RE - 31857 - Sessão: 16/05/2017 às 17:00

RELATÓRIO

GILBERTO PEDRO HAMMES (prefeito eleito de São José do Inhacorá), EDUARDO LUDWIG (vice-prefeito eleito de São José do Inhacorá) e ELISEU JOÃO REDEL SCHENKEL (prefeito de São José do Inhacorá na época dos fatos) interpõem recurso (fls. 261-277) contra a sentença de fls. 249-258, que julgou procedente ação de investigação judicial eleitoral proposta pelo PARTIDO DEMOCRÁTICO TRABALHISTA (PDT) de São José do Inhacorá, por reconhecer a prática de atos que configuram abuso de poder político e econômico pelos representados, declarando a inelegibilidade destes e determinando a cassação dos diplomas de GILBERTO PEDRO HAMMES e EDUARDO LUDWIG, respectivamente eleitos para os cargos de prefeito e vice do Município de São José do Inhacorá.

Em suas razões, os recorrentes requerem, preliminarmente, (a) a concessão de efeito suspensivo ao recurso e (b) a decretação de nulidade da sentença em virtude de suposta suspeição da magistrada. No mérito, alegam que a decisão de primeiro grau foi equivocada pois, em sua visão, a concessão de férias aos servidores públicos municipais se deu em estrita observância aos períodos aquisitivos, não sendo comprovado eventual prejuízo às atividades daquele ente municipal. Referem, ainda, que não cabe à administração municipal estabelecer o que os servidores devem ou não fazer em seus períodos de férias, não podendo os gestores serem responsabilizados por condutas praticadas na órbita privada dos funcionários nos momentos de descanso destes. Desse modo, sustentam a legalidade da concessão de férias aos servidores municipais, não havendo abuso de poder em tais atos administrativos, motivo pelo qual postulam a reforma da sentença, julgando-se improcedente a ação (fls. 261-277).

Em contrarrazões, o recorrido requer o afastamento da preliminar de suspeição, o acolhimento da contradita das testemunhas RAUL SCHNEIDER e RENATO GRAF, arroladas pelos recorrentes e, ao fim, seja desprovido o apelo (fls. 283-327).

Nesta instância, a Procuradoria Regional Eleitoral manifestou-se, preliminarmente, pelo afastamento da prefacial de suspeição da magistrada a quo e pela necessária atribuição de efeito suspensivo ao recurso. Quanto ao mérito, opinou pelo provimento do recurso (fls. 332-337v.).

É o relatório.

 

VOTO

Senhora Presidente, eminentes colegas:

1. Admissibilidade

1.1 Tempestividade

O apelo é tempestivo e atende aos demais pressupostos recursais, razão pela qual dele conheço.

 

1.2 Do pedido de concessão de efeito suspensivo ao recurso

 Os recorrentes postulam a concessão de efeito suspensivo ao presente apelo.

Em matéria eleitoral, com o advento da Lei n. 13.165/15, a sistemática recursal foi alterada de modo a conferir efeito suspensivo automático aos recursos eleitorais ordinários interpostos contra sentenças proferidas por juízes eleitorais que resultem em cassação de registro, afastamento do titular ou perda de mandato.

Por consequência, os efeitos da sentença somente se operam com o trânsito em julgado da decisão, nos termos do art. 257, § 2º, do Código Eleitoral, parágrafo este incluído pela reforma legislativa, in verbis:

Art. 257. Os recursos eleitorais não terão efeito suspensivo.

§ 1º A execução de qualquer acórdão será feita imediatamente, através de comunicação por ofício, telegrama, ou, em casos especiais, a critério do presidente do Tribunal, através de cópia do acórdão. (Redação dada pela Lei n. 13.165, de 2015)

§ 2º O recurso ordinário interposto contra decisão proferida por juiz eleitoral ou por Tribunal Regional Eleitoral que resulte em cassação de registro, afastamento do titular ou perda de mandato eletivo será recebido pelo Tribunal competente com efeito suspensivo. (Incluído pela Lei nº 13.165, de 2015)

§ 3º O Tribunal dará preferência ao recurso sobre quaisquer outros processos, ressalvados os de habeas corpus e de mandado de segurança. (Incluído pela Lei nº 13.165, de 2015) (Grifei.)

