RC - 4215 - Sessão: 12/12/2016 às 17:00

RELATÓRIO

Trata-se de recurso em processo-crime eleitoral interposto por ANDERSON VAZ PORCIÚNCULA contra decisão da Juíza Eleitoral da 7ª Zona, que condenou o recorrente pelo delito de transporte de eleitores, tipificado no art. 11, inc. III, c/c art. 5º, da Lei n. 6091/74, em razão do seguinte fato, assim descrito na denúncia (fl. 02):

No dia 05 de outubro de 2014, dia da eleição, por volta de 14h30min, neste Município, o denunciado ANDERSON, um dos coordenadores da campanha do candidato “Lelinho” a Deputado Estadual, conduzindo o veículo Ford Fiesta, de placas KXZ-2284, transportou os eleitores CARLA LUISA FREITAS COSTA FAGUNDES e CRISTIANO MARTINS SILVEIRA e seus locais de votação, com intuito de aliciamento de voto.

Assim agindo, o denunciado ANDERSON incorreu nas sanções do artigo 11, III, da Lei n. 6091/1974, razão pela qual o Ministério Público Eleitoral oferece a presente denúncia, requerendo a oitiva das testemunhas adiante arroladas, interrogatório do denunciado, preenchidas as demais formalidades legais, até final condenação.

Recebida a denúncia em 19.8.2015 (fl. 139), o acusado foi citado (fl. 141).

Após apresentada defesa prévia, foi realizada a instrução do feito, com oitiva das testemunhas (fl. 183, 215, 234-235) e o interrogatório do acusado (fl. 237).

Encerrada a instrução, as partes apresentaram alegações finais (fls. 251-256v. e 260-276).

Na sentença (fls. 286-296), o juízo entendeu provadas a materialidade e a autoria do delito de transporte irregular de eleitores, pois as testemunhas confirmaram a finalidade eleitoral da carona que receberam do réu. Condenou o acusado à pena de 4 (quatro) anos de reclusão e multa de 200 dias-multa, à razão de 1/30 do salário mínimo, substituindo a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos, consistentes na prestação de serviços à comunidade e multa no valor de 50 dias-multa à razão de 1/30 do salário mínimo.

Em suas razões recursais (fls. 305-326), o recorrente sustenta que a penalidade legal prevista é desproporcional à conduta prevista na lei, devendo-se demonstrar o aliciamento dos eleitores, circunstância inexistente nos autos. Argumenta que os supostos “santinhos” encontrados no interior do veículo não foram juntados aos autos, sendo inviável sua consideração para um juízo condenatório. Aduz que os testemunhos não esclarecem o dolo específico, sendo insuficientes para sustentar a condenação do recorrente. Afirma não haver provas da finalidade de aliciar eleitores por meio do transporte. Requer a reforma da decisão, com a sua absolvição.

Após contrarrazões (fls. 329-335), nesta instância, os autos foram em vista à Procuradoria Regional Eleitoral, que se manifestou pelo desprovimento do recurso (fls. 338-349v.).

É o breve relatório.

 

VOTOS

Dr. Jamil Andraus Hanna Bannura (relator):

Tempestividade

O recurso é tempestivo. O recorrente foi intimado da sentença em 13.7.2016 (fl. 297) e o recurso foi interposto no dia 25 do mesmo mês (fl. 305), primeiro dia útil após o término do prazo de dez dias estatuído no art. 362 do Código Eleitoral.

Mérito

Configuração do transporte de eleitores

No mérito, Anderson Vaz Porciúncula foi condenado por transporte irregular de eleitores, conduta tipificada no art. 11, inc. III, combinado com o art. 5º, ambos da Lei n. 6.091/74, nos seguintes termos:

Art. 11. Constitui crime eleitoral:

III - descumprir a proibição dos artigos 5º, 8º e 10:

Pena - reclusão de quatro a seis anos e pagamento de 200 a 300 dias multa (Art. 302 do Código Eleitoral)

 

art. 5º. Nenhum veículo ou embarcação poderá fazer transporte de eleitores desde o dia anterior até o posterior à eleição, salvo:

I - a serviço da Justiça Eleitoral;

II - coletivos de linhas regulares e não fretados;

III - de uso individual do proprietário, para o exercício do próprio voto e dos membros da sua família;

IV - o serviço normal, sem finalidade eleitoral, de veículos de aluguel não atingidos pela requisição de que trata o art. 2.

Resta incontroverso o transporte de Carla Luisa Freitas e Cristiano Martins Silveira no dia da eleição pelo acusado, o qual afirma a inexistência da intenção de aliciar os eleitores transportados.

Assentou o Tribunal Superior Eleitoral “firme orientação no sentido de que o tipo do art. 11, inc. III, da Lei n. 6.091/74 tem como elemento subjetivo específico a exigência de o transporte ser concedido com o fim explícito de aliciar eleitores” (Recurso Especial Eleitoral n. 305, Relator Min. Henrique Neves da Silva, DJE 22.10.2015).

Reconheço, portanto, a necessidade de dolo específico, ou seja, obter vantagem eleitoral com o transporte, influindo no ânimo do eleitor direta ou indiretamente, seja pelo fornecimento do favor, seja pelo fato implícito de que o transporte está sendo realizado em agrado de eleitores que se dirigem à urna, durante o pleito.

Também acredito que possa existir a carona desinteressada, especialmente em lugares mais afastados do centro do município, não enxergando em qualquer carona o fim eleitoral.

