RE - 33986 - Sessão: 05/09/2017 às 17:00

RELATÓRIO

Trata-se de recurso interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL em face da sentença de fls. 156-159, proferida pelo Juiz da 39ª Zona Eleitoral, Dr. Felipe Sandri, que julgou improcedente a representação por captação e gastos ilícitos de recursos ajuizada contra JALUSA FERNANDES DE SOUZA e AFRÂNIO VAGNER VASCONCELLOS DA VARA, candidatos eleitos ao cargo de vereador, no Município de Rosário do Sul, nas Eleições 2016.

Em suas razões, o recorrente sustenta a demonstração de gasto ilícito por parte da candidata JALUSA e de captação ilícita por parte do representado AFRÂNIO, em razão das operações realizadas pelos recorridos com verbas do Fundo Partidário. Aduz que os recursos reservados à candidata tinham destinação vinculada, sendo ilícita sua livre disposição, e que o financiamento da campanha de AFRÂNIO deu-se com verba que não poderia ter sido utilizada para tal fim. Requer o provimento do recurso para reformar a sentença e julgar totalmente procedentes os pedidos da representação eleitoral (fls. 164-167).

Os recorridos apresentaram contrarrazões (fls. 173-190), alegando a inaplicabilidade do art. 30-A da Lei n. 9.504/97 ao caso concreto, por não haver nenhuma violação às normas de arrecadação e gastos de recursos previstos na Lei das Eleições. Argumentaram que as disposições tidas por violadas são dirigidas aos partidos políticos, e não aos candidatos, e que o Fundo Partidário é fonte lícita de recursos. Aduzem a ausência de qualquer potencial lesivo no eventual repasse dos gastos e de má-fé dos candidatos e requerem o desprovimento do recurso .

Nesta instância, com vista dos autos, a Procuradoria Regional Eleitoral opinou pelo conhecimento e provimento do recurso (fls. 194-199).

É o relatório.

 

VOTO

Senhor Presidente, eminentes colegas:

O recurso é tempestivo e preenche os demais requisitos de admissibilidade, razão pela qual dele conheço.

Examino a espécie, adiantando que a questão de fundo se relaciona ao sistema de implementação da representatividade na política mediante incentivos à participação feminina nos pleitos eleitorais.

Os dispositivos legais pertinentes são o art. 44, inc. V, da Lei n. 9.096/95 e o art. 9º da Lei n. 13.165/15. Vejamos:

Lei n. 9.096/95

Art. 44. Os recursos oriundos do Fundo Partidário serão aplicados:

[…]

V - na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, criados e mantidos pela secretaria da mulher do respectivo partido político ou, inexistindo a secretaria, pelo instituto ou fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política de que trata o inciso IV, conforme percentual que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 5% (cinco por cento) do total; (Redação dada pela Lei nº 13.165, de 2015)

[…]

 

Lei n. 13.165/15

Art. 9º Nas três eleições que se seguirem à publicação desta Lei, os partidos reservarão, em contas bancárias específicas para este fim, no mínimo 5% (cinco por cento) e no máximo 15% (quinze por cento) do montante do Fundo Partidário destinado ao financiamento das campanhas eleitorais para aplicação nas campanhas de suas candidatas, incluídos nesse valor os recursos a que se refere o inciso V do art. 44 da Lei no 9.096, de 19 de setembro de 1995.

Nas Eleições de 2016, Jalusa Fernandes de Souza, candidata eleita ao cargo de vereador em Rosário do Sul pelo Partido Progressista, recebeu R$ 20.000,00 em recursos financeiros oriundos do Fundo Partidário, e repassou parte desses valores para candidato ao pleito majoritário (Alisson Furtado Sampaio, seu companheiro, não eleito, R$ 10.000,00) e para o candidato eleito ao cargo de vereador Afrânio Vagner Vasconcelos da Vara (R$ 2.000,00).

