RC - 495 - Sessão: 30/08/2016 às 17:00

RELATÓRIO

ADAIR JOSÉ TROTT, TÂNIA ROSANE PORSCH e RENZO THOMAS recorreram da decisão proferida pelo Juízo da 96ª Zona Eleitoral – Cerro Largo – que julgou procedente ação penal, condenando-os pela prática dos fatos delituosos a seguir descritos, conforme consta na sentença (fls. 527-544v.):

1º FATO Asseverou a denúncia, em síntese, que no dia 20 de agosto de 2012, no turno da manhã, durante o horário de expediente, nas dependências do Posto de Saúde deste Município, os acusados, em comunhão de esforços e conjunção de vontades, usaram de grave ameaça, consistente na ameaça de demissão, para coagir as eleitoras e agentes de saúde RAQUEL WILHELM, MARIA BEATRIS BOENO LINO GALLAS, NERCI ANA SCHUTZ ROOS, DEONISE MARIA KREIN, NILSA CECÍLIA RAUBER, OLGA FRANCIELE DE SOUZA KRAMER, CLÁUDIA ELEANAI MACHADO e demais agentes comunitários de saúde e agentes do Programa Primeira Infância Melhor - PIM - deste Município, que se encontravam presentes no momento do fato (listagem de agentes de saúde à p. 103 do RD), a votar nos candidatos VALTER HATWIG SPIES e RANIERI TONIM, candidatos a Prefeito e a Vice-Prefeito, respectivamente, nas eleições municipais de 2012 em Cerro Largo/RS. Disse a exordial incoativa, na ocasião, os acusados ameaçaram demitir as referidas eleitoras caso elas não apoiassem a candidatura de VALTER HATWIG SPIES e de RANIERI TONIM, coagindo-as a votar nos referidos candidatos nas eleições municipais de 2012 neste Município.

2° FATO Sinalou a portal acusatória, no dia 20 de agosto de 2012, no turno da manhã, durante o horário de expediente, nas dependências do Posto de Saúde deste Município, os acusados, em comunhão de esforços e conjunção de vontades, valeram-se, na condição de servidores públicos, de sua autoridade, para coagir as eleitoras e agentes de saúde RAQUEL WILHELM, MARIA BEATRIS BOENO LINO GALLAS, NERCI ANA SCHUTZ ROOS, DEONISE MARIA KREIN, NILSA CECÍLIA RAUBER, OLGA FRANCIELE DE SOUZA KRAMER, CLÁUDIA ELEANAI MACHADO e demais agentes comunitários de saúde e agentes do Programa Primeira Infância Melhor - PIM - deste Município, que se encontravam presentes no momento do fato (listagem de agentes de saúde à p. 103 do RD), a votar nos candidatos VALTER HATWIG SPIES e RANIERI TONIM, candidatos a Prefeito e a Vice-Prefeito, respectivamente, nas eleições municipais de 2012 em Cerro Largo/RS. Relatou-se que, na oportunidade, os acusados ADAIR, RENZO e TÂNEA, na condição de Prefeito Municipal, Assessor Jurídico e Secretária de Saúde deste Município, respectivamente, coagiram as referidas eleitoras a votar nos referidos candidatos (VALTER e RANIERI) nas eleições municipais de 2012 no Município de Cerro Largo/RS, sob pena de demissão.

3° FATO Gizou a denúncia, no dia 20 de agosto de 2012, no turno da manhã, durante o horário de expediente, nas dependências do Posto de Saúde deste Município, os acusados, em comunhão de esforços e conjunção de vontades, ofereceram e prometeram vantagem consistente na manutenção do emprego às eleitoras e agentes de saúde RAQUEL WILHELM, MARIA BEATRIS BOENO LINO GALLAS, NERCI ANA SCHUTZ ROOS, DEONISE MARIA KREIN, NILSA CECÍLIA RAUBER, OLGA FRANCIELE DE SOUZA KRAMER, CLÁUDIA ELEANAI MACHADO e demais agentes comunitários de saúde e agentes do Programa Primeira Infância Melhor - PIM - deste Município que se encontravam presentes no momento do fato (listagem de agentes de saúde à p. 103 do RD), para obter-lhes o voto em favor de VALTER HATWIG SPIES e RANIERI TONIM, candidatos a Prefeito e a Vice-Prefeito, respectivamente, nas eleições municipais de 2012 em Cerro Largo/RS. Alegou-se que, na ocasião, os acusados ofertaram e prometeram às referidas eleitoras e agentes de saúde vantagem consistente na manutenção de emprego de agentes comunitárias de saúde e agentes visitadores do PIM, visando obter-lhes o voto em favor dos candidatos VALTER e RANIERI.