Assim, há necessidade de se fixarem elementos objetivos para a caracterização do dolo específico, que não pode ser a simples carona, como também não se pode exigir a prova material do pedido expresso de voto.

Entendo que outros elementos devem estar presentes no fato sob exame, haja vista ser impossível presenciar a conversa durante a carona quando, na maioria dos casos, o próprio eleitor nega o pedido eleitoral.

O primeiro é o envolvimento direto ou indireto do acusado no pleito eleitoral. Se o acusado está integrado de alguma forma na campanha eleitoral, obviamente durante o pleito continua trabalhando nela, prestando os favores necessários aos eleitores de modo a induzir ou criar simpatia ou favorecimento ao seu partido ou candidato.

No caso sob exame, o acusado Anderson Vaz trabalhava para a campanha de “Lelinho”, como admitiu em seu interrogatório:

Pelo juiz: eu tenho em mãos...é...uma denúncia de um crime eleitoral que é atribuído ao senhor. Fato ocorrido nas eleições de 2014. É...na oportunidade, com relação ao candidato Lelinho, que era candidato a deputado estadual, o senhor tinha alguma...alguma função na...na candidatura ali?

Pelo réu: minha função era fazer vídeo, durante toda a campanha, e registrar com fotos, né...de cuidar da rede social. Essa é minha função.

O segundo elemento a ser buscado, que me parece igualmente essencial, é a existência de propaganda eleitoral no veículo, o que indica que o carro estava a serviço da campanha do partido ou do candidato, descaracterizando, por completo, a carona despretensiosa.

Não se enquadrariam na hipótese meros adesivos no veículo, próprios de qualquer eleitor, mas material de propaganda eleitoral, como ocorreu no caso concreto, sendo irrelevante seu acesso imediato e sua existência no porta-malas do veículo, considerando, especialmente, a vedação na distribuição desse material nos locais próximos de votação.

Na hipótese, o auto de apreensão descreveu a existência de “aproximadamente 120 'santinhos' do candidato a Deputado Estadual LELINHO”, 04 (quatro) santinhos do referido candidato e mais 01 (um) santinho “encontrado dentro da carteira do conduzido” (fl. 37).

No contexto, o indicativo principal é o fato de que o veículo e o acusado estavam envolvidos na campanha eleitoral, razão pela qual forneceu o vedado transporte.

Somando-se os dois elementos mencionados, envolvimento na campanha eleitoral e existência de material de campanha no veículo, entendo que resta caracterizada a intenção clara do transporte realizado.

No caso, o testemunho prestado pelos eleitores transportados evidencia o dolo específico da conduta do acusado.

Carla Luísa Freitas afirmou conhecer o acusado, mas que nunca pegou carona com Anderson, embora já tivesse cruzado com ele pela rua em outras oportunidades. Asseverou ter pegado carona na rua Doutor Pena até próximo ao seu local de votação, onde foi novamente apanhada, para ser levada de volta à rua Doutor Pena. Ainda segundo a testemunha, durante o percurso o réu mencionou ter santinho do candidato, o qual foi recusado, pois Carla já levava propaganda do mesmo candidato consigo (fl. 187).

Cristiano Martins Silveira, o outro eleitor conduzido, afirmou que pediu carona ao réu para ser levado ao seu local de votação, o qual fica próximo à casa do acusado, sendo novamente conduzido para a sua casa, quando o veículo foi abordado pelos policiais (fl. 190).

Também o testemunho de Maurício Bueno atesta a finalidade eleitoral do transporte, afirmando que ele foi levado ao local de votação e, após votar, recebeu carona até a casa de sua namorada (fls. 217-218).

Assim, entendo que não houve mera carona, mas intencional transporte de eleitores, buscados pelo réu Anderson em diferentes locais para que votassem, e, novamente, levados para outras localidades, com o fim de obter vantagem eleitoral direcionada à campanha com o uso de veículo que continha material de propaganda, fato esclarecido de forma coerente pelos testemunhos.

Não consigo me convencer de que uma pessoa, trabalhando no dia das eleições com veículo que continha farto material, não tenha tratado do tema eleições no trajeto da carona com os ocupantes, com a finalidade de afetar-lhes a vontade, direcionando-a em benefício de seu candidato ou partido, em evidente lesão à legitimidade e normalidade do pleito eleitoral.

Em sua defesa, Anderson alega ter oferecido carona a conhecidos, pois encaminhava-se à sua casa; porém, a alegação não prospera, pois se depreende das provas produzidas que o acusado aguardou os eleitores votarem para conduzi-los, novamente, ao local onde foram apanhados.

Entendo, portanto, que o conjunto probatório indica claramente que Anderson Vaz estava trabalhando na campanha eleitoral e, no dia das eleições, utilizando-se do seu carro, proporcionou caronas aos eleitores que assim o desejassem, incorrendo na vedação do art. 11, inc. III, c/c os arts. 5º e 10º, da Lei n. 6.091/74.

 

Sanção a ser imposta

Caracterizado o delito, passo à análise da sanção legal estabelecida para a conduta.

Sobre a matéria, já tive oportunidade de manifestar meu entendimento no julgamento do Recurso Criminal n. 33-95, de relatoria do Dr. Leonardo Tricot Saldanha, sendo relatora para o acórdão a Dra. Gisele Anne Vieira de Azambuja.

Entendo que deve ser reconhecida a não recepção, pela Constituição Federal de 88, da pena mínima fixada ao tipo penal sob exame, em claro uso do controle difuso ou concreto da constitucionalidade da lei aplicada (art. 948 do CPC), visto que antecedente lógico e necessário à declaração judicial que se pretende.

