RE - 55132 - Sessão: 26/04/2017 às 17:00

RELATÓRIO

Trata-se de recurso interposto pelo Ministério Público Eleitoral contra a sentença (fls. 211-217) que julgou improcedente a ação de investigação judicial eleitoral ajuizada contra CEZAR DE PELEGRIN, ODAIR DA CRUZ, LEOCRÉCIO TRÊS, ADEMAR FACCO e VILMAR BINSFELD, considerando que o acerto para ameaçar eleitores da coligação adversária durou pouco tempo, e foi incapaz de prejudicar o equilíbrio do pleito.

Em suas razões recursais (fls. 231-237), o MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL argumenta que a gravação ambiental demonstra a ilicitude da conduta dos recorridos. Aduz ser abusiva a contratação de pessoas para realizar ameaças e intimidar apoiadores de adversários políticos. Sustenta que a pessoa responsável pela gravação ambiental confirmou a realização de acertos para ameaças, inclusive com arma de fogo, contra apoiadores adversários. Afirma que a prova testemunhal confirma a efetiva ameaça a alguns eleitores. Requer a reforma da decisão, a fim de se julgar procedentes os pedidos formulados na inicial.

Com as contrarrazões (fls. 240-249), nesta instância, a Procuradoria Regional Eleitoral manifestou-se pelo provimento do recurso (fls. 269-276).

É o relatório.

 

VOTOS

Dr. Jamil Andraus Hanna Bannura (relator):

Preliminarmente, o recurso é tempestivo, pois interposto dentro do tríduo legal estabelecido no art. 258 do Código Eleitoral. O recorrente foi intimado no dia 12.12.2016 (fl. 228) e o recurso, interposto no dia 14 do mesmo mês.

No tocante à gravação ambiental, na linha dos precedentes desta Corte e do egrégio Supremo Tribunal Federal, a prova deve ser admitida.

Emílio Tigre de Oliveira realizou as gravações das conversas travadas com os representados sem o conhecimento dos demais interlocutores.

Inicialmente, as gravações não foram obtidas por meio de interceptação telefônica, meio de prova no qual terceiro estranho aos interlocutores capta a conversa, e que está efetivamente sujeito à reserva judicial, por força do art. 5º, inc. XII, da CF.

Ao contrário, houve a gravação por um dos interlocutores sem o conhecimento dos outros. Nesta hipótese, não há que se falar em necessidade de autorização judicial, pois não há interceptação, e sim gravação por um dos envolvidos no diálogo. Em casos assim, o próprio conteúdo da gravação pode estar submetido à tutela da intimidade ou privacidade, nos termos do art. 5º, inc. X, da Constituição Federal, quando a conversa versar sobre temas que mereçam a proteção desses direitos fundamentais constitucionais.

Nessas hipóteses, de tutela especial da intimidade, nem mesmo o interlocutor poderia testemunhar sobre a conversa, pois o direito fundamental à intimidade preserva o seu conteúdo propriamente dito, e não a gravação. Excepcionadas tais situações, é perfeitamente possível a gravação de conversas por um dos interlocutores, conforme já definiu o egrégio Supremo Tribunal Federal, em regime de repercussão geral, como se extrai da seguinte ementa:

Ação penal. Prova. Gravação ambiental. Realização por um dos interlocutores sem conhecimento do outro. Validade. Jurisprudência reafirmada. Repercussão geral reconhecida. Aplicação do art. 543-B, § 3º, do CPC. É lícita a prova consistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro. (RE 583.937-QO-RG, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 19-11-2009, Plenário, DJE de 18-12-2009.)

No caso dos autos, as gravações foram realizadas por Emílio Tigre de Oliveira em situação na qual não se justifica nenhuma proteção especial à sua intimidade. A conversa foi realizada na casa de terceiros, e, como explicitou Emílio ao ser ouvido em juízo, a gravação tinha o objetivo de protegê-lo, caso os representados não lhe pagassem o preço ajustado na avença feita.

Lícita, portanto, a gravação juntada aos autos, conforme pacífica posição desta Corte:

Ação Penal. Imputação da prática do crime de corrupção eleitoral. Artigo 299 do Código Eleitoral. Eleições 2012.

Competência originária deste Regional para o julgamento, em razão do foro privilegiado por prerrogativa de função.