Analisando a prova dos autos, verifiquei que, no atendimento à legislação eleitoral, o Partido Progressista optou por distribuir o percentual mínimo estipulado da verba do Fundo Partidário vinculada às candidaturas femininas (5%) para um determinado número de candidatas no Estado. Segundo o depoimento prestado pelo contador do Diretório Estadual do Partido, neste processo (fls. 89-90):

Foram selecionadas 50 ou 60 que seriam as destinatárias desses recursos. A medida que fossem esclarecidos nomes, contas bancárias e outras qualificações eram encaminhados esses recursos, sempre destacando que envolviam a conta ou a cota das mulheres. […] A destinação específica do valor repassado à conta das mulheres é para a campanha destas e para eventos destinados a elas. […] A orientação do Partido Estadual é indicar a procedência da verba destinada às mulheres no caso das doações. […] As comunicações das destinações de recursos ou dos repasses feitos do Diretório Estadual para as candidatas eram feitas via telefone, sem nenhum documento escrito. Se não houvesse uma comunicação à candidata por telefone, a mesma não teria como saber a origem do repasse ou dos recursos. Ressalva acreditar haver comunicado 100% das indicações que recebeu, vale dizer, até onde lembra, não tendo deixado de comunicar nenhuma candidata.

Já outro dirigente do Partido Progressista, na esfera municipal, declarou que (fl. 131):

Os recursos obtidos pelo partido foram direcionados a candidatura à eleição majoritária, e, a proporcional, aos candidatos Afrânio e Jalusa. Do que lembra, o auxílio aos demais candidatos, pelo partido, restringiu-se a material de divulgação. Desconhece outra verba partidária recebida por Afrânio, fora aquela repassada por Jalusa. Afrânio impôs como condição para candidatura o auxílio pelo partido, pois não dispunha de recursos para tanto. […] Os recursos repassados pelo partido a candidatura majoritária foram inferiores àqueles repassados a candidata Jalusa.

Nos autos do anexo, consta manifestação da candidata Jalusa, em seu processo de prestação de contas (fls. 91-94), no sentido de que “não há vedação a doação a homens, pois foi a orientação do próprio Partido doador dos valores do fundo” [sic].

No entender deste relator, ficou evidenciado que o Partido Progressista repassou verbas do Fundo Partidário, no percentual mínimo exigido no art. 9º da Lei n. 13.165/15, a um determinado número de candidatas escolhidas no Estado. Tais candidatas tiveram ciência de estar recebendo recursos por integrarem a chamada “quota de gênero”.

Do mesmo modo, ficou claro que tais recursos financeiros tinham finalidade específica – financiar campanhas de mulheres –, visto que os candidatos do sexo masculino, pelo menos no Município de Rosário do Sul, obtiveram apenas material de divulgação advindo da agremiação partidária.

Mesmo que houvesse como alegar o desconhecimento da lei, qualquer cidadão perceberia que não há sentido em receber recursos do partido político para repassar a outros candidatos, visto que, se a ideia fosse distribuir indistintamente tais valores, a agremiação assim o faria, sem necessidade de triangulação.

E, no caso concreto, a candidatura de Jalusa, proporcional, recebeu mais recursos do que a candidatura majoritária, tudo a indicar para a beneficiária da transferência que aquele robusto financiamento tinha uma razão especial, qual seja, fomentar sua candidatura, e não permitir-lhe que distribuísse os recursos públicos à sua vontade.

No mesmo sentido, em se tratando de recursos do Fundo Partidário, é razoável que se espere que os beneficiários de verbas públicas saibam que essas sempre são destinadas a uma finalidade, e não distribuídas como “prêmio de loteria” para que o beneficiário faça com o montante o que bem desejar.

Da mesma maneira, o candidato Afrânio tinha todos os motivos para questionar o porquê de um adversário (mesmo que da mesma agremiação) estar financiando sua campanha.

Em um pleito marcado pela exiguidade de recursos, não teria o candidato imaginado que o recebimento de valores substanciais por sua colega de agremiação teria alguma motivação específica, e que o repasse de tais valores poderia constituir irregularidade?