Em suas razões, alegaram, preliminarmente, cerceamento de defesa por tratamento desigual às partes, em face do deferimento de pedido de degravação formulado pelo recorrido e indeferimento de pedido no mesmo sentido feito pelos recorrentes; ilicitude na colheita de prova por meio de gravação ambiental sem prévia autorização judicial; quebra da cadeia de custódia da gravação, que teria sido manipulada criminosamente; não juntada aos autos do original da gravação, apesar de expressamente impugnada; ausência de perícia para atestar a autenticidade da prova; e utilização da gravação por quem não é parte no processo (fls. 574-599v.).

Quanto ao mérito, sustentaram a falta de provas dos fatos que lhes são imputados, asseverando inexistir na gravação qualquer promessa de vantagem ou emprego em troca do voto, tampouco coação ou ameaça. Pedem a absolvição ou, em caso de manutenção da sentença, redução da pena para o mínimo legal e exclusão da agravante de reincidência em relação ao acusado RENZO.

Com contrarrazões, nesta instância, a Procuradoria Eleitoral opinou pelo parcial provimento do recurso, apenas para afastar a incidência da agravante da condenação do réu RENZO THOMAS.

A defesa apresentou requerimento invocando a Súmula STJ n. 337, a fim de que fosse oferecida a suspensão condicional do processo aos acusados (fls. 672-679).

Com nova vista dos autos, a Procuradoria manifestou-se pela improcedência do requerimento de suspensão condicional do processo (fls. 717-719).

Este Tribunal, na sessão de 19.4.2016, acolheu, por unanimidade, a prefacial de suspensão condicional do processo suscitada pela defesa, sendo convertido o julgamento do feito em diligência, baixando-se os autos à 96ª Zona Eleitoral, a fim de que fosse possibilitada aos réus a oferta da suspensão (fls. 726-731).

Em audiência, na data de 07.6.2016, o Ministério Público Eleitoral propôs suspensão condicional do processo aos réus TÂNIA ROSANE PORSCH e RENZO THOMAS, sendo a proposta por estes aceita, motivo pelo qual o Juízo da 96ª Zona Eleitoral suspendeu o processo pelo período de prova de dois anos, nos termos do art. 89 da Lei n. 9.099/95, em relação aos dois corréus. Por outro lado, o órgão ministerial deixou de propor a suspensão a ADAIR JOSÉ TROTT, pois este corréu está respondendo ao processo n. 043/2.13.0000493-5, desatendendo, pois, requisito para fazer jus ao benefício (fl. 753 e verso).

Retornados os autos a esta instância, foi dada vista à Procuradoria Regional Eleitoral, que se manifestou pela cisão do feito em relação aos corréus TÂNIA ROSANE PORSCH e RENZO THOMAS para que o Juízo da 96ª Zona Eleitoral fiscalize o cumprimento da suspensão condicional do processo. Quanto ao réu ADAIR JOSÉ TROTT, a Procuradoria postula o desprovimento do recurso, determinando-se ao juízo de primeiro grau que proceda à execução provisória da pena (fls. 763-784v.).

Vieram os autos a mim conclusos (fl. 785) e determinei a intimação do réu ADAIR JOSÉ TROTT para que se manifestasse sobre o pedido de execução provisória da pena proposto pela Procuradoria (fl. 786).

Transcorreu in albis o prazo para resposta do réu (fl. 793).

É o relatório.

 

 

 

VOTOS

Dra. Gisele Anne Vieira de Azambuja (relatora):

Eminentes Colegas:

1. Admissibilidade recursal

1.1. Tempestividade

O recurso é tempestivo, pois interposto dentro do prazo legal.

1.2. Da cisão do processo em relação aos corréus que aceitaram a suspensão condicional do processo

Conforme já consignei no relatório, este Tribunal, na sessão de 19.4.2016, acolheu, por unanimidade, a prefacial de suspensão condicional do processo suscitada pela defesa, sendo convertido o julgamento do feito em diligência, baixando-se os autos à 96ª Zona Eleitoral a fim de que fosse possibilitada aos réus a oferta da suspensão (fls. 726-731).