Matéria preliminar afastada. Licitude da gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem conhecimento do outro. Entendimento sedimentado em sede de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal. Não evidenciada a inépcia da inicial, vez que clara a descrição dos fatos.

Distribuição de cestas básicas a eleitores em troca de voto. Conjunto probatório frágil quanto à compra de votos narrada na inicial. Prova testemunhal contraditória, embasada em depoimentos de eleitores comprometidos com adversário político, que não conduz à certeza acerca da materialidade dos fatos alegados. Imprescindível, para um juízo de condenação na esfera criminal, a verdade material, alcançada por meio da produção de provas do fato e da respectiva autoria.

Improcedência.

(Ação Penal de Competência Originária nº 46366, Acórdão de 02/12/2015, Relator(a) DES. FEDERAL PAULO AFONSO BRUM VAZ, Publicação: DEJERS - Diário de Justiça Eletrônico do TRE-RS, Tomo 223, Data 04.12.2015, Página 4).

Reafirmo, assim, a licitude da gravação trazida aos autos.

Quanto aos fatos, segundo narra a inicial, os representados combinaram com Emílio Tigres de Oliveira que este deveria ameaçar eleitores de adversários políticos dias antes do pleito. Em troca, receberia dos representados, caso fossem eleitos, benesses, consistentes em uma bateria de automóvel, dinheiro, combustível e futuro emprego, conduta supostamente caracterizadora de abuso de poder econômico.

O abuso de poder econômico e político, está previsto no art. 22 da Lei Complementar n. 64/90, cujo teor segue:

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito.

O abuso de poder é instituto de textura aberta, não sendo definido por condutas taxativas, mas pela sua finalidade de impedir condutas e comportamentos que extrapolem o exercício regular e legítimo da capacidade econômica e de posições públicas dos candidatos, capazes de causar indevido desequilíbrio ao pleito.

A respeito do tema, cite-se a doutrina de Carlos Velloso e Walber Agra:

O abuso de poder econômico e do político é de difícil conceituação e mais difícil ainda sua transplantação para a realidade fática. O primeiro é a exacerbação de recursos financeiros para cooptar votos para determinado(s) candidato(s), relegando a importância da mensagem política. O segundo configura-se na utilização das prerrogativas auferidas pelo exercício de uma função pública para a obtenção de votos, esquecendo-se do tratamento isonômico a que todos os cidadãos têm direito, geralmente com o emprego de desvio de finalidade (Elementos de Direito Eleitoral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 377).

Na hipótese, as gravações trazidas aos autos dão conta de que Ademar Facco, conhecido como Ademarão, e o candidato a vice-prefeito, Leocrécio Três, vulgo Neco, acertaram o pagamento de R$ 500,00 por semana, mais combustível, para que Emílio Tigres prestasse serviço de segurança às suas campanhas.

Tal serviço consistia em afugentar apoiadores da campanha adversária e ameaçar eleitores.

No áudio juntado na folha 35 dos autos, Ademarão fala a Emílio: “principalmente nós vamos fazer umas campanhas de dia e se alguém andar banderiando lá, e incomodando, na verdade, a gente vai comunicar e tu desce...senão não desce, desce de noite lá” (1min30seg).

Os interlocutores acertaram que uma pessoa chamada Claudininho ficou responsável por verificar como os adversários estavam se comportando. Ademarão, na sequência, passa instruções a Emílio: “Chega de noite, dá uma passadinha no Claudininho, que ele vai ficar meio na noite lá também vendo o que eles tão fazendo ou não fazendo. Se ele dizê que tão lá, que tem que ir lá dar uma apertada você pode ir” (2min04seg).

Em outra passagem, Neco e Ademarão conversam sobre o modo de atuação de Emílio (3min45seg):

Leocrécio Três: Nóis queremo pegar o cara...

Ademarão: E hoje vai dar certo...Se tiver emblema do Telmo...ali perto da cidade...perto da capoeira tu vai ter que deixar um...se tiver emblema do Telmo...deixa ali...se chegar numa altura tu pega e ataca.