O princípio da proporcionalidade exige que “entre as penas e na maneira de aplicá-las proporcionalmente, é mister, pois, escolher os meios que devem causar no espírito público a impressão mais eficaz e mais durável, e, ao mesmo tempo, menos cruel no corpo do culpado” (BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, p. 61-64; apud BOSCHI, José Antônio Paganella. Das Penas e seus Critérios de Aplicação. Ed. Liv do Advogado, 6. ed., 2013, p. 54). “Essa concepção iluminista voltada à proibição do excesso acabou sendo incorporada à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, cujo artigo 8º enuncia que: ‘a lei não deve estabelecer outras penas que não as estritas e necessárias’, tal qual propunha Beccaria no livro famoso, já referido” (idem, ibidem).

Em nosso direito constitucional, a fonte normativa da proporcionalidade é o princípio-garantia do devido processo legal, previsto no artigo 5º, inciso LIV, da CF, e vem sendo adotado como fundamento para impedir sentenças desalinhadas dos sentimentos de equidade e de justiça. (idem, ibidem).

 

O artigo 5º, inciso LIV, não é, entretanto, a única fonte constitucional do princípio da proporcionalidade, uma vez que a lei Maior, conforme bem explica Flávia D’Urso, apoiada em Paulo Bonavides, faz referência à proporcionalidade em muitos outros dispositivos, v. g. o artigo 5º, V, X, XXV; o artigo 7º, IV, V, XXI; o artigo 36, parágrafo terceiro; o artigo 37, IX, o artigo 40, e o artigo 84, parágrafo único (D’URSO, Flávia. Princípio Constitucional da Proporcionalidade no Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2007, p. 62; apud BOSCHI, op. cit.).

Tais garantias constitucionais exigem, na ordem de 1988, que as penalidades previstas guardem proporção com o delito praticado, evitando a imposição de penas contraditórias e desproporcionais com os demais delitos, o que se percebe claramente no caso concreto, ao compararmos a pena mínima para o delito de transporte de eleitores com todos os demais crimes previstos na legislação eleitoral, que mantém um ano como pena mínima.

O excessivo rigor na imposição da pena mínima atende questões históricas conhecidas de todos e se explica em uma época não mais existente. Disso decorre a necessidade de revisão que, não tendo sido feita pelo procedimento legislativo ordinário, deve ser consertada pelo controle incidental da norma permitido na composição plena desta Corte.

Luiz Carlos dos Santos Gonçalves (Crimes Eleitorais e Processo Penal Eleitoral, Ed. Atlas, 2. ed., p. 11-13) lembra que:

O Código Eleitoral é de 1965. Entrou em vigência em pleno fulgor do regime militar que se instalou no país no ano anterior. Opções ideológicas e criminalizadoras feitas por ele muitas vezes são incompatíveis com o ideário da vigente e democrática Constituição de 1988.”; embora seja importante lembrar que a pena originariamente prevista no artigo 302 do Código Eleitoral era de detenção até dois anos, que foi modificada pelo Decreto Lei 1.064/1969 para a pena atual, e mantida pela Lei 6.091/74.

Alfredo Massi e Polianna Pereira dos Santos (Transporte Irregular de Eleitores: O art. 11, III, da Lei 6.091/74 à luz da Constituição da República de 1988. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=7780dee418096d1e, acesso em 28.5.2016) firmam posicionamento no sentido de que:

Não se discute a gravidade da conduta prevista no tipo em questão, nem a necessidade de exercer a repressão no âmbito criminal para tutelar a lisura e a legitimidade do pleito. No entanto, a estreita margem de pena prevista (quatro a seis anos) e a existência de pena mínima prevista em um patamar extremamente elevado impedem a adequada individualização da pena. Em alguns casos, ainda que fixada em seu mínimo legal, a pena imposta poderá ser desproporcional à conduta perpetrada.

Como entendo seria no caso presente, onde o transporte foi de apenas dois eleitores em um automóvel, sem nenhuma notícia de ser tal prática constante.

E completam os autores: “A aplicação da pena para o crime de transporte irregular de eleitores nos moldes do art. 11 da Lei n. 6.091 de 1974, não se coaduna com o Estado Democrático de Direito por não cumprir os requisitos básicos da pena: a legalidade, a certeza, a igualdade, a mensurabilidade e a preocupação com os cálculos da pena (FERRAJOLI, 2006, p. 366). A norma constante no art. 11 não se amolda aos princípios penais preconizados na Constituição da República de 1988, especialmente os princípios da individualização das penas e da legalidade. Por não se conformar materialmente à Constituição da República de 1988, referido dispositivo não poderia ser recepcionado. Com a inauguração de uma nova ordem constitucional, surge a necessidade de analisar as normas infraconstitucionais que lhe são anteriores. O advento de nova Constituição é orientado pelo princípio da continuidade da ordem jurídica, segundo o qual se busca evitar um período de anomia (o que ocorreria se, por exemplo, com a nova Constituição se todas as leis anteriores fossem revogadas) e dar continuidade às relações jurídicas vigentes.” Com o que se concorda plenamente, em especial no caso concreto, onde o transporte foi de apenas dois eleitores para um local de difícil acesso pelos meios comuns de transporte.

Com isso teríamos a declaração incidental de inconstitucionalidade (não recepção) não do tipo penal, mas apenas de sua pena mínima, exigindo a supressão da omissão através da aplicação do art. 284 do Código Eleitoral, fixando em um ano de reclusão a pena mínima para o tipo.