E, nesse sentido, o TSE já manifestou entendimento, conforme depreende-se da fundamentação exarada no ED-REspe n. 139-25.2016.6.21.0154/RS, mais precisamente do seguinte trecho:

[…] Pela redação original do Código Eleitoral, os recursos eleitorais eram desprovidos de efeito suspensivo. A execução imediata das sentenças eleitorais sempre foi característica do Direito Eleitoral.

A partir da edição da Lei 13.165/2015, esse paradigma foi quebrado, reconhecendo-se efeito suspensivo automático aos recursos eleitorais interpostos para as instâncias ordinárias, conforme o novo § 2º acrescido ao art. 257 do Código Eleitoral.

Nas eleições municipais, esse novo dispositivo está em consonância com o art. 15 da Lei Complementar 64/90, que impõe, a partir da manifestação de órgão colegiado, a aplicabilidade imediata do reconhecimento da inelegibilidade. (…) (Grifei.)

De igual modo:

AGRAVO REGIMENTAL. PEDIDO. EFEITO SUSPENSIVO. MINIRREFORMA ELEITORAL. INCLUSÃO. ART. 257, § 2º, DO CE. NÃO CONHECIMENTO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO INADMITIDO. INTEMPESTIVIDADE. DESPROVIMENTO.

1. Nos termos do art. 257, § 2º, do CE, incluído pela Lei nº 13.165/2015, somente o recurso ordinário que resulte cassação ou perda de mandato será recebido com efeito suspensivo, regra inaplicável aos recursos de natureza extraordinária, sobretudo, no caso, em que o apelo nobre foi reputado intempestivo.

2. Agravo regimental desprovido.

TSE, Agravo Regimental em Recurso Extraordinário em Recurso Especial Eleitoral n. 73982, Acórdão de 02.02.2016, Relator Min. JOSÉ ANTÔNIO DIAS TOFFOLI, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 45, Data 07.3.2016, Página 50) (Grifei.)

No caso em exame, embora a sentença tenha determinado a cassação do mandato eletivo dos representados, não houve comando de que a decisão fosse cumprida de imediato.

Desse modo, o recurso foi recebido em seu duplo efeito – devolutivo e suspensivo –, sendo despicienda, portanto, a concessão do efeito suspensivo ao apelo, tal como requerem os recorrentes em matéria preliminar.

Consequentemente, afasto a prefacial suscitada nesse sentido.

 

1.3 Da alegação de suspeição da magistrada de primeiro grau

Em relação à prefacial de suspeição da magistrada da 89ª Zona Eleitoral, entendo que não merece prosperar.

Os recorrentes alegam a suspeição da julgadora de primeiro grau, Dra. Elaine Aparecida Resende Lopes, ao argumento de que esta seria “amiga íntima da família RECKTENWALD, especialmente de uma sobrinha do então candidato a vice-prefeito pelo PDT, Sr. Jair Recktenwald”. Ou seja, sustentam que a aludida juíza eleitoral teria estreito vínculo de amizade com Gaciela Recktenwald, sobrinha de Jair Recktenwald, candidato a vice-prefeito pelo PDT de São José do Inhacorá, partido que ofereceu a representação da qual o recurso ora analisamos.

O prazo para a arguição da suspeição encontra-se previsto no art. 146 do Código de Processo Civil:

Art. 146. No prazo de 15 (quinze) dias, a contar do conhecimento do fato, a parte alegará o impedimento ou a suspeição, em petição específica dirigida ao juiz do processo, na qual indicará o fundamento da recusa, podendo instruí-la com documentos em que se fundar a alegação e com rol de testemunhas. (Grifei.)