Em audiência, na data de 07.6.2016, o Ministério Público Eleitoral da origem propôs suspensão condicional do processo aos réus TÂNIA ROSANE PORSCH e RENZO THOMAS, sendo a proposta por estes aceita, motivo pelo qual o Juízo da 96ª Zona Eleitoral suspendeu o processo pelo período de prova de dois anos, nos termos do art. 89 da Lei 9.099/95, em relação aos dois corréus. Por outro lado, o órgão ministerial deixou de propor a suspensão a ADAIR JOSÉ TROTT, pois este corréu está respondendo ao processo n. 043/2.13.0000493-5, desatendendo, pois, requisito para fazer jus ao benefício (fl. 753 e verso).

Consequentemente, tendo em vista que TÂNIA ROSANE PORSCH e RENZO THOMAS aceitaram a proposta de suspensão condicional do processo realizada no juízo originário, deve ser cindido o feito em relação a estes corréus.

Dito isso, passo a analisar as demais preliminares, suscitadas pelo recorrente ADAIR JOSÉ TROTT, tendo em vista que, por não fazer jus ao benefício da suspensão condicional do processo, este réu remanesce no presente recurso criminal.

 

1.3. Da preliminar de cerceamento de defesa

Alega o recorrente que teve cerceado o seu direito de defesa por tratamento desigual às partes em virtude do indeferimento de pedido de degravação de prova e deferimento de pedido semelhante formulado pelo Ministério Público de piso.

O recorrente postulou, na audiência de oitiva das testemunhas, a degravação da prova testemunhal (fl. 377), o que contou com a concordância do órgão ministerial, mas foi indeferido pelo juízo.

O Ministério Público, por sua vez, peticionou requerendo fossem degravados os depoimentos dos réus. Inicialmente indeferido pelo juízo a quo (fl. 454), o pedido foi reconsiderado à fl. 467v., tendo o termo de degravação sido juntado aos autos às fls. 470-487, antes do oferecimento de alegações finais, portanto acessível a ambas as partes.

Assim, tem-se que o indeferimento do pedido de degravação da prova testemunhal deixou de beneficiar ambas as partes, mas, do mesmo modo, o deferimento de degravação do depoimento dos réus, requerido pelo Ministério Público, beneficiou a ambas, não havendo que se falar em cerceamento de defesa.

Alega, ainda, que, após o pedido, o magistrado teria reaberto o prazo ao Ministério Público Eleitoral, o que não poderia ser aceito por este Tribunal.

Sem razão. De fato, o juiz eleitoral deferiu o pedido de dilação de prazo requerido pelo Ministério Público para ambas as partes, deduzido nestes termos:

Requer, ainda, dada a complexidade do caso, e do volume de provas a analisar, seja deferida judicialmente a ampliação do prazo para oferecimento de razões finais, em favor do Ministério Público e da defesa, concedendo-se a cada uma das partes, sucessivamente, o prazo de dez dias para manifestação.

Não bastasse isso, os recorrentes não só foram intimados a oferecer memoriais pelo mesmo prazo concedido ao Ministério Público (fl. 508), como se utilizaram do prazo concedido nas suas alegações finais (fls. 511-525).

Assim, causa estranheza a parte alegar prejuízo numa dilação de prazo que a beneficiou.

Afasto, pois, a preliminar.

 

1.4. Da preliminar de ilicitude da prova

Sustentam os recorrentes a ilicitude da prova carreada aos autos, consistente em gravação ambiental, porque realizada sem prévia autorização judicial.

Conforme bem pontuado pelo sentenciante, a gravação se deu em local público (numa reunião na qual participaram os acusados e demais autoridades), não havendo que se falar, destarte, em violação do princípio constitucional da intimidade.

Portanto, cai por terra o argumento de que a gravação ambiental clandestina viola a intimidade e a privacidade dos dialogantes, pois trata-se, no caso, de autoridades públicas e políticas, em pleno exercício da função, em reunião aberta com servidores municipais, situação que afasta qualquer pretensão de intimidade a ser preservada.

Ao contrário, reuniões públicas, em regra, são lavradas atas não só para que se tenha memória de tudo o que foi tratado, mas também para privilegiar o princípio da publicidade, cada vez mais imperioso no trato da coisa pública.

A respeito, veja-se a jurisprudência:

Recursos. Ação de investigação judicial eleitoral. Captação ilícita de sufrágio. Art. 41-A da Lei n. 9.504/97. Abuso de poder econômico. Candidatos à majoritária. Procedência. Inelegibilidade. Multa. Eleições 2012. Matéria preliminar afastada.