Ademais, se o partido tivesse o intuito de fomentar a candidatura de Afrânio, por que não teria repassado os recursos diretamente?

Enfim, todos os elementos aqui indicam que os candidatos, talvez por orientação ou com a conivência do partido, decidiram utilizar a verba dotada de destinação específica com desvio de finalidade.

Reconheço, portanto, que Jalusa efetuou gastos ilícitos ao repassar os valores advindos do Fundo Partidário, que deveriam financiar sua campanha, a outros candidatos, e que Afrânio captou ilicitamente os recursos do Fundo Partidário destinados a candidatas do sexo feminino.

Cumpre então perquirir se o arsenal normativo é apto a reprimir ocorrências dessa natureza.

A ação está fundada no art. 30-A da Lei n. 9.504/97. Nas palavras de Zilio:

Estabelece o art. 30-A, caput, da LE, a possibilidade de o legitimado ajuizar representação à Justiça Eleitoral, “para apurar condutas em desacordo com as normas desta Lei, relativas à arrecadação e gastos de recursos”. Trata-se de uma representação que objetiva apurar especificamente condutas em desacordo com as regras de arrecadação e gastos de recursos eleitorais. Essa representação consiste na espécie de ação processual colocada à disposição da parte autora, da mesma forma que as representações por captação ilícita de sufrágio (art. 41-A da LE) e por condutas vedadas (v.g., art. 73 da LE). Se a representação aludida no caput do art. 30-A da LE é o meio processual de buscar a prestação jurisdicional devida, a captação ou os gastos ilícitos de recursos, para fins eleitorais, são as hipóteses materiais de incidência da norma, ou seja, consistem no direito material disponibilizado aos autores. Havendo a incidência de uma hipótese material de captação ilícita de recursos ou gastos ilícitos para fins eleitorais, é possível o ajuizamento de representação com base no art. 30-A da LE, buscando-se seja negado diploma ao candidato, ou cassado, se já houver sido outorgado.

[…]

Portanto, a única relação existente entre a representação por captação e gastos ilícitos de recursos e a AIJE é a aplicação do rito procedimental previsto no art. 22 da LC nº 64/90; a vinculação entre a LC nº 64/90 e o art. 30-A da LE, pois, é exclusivamente adjetiva e processual (ZILIO, Rodrigo López. Direito Eleitoral. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2016, p. 636-637).

Penso que os arts. 20 e 24 da Lei das Eleições veiculam dispositivos que impõem aos candidatos o dever de empregar os recursos do Fundo Partidário na forma estabelecida em lei, bem como de abster-se de utilizar aqueles oriundos de fonte vedada. Vejamos:

Art. 20. O candidato a cargo eletivo fará, diretamente ou por intermédio de pessoa por ele designada, a administração financeira de sua campanha usando recursos repassados pelo partido, inclusive os relativos à cota do Fundo Partidário, recursos próprios ou doações de pessoas físicas, na forma estabelecida nesta Lei.

Art. 24. [...]

§ 4º O partido ou candidato que receber recursos provenientes de fontes vedadas ou de origem não identificada deverá proceder à devolução dos valores recebidos ou, não sendo possível a identificação da fonte, transferi-los para a conta única do Tesouro Nacional. (Incluído pela Lei n. 13.165, de 2015)

Assim sendo, afasto as teses de impossibilidade de utilização da representação prevista no art. 30-A da Lei das Eleições em razão de os dispositivos que mencionam a distribuição de percentual definido para aplicação nas campanhas das candidatas não estarem contidos na Lei das Eleições, ou da referida percentagem ser destinada aos partidos políticos.

Os arts. 20 e 24, § 4º, impõem deveres específicos a serem observados pelos candidatos, determinando sua responsabilidade sobre as verbas utilizadas na campanha, cabendo estabelecer que a movimentação irregular das quantias destinadas ao financiamento de candidaturas femininas constitui violação a esses deveres.