Assim, entendo por reconhecer a não recepção, pela Constituição Federal, da pena mínima fixada no art. 11, inc. III, da Lei n. 6.091/74, c/c os arts. 5 e 10 da mesma Lei, aplicando o art. 284 do Código Eleitoral para fixar a pena mínima em um ano de reclusão para o transporte ilegal de eleitores.

Com base nesse parâmetro, fixo a pena privativa de liberdade do acusado em 1 (um) ano de reclusão, pois, como bem fundamentou a sentença, não há circunstâncias judiciais, agravantes ou majorantes, que justifiquem elevar a pena para além do mínimo legal, a qual é substituída por uma pena restritiva de direitos, nos termos do art. 44, § 2º, do CP, consistente na prestação de serviços à comunidade à razão de uma hora de tarefa por dia de condenação, nos termos do art. 46, § 3º, do CP.

A pena de multa é mantida em 200 dias-multa, nos termos da sentença.

 

Cumprimento imediato da pena

Por fim, no tocante ao pedido de execução imediata da condenação, comungo integralmente das considerações tecidas pela Dra. Gisele Anne Vieira de Azambuja no julgamento do Recurso Criminal n. 33-95, julgado na data de 15.6.2016:

Como é do conhecimento de todos, no dia 17 de fevereiro deste ano o Supremo Tribunal Federal denegou a ordem ao Habeas Corpus n. 126.292 (publicado no DJE do STF em 17.5.2016), no qual discutia-se a legitimidade de ato do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP) que, ao negar provimento a recurso exclusivo da defesa, determinou o imediato início da execução da pena.

No caso que deu origem ao habeas, um indivíduo havia sido condenado à pena de 5 anos e 4 meses de reclusão, em regime inicial fechado, pela prática do crime de roubo qualificado (artigo 157, parágrafo 2º, incisos I e II, do CP). A sentença condenatória possibilitou ao réu o direito de recorrer em liberdade. A defesa recorreu ao TJ/SP, que negou provimento ao apelo e determinou a expedição de mandado de prisão contra o demandado. Ao interpor o habeas junto ao STF, a defesa alegou que o Tribunal de São Paulo teria decretado a prisão sem qualquer motivação, constituindo flagrante constrangimento ilegal, visto que o magistrado de primeiro grau permitiu que o réu recorresse em liberdade.

Ao denegar a ordem, o STF entendeu que o início imediato da execução da pena, após a confirmação da sentença condenatória em segundo grau, não ofende o princípio constitucional da presunção da inocência.

O precedente retoma o entendimento anterior do Supremo, modificado em fevereiro de 2009, quando, no julgamento do HC 84078, de relatoria do então ministro Eros Grau, a Corte passou a condicionar a execução da pena ao trânsito em julgado da condenação, ressalvando, por óbvio, a possibilidade de prisão preventiva ou temporária, modalidades de prisão cautelar. O HC 84078 restou assim ementado:

HABEAS CORPUS. INCONSTITUCIONALIDADE DA CHAMADA "EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA". ART. 5º, LVII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ART. 1º, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. O art. 637 do CPP estabelece que "[o] recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância para a execução da sentença". A Lei de Execução Penal condicionou a execução da pena privativa de liberdade ao trânsito em julgado da sentença condenatória. A Constituição do Brasil de 1988 definiu, em seu art. 5º, inciso LVII, que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". 2. Daí que os preceitos veiculados pela Lei n. 7.210/84, além de adequados à ordem constitucional vigente, sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP. 3. A prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar. 4. A ampla defesa, não se a pode visualizar de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária. Por isso a execução da sentença após o julgamento do recurso de apelação significa, também, restrição do direito de defesa, caracterizando desequilíbrio entre a pretensão estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão. 5. Prisão temporária, restrição dos efeitos da interposição de recursos em matéria penal e punição exemplar, sem qualquer contemplação, nos "crimes hediondos" exprimem muito bem o sentimento que EVANDRO LINS sintetizou na seguinte assertiva: "Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinqüente". 6. A antecipação da execução penal, ademais de incompatível com o texto da Constituição, apenas poderia ser justificada em nome da conveniência dos magistrados --- não do processo penal. A prestigiar-se o princípio constitucional, dizem, os tribunais [leia-se STJ e STF] serão inundados por recursos especiais e extraordinários e subseqüentes agravos e embargos, além do que "ninguém mais será preso". Eis o que poderia ser apontado como incitação à "jurisprudência defensiva", que, no extremo, reduz a amplitude ou mesmo amputa garantias constitucionais. A comodidade, a melhor operacionalidade de funcionamento do STF não pode ser lograda a esse preço. 7. No RE 482.006, relator o Ministro Lewandowski, quando foi debatida a constitucionalidade de preceito de lei estadual mineira que impõe a redução de vencimentos de servidores públicos afastados de suas funções por responderem a processo penal em razão da suposta prática de crime funcional , o STF afirmou, por unanimidade, que o preceito implica flagrante viola[art. 2º da Lei n. 2.364/61, que deu nova redação à Lei n. 869/52]ção do disposto no inciso LVII do art. 5º da Constituição do Brasil. Isso porque --- disse o relator --- "a se admitir a redução da remuneração dos servidores em tais hipóteses, estar-se-ia validando verdadeira antecipação de pena, sem que esta tenha sido precedida do devido processo legal, e antes mesmo de qualquer condenação, nada importando que haja previsão de devolução das diferenças, em caso de absolvição". Daí porque a Corte decidiu, por unanimidade, sonoramente, no sentido do não recebimento do preceito da lei estadual pela Constituição de 1.988, afirmando de modo unânime a impossibilidade de antecipação de qualquer efeito afeto à propriedade anteriormente ao seu trânsito em julgado. A Corte que vigorosamente prestigia o disposto no preceito constitucional em nome da garantia da propriedade não a deve negar quando se trate da garantia da liberdade, mesmo porque a propriedade tem mais a ver com as elites; a ameaça às liberdades alcança de modo efetivo as classes subalternas. 8. Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade (art. 1º, III, da Constituição do Brasil). É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar plenamente quando transitada em julgado a condenação de cada qual Ordem concedida.(STF - HC 84078 MG, Relator: Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, Data de Julgamento: 05/02/2009)