1. Nulidade do processo por ausência de litisconsórcio passivo necessário não configurada. A demanda proposta contra o agente público responsável pela prática de captação ilícita de sufrágio não impõe a obrigatoriedade de integração da lide por eventuais beneficiários.

2. Licitude da gravação ambiental realizada por um dos interlocutores, já que o caso não inspira proteção constitucional da intimidade a justificar a restrição da prova.

3. Suposições genéricas sobre a atuação do magistrado no procedimento de audiência não suportam a alegada violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa. Ausência de ilegalidade processual.

4. Suposto comprometimento político das testemunhas, matéria vinculada à análise do mérito. Alegado oferecimento de cargos públicos em troca de aliança política e de voto. Apoio à chapa majoritária e posterior assunção em cargos em comissão na prefeitura municipal. Não evidenciada a oferta de valores para que candidatos desistissem de suas candidaturas e apoiassem os representados, bem como não caracterizado o especial fim de agir para captar ilicitamente os votos dos apoiadores. Configurada a formação de aliança política e não a prática de ilicitude eleitoral.

Reforma da sentença. Provimento dos recursos.

(TRE-RS, Recurso Eleitoral n. 88479, Acórdão de 03.6.2014, Relator DR. HAMILTON LANGARO DIPP, Publicação: DEJERS - Diário de Justiça Eletrônico do TRE-RS, Tomo 99, Data 05.6.2014, Página 6-7.) (Grifei.)

Quanto às demais alegações concernentes à suscitada ilicitude da prova, tenho por afastá-las, pois desprovidas de argumentos críveis. Com efeito, o fato de a mídia ter circulado entre algumas pessoas até chegar às mãos do Ministério Público não retira, por si só, a sua legitimidade, vez que não há quaisquer indícios de edição, trucagem ou montagem, como adição de trechos de conversas travadas em outros momentos, como alegado.

Ao contrário, tanto a leitura do texto degravado quanto a audição da gravação denotam a linearidade dos discursos que, pelo seu teor, ritmo e fluência evidenciam tratar-se de conversa contínua, com o mesmo público, em única oportunidade.

Por sua vez, desnecessária a realização de perícia para atestar a autenticidade da prova, já que em nenhum momento os réus negaram a autoria da voz, limitando-se a dizer que houve edição, com inserção de trechos de conversas realizadas em outras oportunidades, argumento já refutado.

Ademais, as vítimas Raquel Wilhelm, Maria Betris Boeno Lino, Cláudia Eleanai Machado e Nerci Ana Schutz Roos tiveram acesso ao conteúdo da mídia quando ouvidas pelo Ministério Público e confirmam judicialmente a absoluta sua coincidência com as falas da reunião.

Ainda, não há elementos para inferir que a mídia acostada à fl. 33 dos autos não é original.

Assim, não há nulidade a ser pronunciada.

Passo ao exame do mérito.

 

2. Mérito

Os fatos delituosos envolvem o exame de três tipos penais previstos no Código Eleitoral:

Art. 299. Dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva, ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não seja aceita.

Pena – reclusão até quatro anos e pagamento de cinco a quinze dias-multa.

 

Art. 300. Valer-se o servidor público da sua autoridade para coagir alguém a votar ou não votar em determinado candidato ou partido.

Pena – detenção até seis meses e pagamento de 60 a 100 dias-multa.

 

Art. 301. Usar de violência ou grave ameaça para coagir alguém a votar, ou não votar, em determinado candidato ou partido, ainda que os fins visados não sejam conseguidos.

Pena – reclusão até quatro anos e pagamento de cinco a quinze-dias-multa.

 

Contudo, o juiz eleitoral aplicou o princípio da consunção, ao entendimento de que o art. 301, por tratar de crime de maior gravidade, absorveria os delitos previstos nos arts. 299 e 300.