Da mesma forma, recente precedente do Tribunal Superior Eleitoral espelha a necessidade de que a interpretação das regras eleitorais não deva estar centrada apenas no caráter meramente formal das normas eleitorais, e sim no privilégio à análise da violação do direito material (principal).

Nesse sentido, no julgamento do Recurso Especial Eleitoral n. 243-42 (Acórdão de 16.8.2016), em que se averiguava a aplicação de outro dispositivo pertinente à mesma política afirmativa, o relator consignou em seu voto que:

[…] a interpretação das regras previstas na Lei das Inelegibilidades e no ordenamento jurídico eleitoral infraconstitucional devem sempre partir da concepção traçada pela Constituição da República, que impõe a preservação da normalidade e da legitimidade dos pleitos (art. 14, § 9°), assim como a possibilidade de cassação dos mandatos em razão de abuso, fraude ou corrupção (art. 14, § 10).

[...]

Assim, o entendimento já consagrado por este Tribunal no sentido de que a fraude em questão pode ser examinada pela via da ação de impugnação do mandato eletivo não é, no plano teórico, suficiente para garantir o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição.

Nesse sentido, cabe lembrar que, como dispunha o art. 75 do Código Civil, a todo o direito deve corresponder uma ação, que o assegure. De igual modo, tanto o Código de Processo Civil atualmente em vigor como o novo Código de Processo Civil reforçam, em diversos dispositivos, o conceito de utilidade da prestação jurisdicional, impondo ao magistrado a adoção das medidas que preservem o resultado útil e prático do processo.

Neste aspecto, não se mostra útil ou prático para o processo eleitoral postergar a análise da matéria relacionada à fraude que estaria sendo cometida no curso das campanhas apenas para o momento posterior ao da diplomação, pois o objetivo primário da jurisdição eleitoral deve ser o de preservar a normalidade e a legitimidade das eleições.

Em outras palavras, apresentada a denúncia da prática de fraude capaz de afetar a normalidade e a legitimidade das eleições, a sua apuração supera o interesse das partes e não pode ser afastada.

Nesse sentido, sem tecer, neste instante, considerações diretamente sobre os fatos tratados no presente feito, em face da necessidade de análise prévia pela Corte Regional, o preenchimento das vagas destinadas às candidaturas de ambos os gêneros prevista no art. 10, § 30, da Lei das Eleições não pode ser relegado a um aspecto meramente numérico que satisfaça formalmente a exigência legal.

[…]

No caso do registro de candidaturas de acordo com os percentuais mínimos previstos na legislação, o poder decorrente do monopólio das candidaturas exercido pelos partidos políticos não se limita ao mero lançamento de candidaturas de acordo com os percentuais vigentes, pois a regra - como ação afirmativa - impõe que o seu conteúdo seja efetivamente respeitado de modo que as candidaturas lançadas sejam efetivas e reais e a efetividade do conteúdo normativo seja assegurada.

Nessa linha, mutatis mutandi, ao tratar da presença das mulheres na propaganda partidária, já se afirmou que "o incentivo à participação feminina no âmbito da propaganda partidária, como ação afirmativa, merece ser interpretado de forma a conferir a maior efetividade possível à norma" (REspe n° 523-63, rei. Mm. Henrique Neves, DJE de 14.4.2014).

Assim, eventuais desvirtuamentos que possam anular a regra que impõe no mundo fático a existência de candidaturas nos patamares previstos pela legislação para cada gênero devem ser examinados pela Justiça Eleitoral tão logo sejam detectados e apontados para, inclusive e se for o caso, permitir a adoção das medidas que visem equilibrar o pleito e atender ao comando legal durante o curso das campanhas eleitorais.

Na linha consagrada pela Corte nesse julgamento, tenho que a interpretação que confere maior efetividade à norma e que prestigia a busca da isonomia entre os candidatos é aquela que permite concluir que a observância do comando do art. 9º da Lei n. 13.165/15 é dever tanto de candidatos quanto de partidos políticos, e que o uso, por concorrentes do sexo masculino, da receita destinada à campanha de candidatas, viola os deveres de captação e gasto de recursos por gênero previstos na Lei das Eleições.