Os apelantes afirmam que somente após a prolação da sentença condenatória tomaram conhecimento do suposto fato ensejador da suspeição (verso da fl. 263). Contudo, não se mostra plausível a alegação dos apelantes.

Os documentos por eles colacionados aos autos às fls. 273-276, com os quais pretendem provar a ocorrência de fatos que dariam razão à suspeição da magistrada, são anteriores à data da propositura da ação, ocorrida em 27.9.2016. São cópias de publicações no Facebook, veiculadas no início de 2015, nas quais aparecem a juíza eleitora e a sobrinha do candidato a vice-prefeito pelo PDT.

Consequentemente, não se mostra convincente que em um município pequeno, com 2.117 eleitores, tal informação só estivesse à disposição dos recorrentes em momento posterior à prolação da sentença, até porque, como eles próprios argumentam, tais vínculos de amizade foram veiculados por meio da rede social Facebook, demonstrando a publicização dos acontecimentos.

Ainda que comprovado o referido laço de amizade, ressalte-se que tal fato, por si só, não caracteriza hipótese legal de suspeição. Além disso, inexiste nos autos qualquer indício de prova de suposto interesse da juíza no resultado da lide. Ademais, tal como bem consignou o ilustre Procurador Regional em seu parecer (fl. 333):

Não há nos autos comprovação da alegada parcialidade da magistrada a quo, pois a mera alegação de suposta amizade com sobrinha de possível beneficiário da demanda - que sequer é parte -, não estando comprovado qualquer envolvimento direto com as partes e nem indício de interesse no julgamento do processo em favor de qualquer delas, não é apta a ensejar suspeição.

Afasto, portanto, a arguição de suspeição suscitada pelos recorrentes.

 

1.4 Da alegação de litigância de má-fé decorrente da arguição de suspeição da magistrada

O recorrido sustenta que os recorrentes litigaram de má-fé ao suscitarem a suspeição da magistrada, razão pela qual requer sejam estes condenados pela prática de atos atentatórios à justiça.

Sem razão.

A litigância de má-fé só resta configurada quando a parte faz pedido que contrarie expressamente texto de lei. É a postulação temerária, distorcida e mentirosa. Também pressupõe a intenção do litigante de causar prejuízos à parte adversa, exigindo prova robusta da existência do dolo.

Ademais, ao contrário da boa-fé, que se presume, a má-fé exige prova cabal, sem a qual não há que se falar em aplicação de multa.

No caso dos autos, embora este relator tenha concluído pelo afastamento da arguição de suspeição suscitada pelos recorrentes, é necessário reconhecer que tal pleito não se mostra contrário à lei.

Da mesma forma, a alegação dos apelantes não se apresenta como abusiva, imprudente ou dissimulada.

Trata-se, em verdade, da visão dos recorrentes sobre os fatos que tiveram conhecimento, guarnecidos com imagens nas quais é possível visualizar a magistrada junto a pessoas próximas a integrantes do partido representante, o que, em tese, repito, apenas em tese, poderia levar à suspeição da juíza.

Portanto, em tese, a hipótese de suspeição da magistrada, aventada pelos recorrentes, encontra-se amparada pelo ordenamento jurídico, cabendo ao julgador, no caso a este Colegiado, acatá-la ou não, não configurando litigância de má-fé tal insurgência.

Consequentemente, deixo de acolher o pleito do recorrido quanto a este ponto.

 

1.5 Da contradita de duas das testemunhas arroladas pelos recorrentes

O recorrido insurge-se quanto ao indeferimento da contradita oposta em relação às testemunhas Raul Schneider e Renato Graf, arroladas pelos recorrentes.

Quanto a Raul Schneider, o recorrido alega ser ele filiado ao PT, partido do representado Eduardo Ludwig, tendo inclusive ocupado, no passado, cargos naquela agremiação, o que caracterizaria a sua suspeição em virtude do interesse no litígio (art. 447, § 3º, inc. II, do CPC).