Reproduzo trecho da sentença, no ponto em que o magistrado reúne num só tipo penal os fatos narrados na peça acusatória:

Entendo que o delito capitulado no art. 301 da Lei Eleitoral, por se tratar de crime de maior gravidade, em face da aplicação do princípio da progressão criminosa, absorve os crimes estipulados nos arts. 299 e 300 da referida legislação. Aplica-se à hipótese em liça, o princípio da consunção e/ou da progressão criminosa, na medida em que o agente lesiona o mesmo bem jurídico, variando, entretanto, a intensidade da ofensa. Veja-se, nesse sentido, Johannes Wessels, segundo o qual “veementemente discutidos são o conceito e os limites da consunção. Verifica-se este caso quando um fato (ou seja, um tipo penal) não está necessariamente compreendido em um outro, mas concorre regular e tipicamente no cometimento deste outro, de maneira que seu conteúdo de injusto e o de culpabilidade são abrangidos e consumidos pela forma mais grave de delito”. Portanto, aplico o princípio da consunção ao caso telado e, aglutinando as condutas delitivas descritas na denúncia, observo que a presente decisão guiar-se-á tão somente para análise do delito capitulado no art. 301 do Código Eleitoral, o que se passa a desenvolver.

Nota-se, portanto, que o julgador singular reuniu as condutas delitivas descritas na denúncia sob a ótica de um único tipo penal, mais abrangente que aqueles trazidos na exordial acusatória, sem introduzir nova capitulação legal aos fatos narrados.

Por oportuno, reproduzo os ensinamentos de Cézar Roberto Bitencourt acerca do tema em comento (Tratado de Direito Penal. 18. ed., pp. 249-250):

Pelo princípio da consunção, ou absorção, a norma definidora de um crime constitui meio necessário ou fase normal de preparação ou execução de outro crime. Em termos bem esquemáticos, há consunção quando o fato previsto em determinada norma é compreendido em outra, mais abrangente, aplicando-se somente esta. Na relação consuntiva, os fatos não se apresentam em relação de gênero e espécie, mas de minus e plus, de continente e conteúdo, de todo e parte, de inteiro e fração.

Pois bem.

O exame do recurso impõe a apreciação da prova produzida nos autos, tarefa da qual muito bem se desincumbiu o douto magistrado de origem.

Analisei detalhadamente o teor da degravação e ouvi com muita atenção a mídia contendo a gravação ambiental, restando claro que foram 31 minutos de pressão psicológica perpetrada pelo prefeito, pela secretária de saúde e pelo presidente da Associação Hospitalar de Cerro Largo, endereçada a cerca de dez servidoras, agentes de saúde e do Programa Primeira Infância Melhor (PIM) daquele município. Autoridades que se valeram do cargo (art. 300) para coagir funcionários públicos a votar, sob a ameaça de perda do emprego (art. 301).

Logicamente não foi uma ameaça direta, "se vocês não votarem nos meus candidatos serão demitidos". Por óbvio, esse não costuma ser o modus operandi em situações análogas. Mas o importante é que a coação, a intimidação dos presentes na reunião, restou evidente.

Passo a analisar breves trechos que bem pontuam a questão. Vejamos:

Fala do réu ADAIR TROTT, prefeito:

Se falam do Adair, se falam do Valter, se falam do Ranieri, estão falando de mim. Tem gente que anda falando do Valter e do Ranieri, e trabalham na área da saúde, e isto não é bom. Nós temos dificuldades de manter os empregos. Eu não estou aqui ameaçando ninguém, mas eu to falando uma coisa que nós estamos enfrentando, e principalmente aqui no caso das agentes de saúde, um processo há algum tempo e estamos e escoramos no peito, o Dr. Renzo, como presidente da Associação, e eu como Prefeito.

[...] Mas vocês não podem mais [gente falando]

[...] e eu gostaria de ganhar a eleição.

[…]

Se vocês acharem que é importante colaborar comigo, eu fico muito agradecido, colaborar comigo é: me ajudar a ganhar a eleição. Se vocês acharem que não é interessante, tudo bem, mas fiquem quietos, não falem em horário de expediente senão o pessoal vai contar para mim.

Eu gostaria de falar para vocês, e pedir o apoio.

Eu não queria, de maneira nenhuma, não gostaria de ser eu a pessoa que iria terminar com estes programas [...] Imagina quantas pessoas [...] que estão trabalhando [...] e quantos mais tem na área da saúde.

Estes programas para mim são muito bons, agora se vocês acharem que não é bom, e vou dizer mais, se acharem "eu não queria mais trabalhar", me fale que eu mando demitir, não tem problema nenhum, pagar vocês a gente tem dinheiro e a gente paga.

Agradeço esta oportunidade de poder ter conversado com vocês, mas eu vou ser franco com vocês, se vocês querem me ajudar é votando nos meus candidatos.