Ao emitir juízo denegatório à ordem do Habeas Corpus n. 126.292, o relator do processo, ministro Teori Zavascki, votou pela mudança do entendimento consolidado a partir do HC 84078, no que foi seguido pelos ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. A ministra Rosa Weber abriu a divergência, defendendo a manutenção da jurisprudência pacificada naquela Corte.

A seguir, os ministros Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes acompanharam o relator.

Por sua vez, o ministro Marco Aurélio, lamentando a decisão que naquele momento já havia sido tomada pelo Supremo, seguiu a divergência para manter entendimento de que sentença só pode ser executada após o trânsito em julgado da condenação.

Após, acompanharam a divergência os ministros Celso de Mello, decano da Corte, e Ricardo Lewandowski, atual presidente do Supremo.

Portanto, por maioria de sete votos a quatro, o Pleno retornou ao entendimento anterior daquela Corte, afirmando ser possível a execução imediata da pena aplicada em decisão condenatória confirmada em segunda instância.

E essa é a questão com a qual nos deparamos agora: aplicar (ou não) a recente decisão do STF e determinar a execução imediata da pena.

Pois bem, adianto que me inclino pela não aplicação. Pedindo redobradas vênias à maioria dos ministros e ministras da Suprema Corte, entendo que determinar a imediata execução da pena, antes do trânsito em julgado da persecução criminal, é violar a cláusula constitucional consagradora da presunção de inocência disposta no art. 5º, inciso LVII, de nossa Constituição Federal, o qual preceitua queninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Segundo sintetizado no voto do ministro Teori:

o tema relacionado com a execução provisória de sentenças penais condenatórias envolve reflexão sobre (a) o alcance do princípio da presunção da inocência aliado à (b) busca de um necessário equilíbrio entre esse princípio e a efetividade da função jurisdicional penal, que deve atender a valores caros não apenas aos acusados, mas também à sociedade, diante da realidade de nosso intricado e complexo sistema de justiça criminal.

Assim, após muito refletir sobre o tema, entendi por acompanhar a tese que restou vencida no julgamento do HC 126.292.

Em minha compreensão, não podemos afastar o princípio da presunção de inocência, positivado no inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal de 1988, sob pena de retroagirmos a um sistema de desrespeito dos direitos fundamentais insculpidos na Carta Magna.

E nesse ponto, compactuo com a inteligência do ministro Celso de Mello, ao afirmar que:

a Constituição brasileira promulgada em 1988 e destinada a reger uma sociedade fundada em bases genuinamente democráticas é bem o símbolo representativo da antítese ao absolutismo do Estado e à força opressiva do poder, considerado o contexto histórico que justificou, em nosso processo político, a ruptura com paradigmas autocráticos do passado e o banimento, por isso mesmo, no plano das liberdades públicas, de qualquer ensaio autoritário de uma inaceitável hermenêutica de submissão, somente justificável numa perspectiva “ex parte principis”, cujo efeito mais conspícuo, em face daqueles que presumem a culpabilidade do réu, será a virtual (e gravíssima) esterilização de uma das mais expressivas conquistas históricas da cidadania: o direito do indivíduo de jamais ser tratado, pelo Poder Público, como se culpado fosse (HC 126.292).

Ao defender a redação constitucional do princípio da presunção de inocência, o decano da mais alta Corte do nosso Poder Judiciário traz doutrina do eminente Professor LUIZ FLÁVIO GOMES, em obra escrita com o Professor VALÉRIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI, (“Direito Penal – Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos/Pacto de San José da Costa Rica”, vol. 4/85-91, 2008, RT). Assim advertem os notáveis doutrinadores:

O correto é mesmo falar em princípio da presunção de inocência (tal como descrito na Convenção Americana), não em princípio da não-culpabilidade (…).

Trata-se de princípio consagrado não só no art. 8º, 2, da Convenção Americana senão também (em parte) no art. 5º, LVII, da Constituição Federal, segundo o qual toda pessoa se presume inocente até que tenha sido declarada culpada por sentença transitada em julgado. Tem previsão normativa desde 1789, posto que já constava da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Do princípio da presunção de inocência (‘todo acusado é presumido inocente até que se comprove sua culpabilidade’) emanam duas regras: (a) regra de tratamento e (b) regra probatória. ‘Regra de tratamento’: o acusado não pode ser tratado como condenado antes do trânsito em julgado final da sentença condenatória (CF, art. 5º, LVII).