Contudo, ainda que comprovada tal ligação, tenho que tal fato não é suficiente para demonstrar o interesse de Raul na lide. A testemunha é médico, ocupando vaga em virtude de concurso público, não havendo razões para que se conclua, sem sombra de dúvidas, pelo seu interesse na causa.

Além disso, a simples filiação partidária não consiste, necessariamente, em causa de suspeição. Nesse sentido, trago ementa do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais:

Recursos eleitorais. Ação de investigação judicial eleitoral. Arts. 30-A, 41-A e 73, I e § 10, da Lei nº 9.504/1997, e art. 22 da Lei Complementar nº 64/1990. Eleições de 2012. Prefeito e Vice-Prefeito eleitos. Julgamento de parcial procedência pelo Juízo a quo. Reconhecimento de captação ilícita de sufrágio, conduta vedada e abuso de poder econômico. Cassação de diploma, imposição de multa e declaração de inelegibilidade por 8 (oito) anos. 1º Recurso. (Interposto pelos investigados). Agravo retido. Contra o indeferimento de contraditas a testemunhas do investigante. Alegação de cerceamento de defesa. Não acolhimento. Produção de prova documental e indeferimento de prova testemunhal da contradita. Possibilidade de indeferimento de provas consideradas desnecessárias pelo Juízo. Decisão devidamente fundamentada. Inteligência do art. 130 do CPC. Alegação de existência de motivos para o deferimento das contraditas. Afastada. Não caracterização, in casu, das causas de suspeição.

[...]

1ª testemunha. A filiação a partido político e a suposta participação em atos de campanha não consistem em causas de suspeição. Não demonstração de benefício direto da testemunha com o resultado da demanda. Interesse no litígio não configurado. Divergências políticas não indicativas de inimizade capital.

[…]

Não configuração das hipóteses previstas no art. 405 do CPC. Manutenção do indeferimento das contraditas. Agravo a que se nega provimento.

[…]

(TRE-MG – RE 609-61, Rel. Geraldo Augusto de Almeida, julgado em 08.05.2014, publicado no DJEMG em 02.6.2014) (Grifei.)

Em relação à testemunha Renato Graf, de igual modo não vejo motivos para alterar a decisão da magistrada, indeferindo a contradita.

Segundo o recorrido, Renato é filiado ao PMDB, partido do representado Gilberto Pedro Hammes, e ocupa o cargo de Diretor de Pessoal da Prefeitura Municipal de São José de Inhacorá, circunstâncias que demonstrariam o evidente interesse da testemunha em que o deslinde da causa se dê favoravelmente aos representados.

Entretanto, trata-se de servidor público ocupante, como já mencionado, do cargo de Diretor de Pessoal, sendo as informações por ele prestadas de grande relevância para a compreensão dos fatos, visto que ao setor de pessoal cabe administrar os registros dos servidores, dentre os quais o relativo à aquisição e fruição do direito constitucional de férias.

E tal como já exemplificado pelo julgado do TRE mineiro, a filiação a partido político e a suposta participação em atos de campanha não consistem em causas de suspeição.

Cabe ainda registrar que o deslinde da causa é de relevante interesse público, motivo pelo qual cabe ao juiz, como destinatário da prova, examinar a pertinência da sua produção. E, no caso, a decisão que rejeitou a contradita oferecida pelo representante contra as aludidas testemunhas arroladas pelos representados, resultou da livre, prudente e direta convicção da magistrada a quo.

Saliento que, mesmo que se pudesse constatar o interesse da testemunha na demanda, o depoimento poderia ser tomado sem o compromisso, conforme dispõe a parte final do § 2º do art. 457 do Código de Processo Civil.

Ademais, após a advertência realizada pela magistrada de que “incorre em sanção penal quem faz afirmação falsa, cala ou oculta a verdade” (CPC, art. 458, parágrafo único), as testemunhas prestaram compromisso, nos termos do caput do referido artigo.

Assim, pelos motivos expostos, mantenho a decisão da magistrada indeferindo a contradita das mencionadas testemunhas.