Muito obrigado, e se alguém tiver algum problema transmita para a Tânia que chega em mim com certeza, obrigado.

A ameaça de Adair é de extrema clareza ao afirmar que não gostaria de ser a pessoa que “iria terminar” com os programas; que se falassem dos candidatos Valter e Ranieri seria o mesmo que falar deles. Veja-se que o Prefeito Adair, em pleno exercício do cargo, em reunião com subordinados, assumiu para si as dores dos candidatos, constrangendo a liberdade de expressão dos servidores municipais e, ao final, pedindo o voto para os seus candidatos, o que, no contexto da fala, revela verdadeira coação.

Em outras palavras, não resta dúvida de que, se os presentes na reunião resolvessem, com base nesse discurso, votar nos candidatos apoiados pelo prefeito, estar-se-ia diante de um querer coagido.

Ora, se eventualmente os agentes de saúde estavam, de alguma forma, difamando, injuriando ou caluniando os candidatos, caberia a eles tomar as providências adequadas, na esfera competente, e não ao réu sair em sua defesa e partir para a ameaça.

A fim de contextualizar a narrativa, transcrevo a fala de Renzo Thomas, presidente da Associação Hospitalar, na mesma reunião:

[...]

Todo mundo precisa, ninguém está aqui, todo mundo gostaria de ganhar na mega sena e ficar em casa [...] mas todo mundo precisa, todo mundo está trabalhando porque precisa.

Então, eu acho que a gente tem que respeitar as pessoas, todas as vezes que vocês vieram falar comigo eu intercedi junto à Administração Municipal, foram atendidas, eu sei, tem coisas que precisam ser melhoradas, mas eu quero que vocês reflitam o que é melhor, porque eu fui eleito o presidente da 'associação hospitalar em outubro, e ai vocês tomem as conclusões de vocês: se ganhar fulano, eu, como presidente da Associação Hospitalar, tenho como chegar e tenho respaldo; se ganhar beltrano, eu vou sofrer junto, o que eu estou querendo dizer, eu não posso nem garantir nada para vocês. E daí, de repente, por exemplo, se a Prefeitura resolver que não quer mais o convênio com a Associação e cortar o dinheiro, o que vai acontecer com vocês? O que é que vai acontecer com vocês? Não digo que vai acontecer isso, não digo [SIC] é a proposta dos outros, eu to só imaginando qual é a situação. E ai a Associação não tem mais dinheiro, eu to dizendo pra vocês que a Associação tem dinheiro porque a Prefeitura larga, mas se a Prefeitura tiver outra ideia, tiver outra orientação, bom, dai...

Eu gostaria também de pedir para vocês, pedir o apoio, o respaldo de vocês, assim como nós sempre apoiamos vocês. Eu, particularmente, sempre apoiei vocês nos pleitos, e principalmente, nessa questão do Ministério Público do Trabalho, de nós resolvermos, de fazer um acordo muito bom e "salvar o nosso", pensando na situação de todos, no coletivo. E como disse o Prefeito, respaldar o trabalho excelente que vocês desenvolvem... mas... enfrentar o processo...

Eu gostaria que vocês refletissem a respeito disso, refletissem a respeito disso, e tomassem a conclusão de vocês, só isso.

Ninguém vai ser demitido, não é esse o meu objetivo...

Eu só quero que vocês reflitam e tomem a melhor decisão para todos, pensando na coletividade...

Dizer que, eu já expliquei para vocês, que, dependendo de quem ganhar a gente continua com respaldo, seguindo um trabalho importante, mais importante agora que a Associação vai assumir o hospital. Nossa responsabilidade aumentou, nossa despesa, nosso gasto, também vai aumentar, isto é que nem uma veia, uma veia corta ela, não vai sangue pra ela, o que acontece, necrosa, tem que cortar ela.

Se nós não tivermos o aporte de recursos e o respaldo da Prefeitura [...] o que vai acontecer?

Então eu gostaria pedir isso para vocês, que vocês reflitam.

Política é coisa séria, eleição não pode ser tratada com leviandade, não pode ser tratada com uma coisa qualquer, principalmente por quem, direta ou indiretamente, está envolvido e depende disso...

Como eu disse para vocês, vocês são livres em optar por um candidato, não tem problema,— desde que permaneça o necessário respeito.., e, evidentemente, se optarem pelo candidato A, e, se puderem nos auxiliar nesta campanha, nos

auxiliem.

[...]