Em outra oportunidade, Ademarão fala a Emílio de uma pessoa que deve ser ameaçada, pois estava falando com eleitores de determinada localidade:

Eu vou pedir pro Claudininho pra ele te dar a real de um cara que você tem que dar um cagação. Ele vem de manhã pra Cristal e fica politicando ali, sai pros interior e de noite ele volta. O Azevedo me colocou que sempre desce a meia-noite todo dia. […] Então você tem que acompanhar ele...e levar e daí largar num lugar que não pegue casa perto e largar umas pipoca em cima dele, que ele vai se assustar e não vem mais pra cidade (7min13seg).

Ao final da conversa, Ademarão questiona se Emílio não teria uma arma de fogo para emprestar para Claudininho (10min11seg):

Ademarão: Ó o que eu vou te dizer, tu não tem uma arminha assim, pode ser meio fininha pra ajeitar pro Claudininho?

Emílio: 38?

Ademarão: Tem que ajeitar pra aquele homem lá. Ele já teve ontem de noite, foi lá onde nós tava, atrás de nós e de Mário, e sem nada aquele homem…

[…]

Emílio: […] Pro Claudininho eu arrumo sim.

Ademarão: Faz o seguinte então, vai lá hoje de noitinha e deixa lá pra ele um.

Emílio: Tá bom. Pode deixar.

Na instrução, Emílio de Oliveira confirmou o conteúdo da gravação, e afirmou que Cezar De Pelegrin, vulgo Mano, lhe procurou para trabalhar como segurança de sua campanha, e que acertou detalhes de pagamento e atuação com Neco e Ademarão. Afirmou ainda ter recebido orientação de Ademarão para não deixar nenhuma pessoa da coligação adversária chegar perto da região onde localizada a residência de Claudininho, e para “dar uns tiros por cima” de uma pessoa identificada como Javali.

Asseverou ter conversado uma única vez com Mano, com quem acertou fazer o serviço de segurança de sua campanha, sendo os demais detalhes acertados com Neco e Ademarão.

Pelo contexto probatório, extrai-se que os representados contrataram Emílio de Oliveira para ameaçar apoiadores políticos adversários, com o intuito de evitar seu contato com eleitores dos representados.

Apesar do conteúdo violento da conversa gravada, que refere a distribuição de armas, ameaças e agressões a determinados eleitores, os autos não evidenciam que tais atos tenham sido efetivamente praticados.

Emílio afirmou ter trabalhado poucos dias para a campanha, circulando de carro, especialmente a noite, sem ter realizado nenhum ato contra “Javali”, nem entregado a arma de fogo para Claudininho.

Os demais atos de ameaça que foram mencionados no decorrer da instrução também não se afiguram graves o suficiente para prejudicar a legitimidade do pleito.

Ainda segundo a prova testemunhal, Cezar De Pelegrin teria ameaçado denunciar Tiago Danielli por fazer salame e vender a sobra sem possuir autorização para tanto, e tirar a residência de Carminda Pinheiro, caso ambos não votassem nele.

O juízo de primeiro grau, entretanto, bem afastou a força probatória dos testemunhos, pois os eleitores possuíam ligação com a campanha adversária e encaminharam as denúncias por meio da advogada Ana Paula, que trabalhava para os seus adversários políticos.

Reproduzo a seguinte passagem da sentença, que bem analisa a prova produzida (fls. 216-217):

Com relação à suposta ameaça de “denunciar” o eleitor Tiago, sublinho que o informante Tiago afirmou ser contrário à candidatura do requerido Cezar, inclusive declarando que fazia campanha eleitoral para a chapa adversária a dos requeridos sem receber qualquer contraprestação remuneratória, deixando nítido o seu interesse no desfecho da presente ação. Ainda, que a declaração por ele assinada foi confeccionada pela advogada Ana Paula Alves, advogada da chapa adversária. Essas circunstâncias impõem ressalvas na valoração do seu depoimento. Quanto ao teor da ameaça em si, jamais pode caraterizar abuso do poder econômico tampouco de autoridade porque denunciar o ilegal exercício da atividade, confessamente desempenhada pelo depoente, é um dever do requerido.

Chama a atenção o fato de que o depoente se dispõe a vir perante a Juíza e o Promotor de Justiça para confirmar a prática de um ato ilícito sem qualquer receio de punição.

De fato, a testemunha Carminda, em juízo, referindo-se ao representado Cezar, declarou que: “ele me disse assim, se a Senhora não votar pra mim eu não lhe dou a casa”.