 

2. Mérito

A Magistrada da 89ª Zona Eleitoral, Dra. Elaine Aparecida Resende Lopes, na sentença de fls. 249-258, entendeu que o representado Eliseu João Redel Schenkel, na condição de prefeito de São José do Inhacorá, teria praticado abuso de poder político consistente na concessão de férias a servidores municipais a fim de que estes trabalhassem na campanha em prol dos demais representados, Gilberto Pedro Hammes (PMDB) e Eduardo Ludwig (PT), candidatos da coligação formada pelo PMDB-PT-PP-PTB, eleitos, respectivamente, a prefeito e vice daquele município.

Os recorrentes entendem que a decisão de primeiro grau foi equivocada pois, em sua visão, a concessão de férias aos servidores públicos municipais se deu em estrita observância aos períodos aquisitivos, não sendo comprovado eventual prejuízo às atividades daquele ente municipal. Referem, ainda, que não cabe à administração municipal estabelecer o que os servidores devem ou não fazer em seus períodos de férias, não podendo os gestores serem responsabilizados por condutas praticadas na órbita privada dos funcionários nos momentos de descanso destes. Desse modo, sustentam a legalidade da concessão de férias aos servidores municipais, não havendo abuso de poder em tais atos administrativos.

Adianto que, após cuidadoso exame do conjunto probatório, concluí pelo provimento do apelo, pois entendo que os atos de concessão de férias aos servidores públicos da Prefeitura Municipal de São José do Inhacorá, ainda que durante o período da campanha eleitoral, não configuraram abuso de poder e, tampouco, hipótese de conduta vedada prevista nos incs. I, III e IV do art. 73 da Lei n. 9.504/97.

Antes de adentrar na análise dos fatos e das provas dos autos, cumpre tecer algumas considerações teóricas sobre os temas trazidos.

O abuso de poder político está previsto no art. 22 da Lei Complementar n. 64/90, cujo teor segue:

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito.

Trata-se de instituto de textura aberta, não sendo definido por condutas taxativas, mas pela sua finalidade de impedir condutas e comportamentos que extrapolem o exercício regular e legítimo da capacidade econômica e de posições públicas dos candidatos, capazes de causar indevido desequilíbrio ao pleito.

A respeito do tema, trago a doutrina de Carlos Velloso e Walber Agra:

O abuso de poder econômico e do político é de difícil conceituação e mais difícil ainda sua transplantação para a realidade fática. O primeiro é a exacerbação de recursos financeiros para cooptar votos para determinado(s) candidato(s), relegando a importância da mensagem política. O segundo configura-se na utilização das prerrogativas auferidas pelo exercício de uma função pública para a obtenção de votos, esquecendo-se do tratamento isonômico a que todos os cidadãos têm direito, geralmente com o emprego de desvio de finalidade (Elementos de Direito Eleitoral. 2. ed. 2010, p. 377).

Considerando que o abuso preserva de forma direta a legitimidade do pleito, será ilícita apenas aquela conduta potencialmente tendente a afetá-la. A quebra da normalidade do pleito está vinculada à gravidade da conduta capaz de alterar a simples normalidade das campanhas, sem a necessidade da demonstração de que sem a prática abusiva o resultado das urnas seria diferente. É o que dispõe o art. 22, inc. XVI, da Lei Complementar n. 64/90:

Art. 22.

[…]

XVI - para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam.

E nesse sentido bem esclarece a doutrina de José Jairo Gomes:

É preciso que o abuso de poder seja hábil a comprometer a normalidade e a legitimidade das eleições, pois são esses os bens jurídicos tutelados pela ação em apreço. Deve ostentar, em suma, a aptidão ou potencialidade de lesar a higidez do processo eleitoral. Por isso mesmo, há mister que as circunstâncias do evento considerado sejam graves (LC n. 64/90, art. 22, XVI), o que não significa devam necessariamente alterar o resultado das eleições.

