da Justiça Eleitoral é prevista taxativamente no Código Eleitoral, e o crime de falso testemunho está estatuído no Código Penal, não tendo equivalente na legislação especial. A competência em relação à matéria é improrrogável e imodificável, decorre do interesse público de processamento do feito no órgão competente. Sua inobservância implica prejuízo presumido e nulidade absoluta, que pode ser arguida mesmo de ofício, a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição.

Considerando que o crime de desacato não encontra previsão no ordenamento jurídico eleitoral, e que a competência para sua apuração é da Justiça Federal, declaro a nulidade da sentença no ponto em que julgou o delito de desacato, tipificado no art. 331 do Código Penal, e determino remessa de cópia integral do feito à Vara Federal da Seção Judiciária do Rio Grande do Sul com atribuição perante a origem, cabendo ao juízo competente determinar o processamento do feito.

Remanesce a análise do recurso interposto quanto à condenação pela prática dos crimes previstos nos arts. 325 e 347 do Código Eleitoral (1º e 2º fatos), verbis:

Art. 325. Difamar alguém, na propaganda eleitoral, ou visando a fins de propaganda, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação:

Pena - detenção de três meses a um ano, e pagamento de 5 a 30 dias-multa.

Parágrafo único. A exceção da verdade somente se admite se ofendido é funcionário público e a ofensa é relativa ao exercício de suas funções.

 

Art. 347. Recusar alguém cumprimento ou obediência a diligências, ordens ou instruções da Justiça Eleitoral ou opor embaraços à sua execução:

Pena - detenção de três meses a um ano e pagamento de 10 a 20 dias-multa.

No entanto, considerando que se trata de concurso de infrações de menor potencial ofensivo, hipótese de concurso material, e que o somatório das penas máximas não totaliza quantum superior a dois anos, há possibilidade de aplicação das medidas despenalizadoras previstas no art. 89 da Lei n. 9.099/95.

Assim, resta prejudicada a análise do mérito do recurso, devendo ser convertido o julgamento em diligência, a fim de que ao Ministério Público Eleitoral, com atribuição perante a origem, seja concedida a oportunidade de se manifestar sobre o oferecimento dos institutos despenalizadores previstos na Lei n. 9.099/95.

Aplica-se ao feito o enunciado da Súmula n. 337 do STJ:

É cabível a suspensão condicional do processo na desclassificação do crime e na procedência parcial da pretensão punitiva.

Cito, ainda, precedentes do STJ que invocam o instituto da suspensão do processo em caso de desclassificação da infração penal, operada no julgamento de recurso pela superior instância:

Suspensão do processo em caso de desclassificação (possibilidade).

1. Ainda que a desclassificação da infração penal se verifique na superior instância, há de haver oportunidade para que se invoque, por exemplo, o instituto da suspensão do processo (Lei n. 9.099/95, art. 89).

2. Precedentes da 5ª e 6ª Turmas do Superior Tribunal.

3. Habeas corpus deferido em parte.

(STJ, HC 36.817/MG, Rel. Ministro NILSON NAVES, SEXTA TURMA, julgado em 24.02.2005, DJ 25.04.2005, p. 367.)

 

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE RESPONSABILIDADE. CONDENAÇÃO À PENA DE INABILITAÇÃO PARA O EXERCÍCIO DE CARGO OU FUNÇÃO PÚBLICOS. IMPROPRIEDADE ABSOLUTA DA VIA ELEITA. INEXISTÊNCIA DE PERIGO OU RESTRIÇÃO À LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO DO PACIENTE. IMPOSSIBILIDADE DE CONHECIMENTO DO HABEAS CORPUS. PROCEDÊNCIA PARCIAL DA PRETENSÃO PUNITIVA. POSSIBILIDADE DE OFERECIMENTO DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. SÚMULA N.º 337 DESTA CORTE.

HABEAS CORPUS PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, CONCEDIDO.

1. Condenado o Paciente somente à pena de inabilitação para o exercício de cargo ou função públicos, sobressai a impropriedade da via eleita, na medida em que não há mais repercussão em sua liberdade de locomoção. Precedentes desta Corte e do Supremo Tribunal Federal.

2. Segundo a orientação firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, havendo desclassificação do delito ou procedência parcial da pretensão punitiva - como verificado na espécie, já que o Acusado foi absolvido quanto à infração prevista no art. 1º, inciso II, do Decreto-Lei n.º 201/67 -, deve ser conferida ao Ministério Público a oportunidade de se manifestar acerca do oferecimento do benefício da suspensão condicional do processo. Enunciado n. 337 da Súmula desta Corte.

3. Habeas corpus parcialmente conhecido e, nessa extensão, concedido para determinar o retorno dos autos à instância a quo, a fim de se oportunizar ao Ministério Público a possibilidade de oferecimento da proposta de suspensão condicional do processo ao Paciente."

(HC 213.058/RN, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 07.03.2013, DJe 13.03.2013.)

 

Portanto, concluo pela anulação da sentença, no ponto em que julgou o crime comum, e pela remessa dos autos à origem para manifestação do Ministério Público Eleitoral quanto ao oferecimento dos institutos despenalizadores previstos na Lei n. 9.099/95.

Considero, por isso, prejudicado o exame do mérito recursal, cujo julgamento aguardará o resultado da diligência junto à origem.

ANTE O EXPOSTO, de ofício, reconheço a incompetência absoluta da Justiça Eleitoral para julgamento do crime de desacato, tipificado no art. 331 do Código Penal, devendo ser remetida cópia integral do processo à respectiva Vara Federal da Seção Judiciária do Rio Grande do Sul, para que decida sobre o encaminhamento ao órgão ministerial com atribuição para a denúncia, e converto o julgamento em diligência, a fim de que os autos sejam baixados à origem para manifestação do Ministério Público Eleitoral quanto ao oferecimento dos institutos despenalizadores previstos na Lei n. 9.099/95, considerando, por isso, prejudicado o exame do mérito recursal.

Na hipótese de aceitação de benefício despenalizador, fica desconstituída a sentença condenatória. Do contrário, deverão voltar os autos para exame do mérito do recurso.