Constou na ementa do julgado invocado:

Ainda que os partidos políticos possuam autonomia para escolher seus candidatos e estabelecer quais candidaturas merecem maior apoio ou destaque na propaganda eleitoral, é necessário que sejam assegurados, nos termos da lei e dos critérios definidos pelos partidos políticos, os recursos financeiros e meios para que as candidaturas de cada gênero sejam efetivas e não traduzam mero estado de aparências.

Assim, desvirtuamentos como o verificado nestes autos, que acabam por macular a regra que, mesmo timidamente, direciona recursos financeiros às candidaturas femininas, devem ser coibidos pela Justiça Eleitoral tão logo sejam detectados e apontados para, inclusive e se for o caso, impedir que a conduta perniciosa se torne regra no curso das campanhas eleitorais.

A Lei n. 13.165/15 representou avanço na legislação eleitoral, na medida em que buscou enfrentar duas das principais queixas de estudiosos do tema: a falta de recursos financeiros e o tempo de rádio e televisão. A constitucionalidade dos dispositivos está sendo questionada no Supremo Tribunal Federal, não por seu conteúdo, mas pela insuficiência da dotação de recursos.

Conforme consta no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal:

O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5617), com pedido de liminar, no Supremo Tribunal Federal (STF) contra dispositivo da Lei 13.165/2015 (conhecida como Minirreforma Eleitoral de 2015) que estabelece percentuais mínimo e máximo de recursos do Fundo Partidário para aplicação em campanhas eleitorais de mulheres, fixando prazo de vigência da regra. Segundo Janot, não basta que a lei reserve percentual de vagas para candidatas, é preciso garantir que elas tenham recursos suficientes para disputar o pleito eleitoral em igualdade de condições com os homens.

De acordo com o dispositivo questionado, nas três eleições que se seguirem à publicação da lei (Eleições 2016, 2018 e 2020), os partidos reservarão, em contas bancárias específicas para este fim, no mínimo 5% e no máximo 15% do montante do Fundo Partidário destinado ao financiamento das campanhas eleitorais para aplicação nas campanhas de suas candidatas.

Para o procurador-geral da República, a norma contraria o princípio fundamental da igualdade, deixa de proteger suficientemente o pluralismo político, a cidadania e o princípio democrático e falha na busca do objetivo fundamental de construir uma sociedade livre, justa e solidária, além de ferir os princípios da eficiência, da finalidade e da autonomia dos partidos políticos, conforme estabelece a Constituição Federal.

Janot argumenta que, apesar das alterações recentes na legislação eleitoral, persiste o grave déficit de representatividade política das mulheres no Brasil. Sustenta que o Brasil tem menos participação proporcional de mulheres no Poder Legislativo do que outros países de menor consolidação democrática, menor abertura política e cultural ou menor condição socioeconômica, como Etiópia, Burundi, Lesoto, Azerbaijão, Turquia e Myanmar. “Comparado com os 34 países da América Latina, o Brasil ocupa injustificável 30º lugar neste quesito”, enfatiza Janot.

O procurador-geral afirma que, para fazer frente à tamanha desigualdade de gênero na política brasileira, desde 1997, a legislação eleitoral prevê que cada partido ou coligação deverá reservar, no mínimo, 30% de suas candidaturas nas eleições proporcionais para mulheres. Diante da constatação de sua inefetividade, tal previsão foi alterada em 2009, para exigir que a reserva percentual não mais incidisse no registro das candidaturas, mas sobre o total de vagas preenchidas pelos partidos ou coligações.