Nessa perspectiva, ganha relevo a relação de causalidade entre o fato imputado e a falta de higidez, anormalidade ou desequilíbrio do pleito, impondo a presença de liame objetivo entre tais eventos (Direito Eleitoral. 12. ed. 2016, p. 663).

No mesmo norte, a Lei n. 9.504/97 traz capítulo específico sobre as condutas vedadas aos agentes públicos durante a campanha eleitoral, na formulação trazida nos arts. 73 a 78, trazendo à inicial fatos que se enquadrariam, em tese, no art. 73, incs. I, III e IV, a seguir transcritos:

Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:

I - ceder ou usar, em benefício de candidato, partido político ou coligação, bens móveis ou imóveis pertencentes à administração direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, ressalvada a realização de convenção partidária;

[…]

III - ceder servidor público ou empregado da administração direta ou indireta federal, estadual ou municipal do Poder Executivo, ou usar de seus serviços, para comitês de campanha eleitoral de candidato, partido político ou coligação, durante o horário de expediente normal, salvo se o servidor ou empregado estiver licenciado;

IV - fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo Poder Público.

Aqui, o bem jurídico tutelado segue sendo a isonomia entre os concorrentes ao pleito, como bem discorre Rodrigo López Zilio:

Em verdade, pode-se conceituar os atos de conduta vedada como espécies de abuso de poder político que se manifestam através do desvirtuamento dos recursos materiais (incisos I, II, IV e §10º do art. 73 da LE), humanos (incisos III e V do art. 73 da LE), financeiros (inciso VI, a, VII e VIII do art. 73 da LE) e de comunicação (inciso VI, b e c do art. 73 da LE) da Administração Pública (lato sensu).

[...]

O bem jurídico tutelado pelas condutas vedadas é o princípio da igualdade entre os candidatos. Assim, despiciendo qualquer cotejo com eventual malferimento à lisura, normalidade ou legitimidade do pleito. Basta, apenas, seja afetada a isonomia entre os candidatos; nada mais. Neste sentido, aliás, o próprio caput do art. 73 da LE prescreve que são condutas vedadas porque “tendentes” a afetar a igualdade entre os candidatos. Ou seja, o legislador presume que tais condutas, efetivamente, inclinam-se a desigualar os contendores.

Do exposto, a prática de um ato previsto como conduta vedada, de per si e em regra – salvo fato substancialmente irrelevante – é suficiente para a procedência da representação com base no art. 73 da LE, devendo o juízo de proporcionalidade ser aferido, no caso concreto, para a aplicação das sanções previstas pelo legislador (cassação do registro ou do diploma, multa, suspensão da conduta, supressão dos recursos do fundo partidário) (Direito Eleitoral. 3. ed. Porto Alegre: Editora Verbo Jurídico, 2016, p. 502-503). (Grifei.)

Contudo, mostra-se de grande importância ressaltar que as hipóteses relativas às condutas vedadas são taxativas e de legalidade restrita, pois “a conduta deve corresponder ao tipo definido previamente” (Recurso Especial Eleitoral n. 24.795, Rel. Luiz Carlos Madeira).

Pois bem.

Na presente ação os representantes alegaram que a conduta do médico concursado da prefeitura de São José do Inhacorá, Dr. ALEXANDRE VAZ FERREIRA, bem como a concessão indiscriminada de férias aos servidores públicos daquele município, consistiram em abuso de poder político e de autoridade, desequilibrando a disputa ao executivo municipal daquela localidade no pleito de 2016.

O demandante alegou que Alexandre elegeu-se prefeito na gestão de 2009 a 2012, através do PMDB, e ao final de seu mandato, envidou esforços para eleger o seu sucessor, Eliseu Schenkel, para o mandato de 2013 até 2016. Nas eleições de 2016, Alexandre teria buscado dar continuidade a seu projeto, envidando esforços para eleger Gilberto e Eduardo. Segundo o representante, Alexandre teria utilizado seu cargo de médico servidor do município para se perpetuar num projeto político pessoal e partidário, que inclusive contemplaria sua esposa no cargo de secretária municipal de Assistência Social, Trabalho e Habitação há vários anos. Alega que, com a condescendência do prefeito à época dos fatos (Eliseu), Alexandre utilizou o seu trabalho nos postos de saúde do município para fazer campanha política, inclusive durante o horário de expediente.