O acusado, por força da regra que estamos estudando, tem o direito de receber a devida ‘consideração’ bem como o direito de ser tratado como não participante do fato imputado. Como ‘regra de tratamento’, a presunção de inocência impede qualquer antecipação de juízo condenatório ou de reconhecimento da culpabilidade do imputado, seja por situações, práticas, palavras, gestos etc., podendo-se exemplificar: a impropriedade de se manter o acusado em exposição humilhante no banco dos réus, o uso de algemas quando desnecessário, a divulgação abusiva de fatos e nomes de pessoas pelos meios de comunicação, a decretação ou manutenção de prisão cautelar desnecessária, a exigência de se recolher à prisão para apelar em razão da existência de condenação em primeira instância etc. É contrária à presunção de inocência a exibição de uma pessoa aos meios de comunicação vestida com traje infamante (Corte Interamericana, Caso Cantoral Benavides, Sentença de 18.08.2000, parágrafo 119).

Por esse motivo, o ministro Celso de Mello entende que:

a consagração constitucional da presunção de inocência como direito fundamental de qualquer pessoa – independentemente da gravidade ou da hediondez do delito que lhe haja sido imputado – há de viabilizar, sob a perspectiva da liberdade, uma hermenêutica essencialmente emancipatória dos direitos básicos da pessoa humana, cuja prerrogativa de ser sempre considerada inocente, para todos e quaisquer efeitos, deve prevalecer, até o superveniente trânsito em julgado da condenação criminal, como uma cláusula de insuperável bloqueio à imposição prematura de quaisquer medidas que afetem ou restrinjam a esfera jurídica das pessoas em geral (HC 126.292).

Ou seja, ninguém pode ser considerado como culpado antes que sobrevenha contra ele condenação penal transitada em julgado. E esse tem sido o entendimento pacificado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

O POSTULADO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA IMPEDE QUE O ESTADO TRATE, COMO SE CULPADO FOSSE, AQUELE QUE AINDA NÃO SOFREU CONDENAÇÃO PENAL IRRECORRÍVEL.

– A prerrogativa jurídica da liberdade – que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) – não pode ser ofendida por interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais que culminem por consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos e garantias fundamentais proclamados pela Constituição da República, a ideologia da lei e da ordem. Mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, e até que sobrevenha sentença penal condenatória irrecorrível, não se revela possível – por efeito de insuperável vedação constitucional (CF, art. 5º, LVII) – presumir-lhe a culpabilidade. Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio constitucional da presunção de inocência, em nosso sistema jurídico, consagra, além de outras relevantes consequências, uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, por sentença do Poder Judiciário. Precedentes. (HC 96.095/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Aqui, cumpre fazer uma ressalva. A tese vencedora exposta pelo ministro Teori no julgamento do HC 126.292, embora extremamente bem fundamentada – aliás, como costumam ser os votos daquele eminente julgador –, constitui precedente isolado naquela Corte constitucional. Precedente, diga-se, sem caráter vinculante. Precedente que se constitui em orientação, tal como sugeriu o ministro Teori em sua manifestação: Essas são razões suficientes para justificar a proposta de orientação, que ora apresento, restaurando o tradicional entendimento desta Suprema Corte, no seguinte sentido: a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência. Precedente que não constitui súmula vinculante daquela Corte. Lembro que a súmula vinculante, instituída a partir da inclusão do artigo 103-A na Constituição Federal por meio da EC 45/2004, confere ao STF, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, a possibilidade de editar verbetes com efeito vinculante que contêm, de forma concisa, a jurisprudência consolidada daquela Corte sobre determinada matéria. A edição, o cancelamento e a revisão de súmulas vinculantes têm de ser aprovados por, no mínimo, oito ministros do STF, o equivalente a dois terços da composição daquele Tribunal, após manifestação do procurador-geral da República. A propósito, ressalto: como acima referido, a edição de súmula vinculante tem que ser aprovada por no mínimo oito dos onze ministros do STF. O resultado da votação do HC 126.292, como já apontado, foi por sete votos a quatro. Assim, na atual composição do Supremo, tendo em vista a posição dos ministros exposta no HC 126.292, não se mostraria viável a edição de súmula vinculante dispondo que a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência.

Por essas razões, entendo que devemos encarar o precedente com a devida cautela, visto que a numerosa e consolidada jurisprudência da Suprema Corte traz compreensão diversa.

Cabe igualmente registrar que, em minha compreensão, o preceito constitucional disposto no art. 5º, inciso LVII, não permite interpretações.

Segundo o ministro Marco Aurélio há uma máxima, em termos de noção de interpretação, de hermenêutica, segundo a qual, onde o texto é claro e preciso, cessa a interpretação, sob pena de se reescrever a norma jurídica, e, no caso, o preceito constitucional. Há de vingar o princípio da autocontenção (HC 126.292).

E esse também é o entendimento do ministro Ricardo Lewandowski (HC 126.292):

Assim como fiz, ao proferir um longo voto no HC 84.078, relatado pelo eminente Ministro Eros Grau, eu quero reafirmar que não consigo, assim como expressou o Ministro Marco Aurélio, ultrapassar a taxatividade desse dispositivo constitucional, que diz que a presunção de inocência se mantém até o trânsito em julgado. Isso é absolutamente taxativo, categórico; não vejo como se possa interpretar esse dispositivo. Voltando a, talvez, um ultrapassadíssimo preceito da antiga escola da exegese, eu diria que in claris cessat interpretatio. E aqui nós estamos, evidentemente, in claris, e aí não podemos interpretar, data venia.