Janot lembra que a falta de recursos foi uma das razões da pouca efetividade das cotas que pautou a reforma eleitoral introduzida pela Lei 13.165/2015, mas vagas reservadas sem correspondente alocação de recursos de campanha são pouco efetivas. “A aprovação da norma legal almejaria corrigir esse cenário, com reserva de frações do Fundo Partidário para candidatas, de forma a aumentar as possibilidades de mulheres lançarem candidaturas com chances reais de êxito. Mas a fixação de limite máximo do montante do fundo partidário a ser reservado para campanhas de mulheres, na norma atacada, todavia, não apenas viola o princípio da igualdade, como, ainda mais grave, inverte o sistema de cotas eleitorais”, sustenta.

Segundo o autor da ADI, o limite máximo de 15% previsto na lei produz mais desigualdade e menos pluralismo da definição das posições de gênero. “Se não há limites máximos para financiamento de campanhas de homens, não se podem fixar limites máximos para as mulheres”, afirma. Quanto ao limite mínimo, enfatiza que o patamar de 5% dos recursos para as candidatas protege de forma deficiente os direitos políticos das mulheres. Para Janot, o princípio da proporcionalidade só seria atendido se o percentual de recursos fosse de 30%, pois se equipararia ao patamar mínimo de candidaturas femininas.

Voltando à análise do caso em testilha, consigno que Jalusa recebeu R$ 20.000,00 (vinte mil reais) de recursos do Fundo Partidário, destinados ao financiamento de candidaturas femininas, e doou R$ 12.000,00 (doze mil reais) a candidatos homens que também disputavam cargos por ocasião do pleito.

Beneficiário de parte do montante repassado, Afrânio recebeu R$ 2.000,00 (dois mil reais), o que representa 66% das receitas de campanha do candidato, conforme consulta ao sistema público de Divulgação de Candidaturas e Contas Eleitorais (http://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/candidato/2016/2/88315/210000018622). O mesmo sistema permite verificar que a fonte dos recursos transferidos por Jalusa é o Fundo Partidário.

Consta também que o total de receita da candidata foi R$ 22.490,00 (http://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/candidato/2016/2/88315/210000018616).

Tomados esses dados, é de concluir-se que o percentual dos recursos do Fundo Partidário, em relação ao total de receitas em ambas as campanhas foi substancial, o que reflete na ponderação de que as condutas ilícitas na arrecadação e gasto dos valores estão revestidas de relevância jurídica suficiente para implicar a cassação dos mandados outorgados aos recorridos.

A fim de afastar a tese da necessidade de averiguar a existência de má-fé na conduta dos candidatos, na apuração da hipótese do art. 30-A da Lei das Eleições, colaciono o ilustrativo julgado do Tribunal Superior Eleitoral:

ELEIÇÕES 2012. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. CAPTAÇÃO ILÍCITA DE RECURSOS FINANCEIROS DE CAMPANHA ELEITORAL (LEI DAS ELEIÇÕES, ART. 30-A). ABUSO DO PODER ECONÔMICO. PREFEITO E VICE-PREFEITO. AUSÊNCIA DE JULGAMENTO EXTRA PETITA. REEXAME DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS. SÚMULAS Nos 279/STF, 7/STJ E 24/TSE. PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE NÃO PREENCHIDOS. NÃO INDICAÇÃO DO DISPOSITIVO LEGAL VIOLADO. NÃO DEMONSTRAÇÃO DA DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. INCIDÊNCIA DAS SÚMULAS NOS 284/STF E 27/TSE. ILÍCITOS CONSIDERADOS GRAVES PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. RELEVÂNCIA JURÍDICA DA CONDUTA IMPUTADA. PROPORCIONALIDADE. CASSAÇÃO DO MANDATO. DECLARAÇÃO DE INELEGIBILIDADE. NOVA INCURSÃO NO ARCABOUÇO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS. INVIABILIDADE. AGRAVO DESPROVIDO.

[...]

5. A cassação, enquanto gravosa pena imposta ao agente infrator, é medida que se impõe sempre que se verificar, in concreto, a gravidade e a relevância jurídica do ilícito praticado.