Além disso, o representante alegou que durante o período de campanha eleitoral a prefeitura de São José do Inhacorá “praticamente fechou”, pois foram concedidas férias aos servidores com o intuito de que trabalhassem na campanha política de Gilberto e Eduardo.

Em sua defesa, os representados alegaram que Alexandre apenas manifestou sua opinião política nos termos do que prevê a Constituição, não tendo realizado campanha política em seu ambiente de trabalho.

Em relação aos servidores que fruíram períodos de férias durante a campanha eleitoral, os demandados esclareceram que os funcionários tinham direito adquirido decorrente do transcurso completo do período aquisitivo e que não haveria motivo para a não concessão das férias, as quais não teriam sido autorizadas com a intenção de que os servidores realizassem campanha política para Gilberto e Eduardo.

Do conjunto probatório reunido aos autos, formado por documentos e testemunhos, foi possível concluir pela regularidade dos atos administrativos de concessão de férias. Vê-se que o benefício foi concedido somente àqueles servidores que haviam completado o período aquisitivo, situação que se encontra ao amparo da lei. Somado a isso, pelos documentos juntados às fls. 74-108, bem como pela prova oral colhida na fase instrutória, verificou-se que a quantidade de servidores que fruíram férias no período da campanha eleitoral de 2016 (meses de julho, agosto e setembro) foi semelhante ao número de funcionários que gozaram do benefício na mesma época nos anos de 2012 a 2015.

Ademais, cabe ressaltar que não tiraram férias apenas servidores ocupantes de cargos de confiança, mas também concursados, cuja estabilidade lhes garantiria a permanência nos respectivos postos ainda que o resultado da eleição fosse diverso.

E quanto ao fato dos servidores públicos terem feito campanha eleitoral durante o período de fruição de férias, é importante ressaltar que não há qualquer vedação em relação a isto.

O que a lei veda é que servidores públicos, no exercício de suas funções, façam campanha durante o horário de expediente.

Assim, para que se comprovasse a caracterização da conduta vedada trazida na Lei n. 9.504/97, caberia ao representante provar que os servidores públicos ou estavam trabalhando em campanha eleitoral no horário de expediente ou não estavam de férias no período em que se engajaram em determinada campanha.

No caso, o recorrido não se desincumbiu de comprovar o fato caracterizador do ilícito eleitoral, nem demonstrou, com base na relação com o horário de expediente de servidores, que estes estariam trabalhando em período vedado.

Tal situação já foi inclusive objeto de consulta formulada junto ao Tribunal Superior Eleitoral (CTA n. 1.096 – Resolução TSE n. 21.854 – Rel. Min. Luiz Carlos Madeira – publicada em 06.8.2004), tendo aquela Corte respondido afirmativamente à seguinte questão:

À vista do inciso III, do art. 73, da Lei n. 9.504/97, indaga-se:

Podem servidores públicos municipais em férias remuneradas, trabalhar em comitês eleitorais? (Grifei.)

E o entendimento voltou a ser recentemente ratificado nos autos do Recurso Ordinário n. 191942, de 16.9.2014, de relatoria do Min. Gilmar Ferreira Mendes, no qual restou assentada a possibilidade de servidor público participar da campanha eleitoral, desde que esteja de licença/férias ou não esteja em horário de expediente.

Por fim, não restou comprovado que tenha havido qualquer tipo de pressão ou orientação da Administração Municipal no sentido de que os servidores deveriam tirar suas férias no trimestre anterior ao pleito para fazer campanha eleitoral. A prova foi justamente no sentido contrário, visto que diversos servidores informaram que foram orientados a evitar práticas que pudessem ser caracterizadas como condutas vedadas.