E no mesmo norte segue a compreensão do ministro Celso de Mello (HC 126.292):

Veja-se, pois, que esta Corte, no caso em exame, está a expor e a interpretar o sentido da cláusula constitucional consagradora da presunção de inocência, tal como esta se acha definida pela nossa Constituição, cujo art. 5º, inciso LVII (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”), estabelece, de modo inequívoco, que a presunção de inocência somente perderá a sua eficácia e a sua força normativa após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

É por isso que se mostra inadequado invocar-se a prática e a experiência registradas nos Estados Unidos da América e na França, entre outros Estados democráticos, cujas Constituições, ao contrário da nossa, não impõem a necessária observância do trânsito em julgado da condenação criminal.

Mais intensa, portanto, no modelo constitucional brasileiro, a proteção à presunção de inocência.

Desse modo, infere-se que a norma disposta no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal é de evidente clareza. Não há, portanto, o que nela ser interpretado.

Vale lembrar que esta foi a intenção do constituinte originário. Intenção baseada em componentes de índole histórica, política e sociológica prevalentes naquele momento pelo qual atravessava o País, ao final da década de oitenta do século passado. E não vejo, na época contemporânea, elementos que justifiquem a alteração de tal preceito constitucional.

E nesse ponto, faço minhas as palavras do ministro Marco Aurélio (HC 126.292):

Reconheço que a Justiça é morosa, que o Estado, em termos de persecução criminal, é moroso. Reconheço, ainda, que, no campo do Direito Penal, o tempo é precioso, e o é para o Estado-acusador e para o próprio acusado, implicando a prescrição da pretensão punitiva, muito embora existam diversos fatores interruptivos do prazo prescricional. Reconheço que a época é de crise. Crise maior. Mas justamente, em quadra de crise maior, é que devem ser guardados parâmetros, princípios e valores, não se gerando instabilidade, porque a sociedade não pode viver aos sobressaltos, sendo surpreendida.

Portanto, devemos respeitar o princípio da presunção de inocência tal como insculpido na Carta Magna, pois aquela é a redação derivada do constituinte originário. Redação inspirada na realidade de nosso país, e não na experiência vivenciada em nações como a Inglaterra, França ou Estados Unidos.

E atento para a realidade nacional, o ministro Lewandowski assim mostrou sua perplexidade diante da guinada jurisprudencial da Corte Suprema (HC 126.292):

Eu também, respeitosamente, queria manifestar a minha perplexidade desta guinada da Corte com relação a esta decisão paradigmática, minha perplexidade diante do fato de ela ser tomada logo depois de nós termos assentado, na ADPF 347 e no RE 592.581, que o sistema penitenciário brasileiro está absolutamente falido. E mais, nós afirmamos, e essas são as palavras do eminente Relator naquele caso, que o sistema penitenciário brasileiro se encontra num estado de coisas inconstitucional. Então, agora, nós vamos facilitar a entrada de pessoas neste verdadeiro inferno de Dante, que é o nosso sistema prisional? Ou seja, abrandando esse princípio maior da nossa Carta Magna, uma verdadeira cláusula pétrea. Então isto, com todo o respeito, data venia, me causa a maior estranheza.

Apenas para relembrar, na ADPF 347, interposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), o STF decretou o “estado de coisas inconstitucional”, e determinou medidas de intervenção orçamentária e estrutural no sistema prisional pátrio, resultando na exigência de que juízes realizem a audiência de custódia, bem como na liberação da verba do Fundo Penitenciário para a sua finalidade precípua, sem qualquer tipo de contingenciamento. Naquela oportunidade, o Presidente da Corte Ricardo Lewandowski esclareceu que “o estado de coisas inconstitucional (…) foi uma medida desenvolvida pela Corte Nacional da Colômbia a qual identificou um quadro insuportável e permanente de violação de direitos fundamentais a exigir intervenção do Poder judiciário de caráter estrutural e orçamentário”.

Nesse cenário, cumpre igualmente trazer as considerações do ministro Lewandowski a respeito do sistema prisional pátrio (HC 216.292):

Eu queria, também, finalizar e dizer o seguinte: eu tenho trazido sempre a esta egrégia Corte alguns números que são muito impressionantes relativos ao nosso sistema prisional, dizendo que nós temos hoje no Brasil a quarta população de presos, em termos mundiais, logo depois dos Estados Unidos, da China e da Rússia, nós temos seiscentos mil presos. Desses seiscentos mil presos, 40%, ou seja, duzentos e quarenta mil presos são presos provisórios. Com essa nossa decisão, ou seja, na medida que nós agora autorizamos, depois de uma decisão de segundo grau, que as pessoas sejam presas, certamente, a esses duzentos e quarenta mil presos provisórios, nós vamos acrescer dezenas ou centenas de milhares de novos presos.

As estatísticas trazidas pelo eminente ministro encontram consonância com levantamento realizado pela Fundação Getúlio Vargas com o objetivo de analisar dados detalhados da quantidade, espécie, origem, resultado e fundamento da dos processos de habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal entre os anos de 2006 e 2014.

O objetivo específico da referida pesquisa foi a apresentação de medidas concretas capazes de aperfeiçoar o sistema de prestação jurisdicional, sem que se inviabilize o acesso à jurisdição nem se limitem direitos e garantias fundamentais.

O relatório final do trabalho apresenta propostas com base nos dados coligidos pela equipe de pesquisa e derivam tanto da análise quantitativa como da análise qualitativa (acesso pelo link: http://direitorio.fgv.br/sites/direitorio.fgv.br/files/u100/relatorio_final_pesquisa_hc_ipea-mj_-_junho_-_2014_-_para_publicacao.pdf).