6. In casu, relativamente à questão da proporcionalidade, ficou assentado no decisum regional que (fls. 3.513-3.514):

"Nesse panorama, consoante registrou o Procurador Regional Eleitoral em seu parecer, 'todas as irregularidades e omissões não se apresentam irrelevantes quando analisadas conjuntamente, mas, sim, harmônicas com um conjunto probatório que não deixa margem para qualquer dúvida, restando evidente que todas essas condutas ofenderam de forma grave e ampla a lei e a isonomia de oportunidades entre os candidatos e a higidez da campanha eleitoral, frente a tudo que deflui dos autos'.

Quanto ao argumento dos investigados, ora recorrentes, de ser necessária a demonstração de potencialidade ou má-fé do candidato para se configurar a violação ao art. 30-A da Lei nº 9.504/97, o TSE já pacificou entendimento no sentido de ser necessária tão somente a demonstração da proporcionalidade (relevância jurídica) da conduta frente ao contexto da campanha eleitoral [...]."

7. Agravo regimental desprovido

(Recurso Especial Eleitoral n. 42544, Acórdão, Relator Min. Luiz Fux, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Data 19.12.2016, Página 34-35.)

Portanto, não sendo necessário investigar a caracterização de má-fé por parte dos candidatos, basta a constatação de violação do dever de zelar pela verificação da licitude e regularidade dos recursos empregados na campanha eleitoral para reconhecer a afronta ao art. 30-A da Lei das Eleições, conjugada ao reconhecimento de que os valores irregulares envolveram mais de 50% das receitas arrecadadas.

No tocante às políticas públicas de incremento da participação feminina, cumpre à Justiça Eleitoral laborar no sentido de conferir a maior efetividade possível aos regramentos que visam à sua implementação, sob o risco de torná-los letra morta.

Assim, constatada nestes autos a utilização irregular de recursos do Fundo Partidário destinados ao financiamento de candidaturas femininas, não há como prestigiar outra interpretação que não seja aquela que favoreça sua efetividade.

Nesse intuito, cumpre trazer aos autos parte da ementa constante do julgamento da Representação n. 32255, que teve como relator no Tribunal Superior Eleitoral o Min. Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin (Publicação: DJE, Tomo 53, Data 17.3.2017, Páginas 135-136), que bem delineia tal diretriz:

REPRESENTAÇÃO. PROPAGANDA PARTIDÁRIA. INSERÇÕES NACIONAIS. PRIMEIRO SEMESTRE DE 2016. PARTIDO SOCIAL DEMOCRÁTICO (PSD). TEMPO DESTINADO À PROMOÇÃO E À DIVULGAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO POLÍTICA FEMININA. INOBSERVÂNCIA. PROCEDÊNCIA. CASSAÇÃO. PROPAGANDA SEGUINTE. REVERSÃO DO TEMPO CASSADO À JUSTIÇA ELEITORAL. PROPAGANDA INSTITUCIONAL. ATENDIMENTO À FINALIDADE LEGAL.

[...]

3. O incentivo à presença feminina constitui necessária, legítima e urgente ação afirmativa que visa promover e integrar as mulheres na vida político-partidária brasileira, de modo a garantir-se observância, sincera e plena, não apenas retórica ou formal, ao princípio da igualdade de gênero (art. 5º, caput e I, da CF/88).

4. Apesar de, já em 1953, a Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher, da Organização das Nações Unidas (ONU), assegurar isonomia para exercício da capacidade eleitoral passiva, o que se vê na prática ainda é presença ínfima das mulheres na política, o que se confirma pelo 155º lugar do Brasil no ranking de representação feminina no parlamento, segundo a Inter-Parliamentary Union (IPU).

5. Referida estatística, deveras alarmante, retrata o conservadorismo da política brasileira, em total descompasso com população e eleitorado majoritariamente femininos, o que demanda rigorosa sanção às condutas que burlem a tutela mínima assegurada pelo Estado.