Assim, desde que de licença, em gozo de férias, ou não esteja em horário de expediente, pode o servidor público participar de campanha eleitoral.

Portanto, não restou configurada ilegalidade na concessão de férias aos servidores municipais no trimestre anterior à data do pleito, pois demonstrada a regularidade dos atos administrativos que levaram em conta o período aquisitivo. Também foi possível concluir que o período de fruição e o número de servidores que gozaram do benefício não destoou dos anos anteriores (2012 a 2015). Por outro lado, o representante não logrou êxito em comprovar que a fruição das férias pelos referidos funcionários tenha causado prejuízo aos serviços públicos prestados pelo município.

Do mesmo modo, o conjunto probatório não foi conclusivo em comprovar que o médico concursado Alexandre Vaz Ferreira realizou campanha eleitoral durante o horário de expediente, no exercício de suas funções e/ou utilizando-se das instalações públicas do município.

Não se desconhece que Alexandre foi bastante citado na prova oral colhida em juízo, contudo, cabe registrar que o fato de que tenha ou não referido que pretendia deixar o município caso a chapa majoritária dos representados não fosse eleita, não constitui aptidão para caracterizar abuso de poder político e de autoridade e/ou conduta vedada.

E cabe ressaltar, tal como fez a representante do Ministério Público Eleitoral de piso, a Promotora de Justiça Carolina Zimmer (fls. 239-247), que as declarações das testemunhas de ambas as partes devem ser analisadas com extrema cautela, pois:

[...] além de a maioria ter filiação partidária, duas testemunhas dos representantes trabalham na São José Industrial, empresa na qual a família do candidato a VicePrefeito de São José do Inhacorá da oposição é proprietária e na qual ele próprio labora, além de uma ser filha de candidato a Vereador da oposição; já por parte dos representados, todos trabalham na Prefeitura Municipal de São José do Inhacorá […].

Quanto à alegação de que Alexandre, por tirar férias no período eleitoral, tenha deixado desassistida parte de seus pacientes, entendo desarrazoada.

É natural que em virtude das características pessoais de cada médico, assim como da simpatia de certos pacientes em relação a este, possa haver uma certa preferência em relação a certo profissional, contudo, tal circunstância não pode, de forma alguma, ser interpretada como uma “proibição” de que aquele servidor goze de seu direito constitucional às férias remuneradas. Cabe à Administração, nessas situações, substituir o profissional de forma adequada e eficaz. E no caso dos autos, não restou provado que a população tenha ficado desassistida, pois havia outros profissionais da saúde à disposição dos pacientes.

Desse modo, concluo que os fatos objeto da presente representação não resultaram na quebra de isonomia entre os candidatos que disputaram o pleito majoritário no Município de São José do Inhacorá nas eleições de 2016, não caracterizando-se como abuso de poder político e/ou de autoridade, e tampouco enquadrando-se nas condutas vedadas delineadas no art. 73, incs. I, III e IV, da Lei n. 9.504/97, motivo pelo qual deve ser provido o recurso ora examinado, reformando-se a sentença condenatória de primeiro grau.

E na mesma linha é o parecer do ilustre Procurador Regional Eleitoral que, ratificando o entendimento do Ministério Público de piso, assim concluiu (fls. 332-337v.):

A situação dos autos, portanto, não nos remete à quebra de isonomia entre os candidatos e à violação dos bens jurídicos presentes no art. 14, §9º, da Constituição Federal, e no art. 22 da LC n. 64/90, razão pela qual merece provimento o recurso, devendo ser reformada a sentença, a fim de ser afastada a condenação dos representados pela prática de abuso de poder político e de autoridade.

 

3. Dispositivo

 Ante o exposto, VOTO por afastar as prefaciais e, no mérito, pelo provimento do apelo, julgando improcedente a ação judicial eleitoral.

É como voto, senhora Presidente.