Entretanto, o seu depoimento deve ser valorado com ressalvas. Em primeiro lugar, merece destaque que, no início do seu depoimento, ela se declara filiada ao PT ou ao PP, sem saber precisar qual dos dois. Só sabe que é PP ou PT. Sublinho que essas duas agremiações se aliaram em coligação para concorrer à chapa majoritária adversária aos representados nas eleições municipais, o que aponta certo interesse da depoente com o deslinde da ação. Ainda, a testemunha confirma que quem redigiu a declaração da fl. 51, por ela subscrita, foi a Dra. Ana Paula Alves que é a advogada da chapa adversária aquela formada pelos requeridos. Quem a trouxe para prestar depoimento na audiência foi Felipe Schumaher, que é de conhecimento público ter se eleito vereador pelo PP no mesmo Município.

Admite também que quem lhe prometeu a casa foi o Prefeito anterior e que já tinha obtido a respectiva escritura pública dois anos antes da suposta ameaça que lhe foi dirigida pelo réu Cezar.

Destaco que a depoente não reside na casa em questão, mas em outra, o que mostra que, ainda que a perdesse, não ficaria desamparada.

Por último, a suposta ameaça não lhe surtiu qualquer efeito de intimidação, conforme ela mesma declara.

Tal fato, ainda que se admita verdadeiro, não configura abuso do poder econômico, consoante sustenta o Ministério Público, porque a promessa da casa foi realizada pelo anterior candidato.

Nem sequer de abuso de autoridade pode se cogitar porque perante a administrada o ato não representou qualquer seriedade (fls. 216-217).

Registre-se, ainda, a percuciente análise realizada na sentença quanto à eficácia da ameaça realizada à Carminda Pinheiro. A eleitora já havia obtido a escritura pública de sua residência quando sofreu a ameaça e sequer residia no local na campanha de 2016. Ademais, como afirmou a própria testemunha, não sentiu-se ameaçada pela abordagem, mantendo o voto no candidato de sua preferência.

Tal circunstância evidencia a ineficácia da ameaça supostamente realizada por Cezar De Pelegrin, e, além do fato de envolver um único eleitor, foi incapaz de prejudicar a livre escolha política da eleitora.

Por fim, os demais elementos não demonstram de forma suficientemente segura a prática de atos abusivos pelos representados.

A conversa travada pelo aplicativo WhatsApp, reproduzida pelos documentos das folhas 30 a 31, na qual um dos interlocutores se diz irritado com terceiros que teriam “dado tiros” contra ele, não foi esclarecida. Não se pode identificar quem efetivamente era o interlocutor nem a veracidade dos fatos referidos. Emílio, embora reconheça que o número de telefone é seu, afirma desconhecer a conversa.

As ocorrências policiais, dando conta de pneus incendiados à noite, obstrução de via pública com árvores, disposição de pedras e miguelitos, e disparos de armas de fogo não puderam ser devidamente esclarecidas pelas diligências policiais (fls. 08-19, 130-135, 150). Ademais, a instrução não tratou de qualquer desses fatos, não havendo elementos suficientes para imputá-los aos representados.

Dessa forma, em que pese o teor da conversa gravada, na qual foram acertadas ameaças a eleitores e atos de violência contra apoiadores políticos adversários, não há prova nos autos de que tal acerto tenha saído do plano da intenção e posto em efetiva prática.

Não há notícias de violência contra apoiadores políticos, e as ameaças apuradas na instrução, além da incapacidade de intimidar os eleitores, advêm de denúncias realizadas por pessoas envolvidas com a oposição.

A depredação e obstrução de vias públicas e tiros a esmo registradas pela polícia não foram suficientemente apuradas nestes autos e não podem ser atribuídas aos representados.

Assim, verifica-se inexistir provas suficientes a respeito do alegado abuso de poder imputado aos representados, tendo em vista a ausência de elementos apontando atos concretos de ameaças e violência capazes de macular a legitimidade do pleito.

 

DIANTE DO EXPOSTO, VOTO pelo desprovimento do recurso, mantendo a sentença de improcedência da ação.

 

(Após votar o relator, negando provimento ao recurso, pediu vista o Dr. Losekann. Demais julgadores aguardam.)