6. Cabe à Justiça Eleitoral, no papel de instituição essencial ao regime democrático, atuar como protagonista na mudança desse quadro, em que as mulheres são sub-representadas como eleitoras e líderes, de modo a eliminar quaisquer obstáculos que as impeçam de participar ativa e efetivamente da vida política.

7. As agremiações devem garantir todos os meios necessários para real e efetivo ingresso das mulheres na política, conferindo plena e genuína eficácia às normas que reservam número mínimo de vagas para candidaturas (art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/97) e asseguram espaço ao sexo feminino em propaganda (art. 45, IV, da Lei nº 9.096/95). A criação de "estado de aparências" e a burla ao conjunto de dispositivos e regras que objetivam assegurar isonomia plena devem ser punidas, pronta e rigorosamente, pela Justiça Eleitoral.

8. Em síntese, a participação feminina nas eleições e vida partidária representa não apenas pressuposto de cunho formal, mas em verdade, garantia material oriunda, notadamente, dos arts. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/97, 45, IV, da Lei nº 9.096/95 e 5º, caput e I, da CF/88.

9. A mera participação feminina na propaganda partidária, desvinculada de qualquer contexto relacionado à inclusão das mulheres na política, não é suficiente para atender às finalidades legais. Precedente: AgR-REspe n° 155-12/MG, rel. Min. Luciana Lóssio, DJe de 5.5.2016.

10. A ratio da lei é fazer a mulher reconhecer que é cidadã igual ao homem, com voz própria para defender seus direitos, e inseri-la na vida político-partidária, não se podendo substituir, ao talante dos partidos, as obrigações legais como se fosse uma prestação fungível.

11. A autonomia partidária contida no § 1º do art. 17 da CF/88 não significa soberania para desrespeitar, direta ou indiretamente, valores e princípios constitucionais: é imperativo que agremiações observem a cota de gênero não somente em registro de candidaturas, mas também na propaganda e assegurando às mulheres todos os meios de suporte em âmbito intra ou extrapartidário, sob pena de se manter histórico e indesejável privilégio patriarcal e, assim, reforçar a nefasta segregação predominante na vida político-partidária brasileira.

[...]

14. Os percentuais previstos para inserção da mulher na política - 10% em programa partidário (art. 45, inc. IV, da Lei n. 9.096/95), 30% em registro de candidatura (art. 10, § 3º, da Lei n. 9.504/97) e 15% em financiamento de campanha (art. 9º da Lei n. 13.165/15) - devem ser interpretados à luz do princípio da isonomia de gênero, nos termos do art. 5º, I, da CF/88, e constituem valores obrigatórios mínimos a serem garantidos pelas agremiações.

[...]

(Representação n. 32255, Acórdão, Relator Min. Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 53, Data 17.3.2017, Página 135-136.)

Desse modo, sinalizando que não se tolerará a indevida utilização do percentual destinado ao fomento da participação feminina na política, e amparado no acervo probatório dos autos, reconheço a captação ilícita de recursos por parte de AFRÂNIO VAGNER VASCONCELOS DA VARA e a realização de gasto ilícito por JALUSA FERNANDES DE SOUZA, candidatos eleitos ao cargo de vereador no Município de Rosário do Sul nas Eleições 2016.

Diante do exposto, VOTO pelo PROVIMENTO do recurso interposto, para o fim de julgar procedente o pedido contido na inicial e cassar os diplomas conferidos a AFRÂNIO VAGNER VASCONCELOS DA VARA e JALUSA FERNANDES DE SOUZA, nos termos do art. 30-A da Lei n. 9.504/97, mantido o cômputo dos votos obtidos pelos candidatos à legenda pela qual concorreram, nos termos do art. 175, § 4º, do Código Eleitoral, devendo ser empossados dois suplentes da coligação.

Comunique-se, para o devido cumprimento, o inteiro teor desta decisão ao Juízo da 39ª Zona Eleitoral (Rosário do Sul), após o julgamento de eventuais embargos de declaração opostos.

É como voto, Senhor Presidente.