No mesmo sentido, cabe trazer o alerta registrado pelo ministro Lewandowski em seu voto na ADPF 144/DF, demonstrando, por meio de dados estatísticos, a importância de aguardar-se o trânsito em julgado da condenação criminal para, em respeito ao princípio da presunção de inocência, determinar a execução da pena. Vejamos:

(...) trago, finalmente, nessa minha breve intervenção, à consideração dos eminentes pares, um dado estatístico, elaborado a partir de informações veiculadas no portal de informações gerenciais da Secretaria de Tecnologia de Informação do Supremo Tribunal Federal (...). De 2006, ano em que ingressei no Supremo Tribunal Federal, até a presente data, 25,2% dos recursos extraordinários criminais foram providos por esta Corte, e 3,3% providos parcialmente. Somando-se os parcialmente providos com os integralmente providos, teremos o significativo porcentual de 28,5% de recursos. Quer dizer, quase um terço das decisões criminais oriundas das instâncias inferiores foi total ou parcialmente reformado pelo Supremo Tribunal Federal nesse período.

E o alerta é de extrema importância, pois segundo afirmou o ministro, 28,5% dos recursos criminais analisados pelo Supremo foram parcial ou integralmente providos. Ou seja, cerca de um terço das decisões criminais proferidas por instâncias inferiores foram total ou parcialmente reformadas pelo STF.

E é por esse motivo que o ministro Celso de Mello sustenta que o Supremo Tribunal Federal tem repelido, por incompatíveis com esse direito fundamental (da presunção de inocência), restrições de ordem jurídica somente justificáveis em face da irrecorribilidade de decisões judiciais (HC 126.292).

E, por oportuno, peço vênia para tomar como minhas as palavras de lástima proferidas pelo ilustre decano da nossa mais alta Corte judiciária:

Lamento (...) registrar-se, em tema tão caro e sensível às liberdades fundamentais dos cidadãos da República, essa preocupante inflexão hermenêutica, de perfil nitidamente conservador e regressista, revelada em julgamento que perigosamente parece desconsiderar que a majestade da Constituição jamais poderá subordinar-se à potestade do Estado.

E ainda que, eminentes colegas, desconsiderássemos o argumento constitucional alicerçado na presunção de inocência, do mesmo modo a execução antecipada da condenação estaria em dissonância com nosso ordenamento positivo. Isto porque a Lei 7.210/84, denominada Lei de Execução Penal (LEP), estabelece o trânsito em julgado como pressuposto inarredável de legitimação da execução de sentença condenatória.

Note-se que a regra disposta no art. 105 do referido ordenamento condiciona a execução da pena à ocorrência do trânsito em julgado da decisão penal condenatória:

Art. 105. Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução. (Grifei.)

No mesmo sentido é a exigência ditada pelo art. 147 da LEP em respeito à execução de penas restritivas de direitos:

Art. 147. Transitada em julgado a sentença que aplicou a pena restritiva de direitos, o Juiz da execução, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, promoverá a execução, podendo, para tanto, requisitar, quando necessário, a colaboração de entidades públicas ou solicitá-la a particulares. (Grifei.)

Somado a isso, cumpre observar que a decisão tomada pelo STF no HC 126.292, ao menos pelo que se tem notícia, não abordou a (in)constitucionalidade do art. 283 do CPP, com a redação dada pela Lei 12.403/2011. Tal norma penal assim dispõe:

Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (Grifei.)

À vista disso, conclui-se que tal normativa encontra-se em plena vigência, mostrando consonância com o princípio da presunção de inocência, pois estabelece que ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado.

Nota-se que a norma possibilita a prisão antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória apenas em duas hipóteses: prisão temporária ou prisão preventiva – e nenhuma destas situações enquadra-se ao caso sob análise.

Infere-se, portanto, que independente do caráter do fundamento jurídico adotado (seja de ordem legal, seja de cunho constitucional), nosso sistema penal inadmite que qualquer pena seja executada (seja ela de prisão, seja restritiva de direitos) sem a existência do título condenatório definitivo, o qual, na minha compreensão, decorre do trânsito em julgado da decisão penal condenatória.

Assim, considero que a execução da sentença penal condenatória, antes de consumado o seu trânsito em julgado, mostra-se evidentemente incompatível com o direito fundamental da presunção de inocência assegurado aos réus pela Constituição da República, em seu art. 5º, inciso LVII, motivo pelo qual entendo improcedente o pedido de execução provisória da pena formulado pela Procuradoria Regional Eleitoral.

Some-se aos fundamentos tecidos pela ilustre magistrada a divergência existente na própria Corte Suprema a respeito do tema. O Ministro Celso de Mello, na data de 04 de julho de 2016, concedeu liminar no HC 135100 para suspender decisão do STJ que determinou o cumprimento imediato de sanção penal independentemente do trânsito em julgado da decisão condenatória. Reconheceu o ministro que a decisão proferida pelo Plenário do STF, no HC 126292, destinava-se a processo de perfil eminentemente subjetivo, não se revestindo de eficácia vinculante.

DIANTE DO EXPOSTO, voto por negar provimento ao recurso e indeferir o requerimento de execução imediata do acórdão condenatório, e, de ofício, por reduzir a pena privativa de liberdade imposta ao recorrente para um ano de reclusão, substituída por prestação de serviços à comunidade, mantidos os demais termos da sentença.