Pra vocês, pessoal, principalmente para vocês refletirem: quem nos auxilia, quem nos mantém, e quem possibilita a Associação manter o plantão, quem possibilitará a Associação assumir o Hospital é a Prefeitura, é que nem um jogo de dominó...às vezes eu jogo dominó, eles dão um totosinho no primeiro e cai todo o resto para trás, é mais ou menos isso, porque nós temos o respaldo da Prefeitura, no momento que nós não tivermos o respaldo da Prefeitura, eu caio e vou empurrando todo mundo pra trás e vai todo mundo cair. Porque não adianta. Porque sem dinheiro ninguém se sustenta. Vocês também vão trabalhar sem dinheiro?

AGENTE DE SAÚDE "X" fala:

Mas esse dinheiro vem do Governo Federal?

RENZO THOMAS:

50% e 50%...

AGENTE DE SAÚDE "X":

Pois é então, não é tudo de vocês.

RENZO THOMAS:

Mas a prefeitura opta por terceirizar, ela pode optar... isso que estou dizendo...

 

Renzo foi enfático. Não mediu palavras para dizer que, se os seus candidatos ganhassem a eleição, ele teria respaldo para manter a associação e o emprego de todos, sendo o inverso também verdadeiro. Não contente com isso, deixou claro que se ele caísse, todos cairiam, como num jogo de dominó.

Outro fator que merece destaque é a chantagem emocional feita por Adair ao lembrar aos presentes que “escorou no peito” os empregos dos agentes de saúde, quando chamados pelo Ministério Público do Trabalho em face de, ao que tudo indica, irregularidades em suas contratações. Adair assim se pronunciou:

Nós temos dificuldades de manter os empregos. Eu não estou aqui ameaçando ninguém, mas eu to falando uma coisa que nós estamos enfrentando, e principalmente aqui no caso das agentes de saúde, um processo há algum tempo e estamos e escoramos no peito, o Dr. Renzo, como presidente da Associação, e eu como prefeito.

A fala de Renzo foi no mesmo sentido:

Nós fomos chamados duas vezes para audiência com o Ministério Público do Trabalho, bastava o prefeito e eu assinar um termo dizendo que ia demitir todos vocês e estava tudo resolvido. Eu acho que é uma questão de respeito e reconhecimento.

Eu digo sempre o seguinte: eleição. Eleição que tem um candidato só, é um candidato único, tem 50% que vota nele e 50% que vota em branco ou nulo. Então nem quando tem um candidato só teremos unanimidade, quando tem dois candidatos é que não vai ter mesmo, né.

A busca de reconhecimento, de agradecimento, perpetrada por autoridades públicas, num claro contexto eleitoral, evidencia chantagem emocional contra os servidores públicos, traduzindo-se em verdadeira coação moral, exatamente como descrito no tipo penal (art. 300).

Por sua vez, a Secretária de Saúde Tânia Rosane Porsch, que segundo depoimento de todas as vítimas foi quem ligou convidando para a reunião, realizada em seu gabinete, finaliza a conversa objeto desta ação ratificando as palavras de Adair:

[...] Isto não é produtivo, isso não é bom [...]

Eu estou pedindo agora, continuem fazendo serviço de vocês da mesma maneira […] Comprar uma casa, e começam a falar mal [...]

Nós estamos cientes disso, a tendência é que melhore cada vez mais.

Então assim ó, isto que a gente tem que pensar, e ouvir [...]

Tem gente que começa a falar mal, fofocas [...] que nem o ADAIR disse, que se falarem mal estão falando mal dos candidatos estão falando mal dele também, e isso não pega.

Dia 07 de outubro vai ser essa pressão.

Dia 08 de outubro, independente de quem ganhar, nós temos que trabalhar até 31 de dezembro.

Ou seja, em reunião “de trabalho”, em horário de serviço, na sala da Secretária de Saúde, o réu, valendo-se do cargo, intimidou os servidores com ameaças, algumas dissimuladas, outras explícitas, de que a situação funcional dos mesmos poderia não se garantir caso os seus candidatos não fossem eleitos, semeando dúvida e angústia entre os interlocutores, tudo isso com pedido explícito de votos, violando a liberdade do mais fundamental direito político, que é o direito de voto livre e consciente.

Por outro lado, não merece nenhuma valoração a alegação de que foi induzido pelas vítimas a abordar o tema do modo como o fez, numa tentativa ilógica e incoerente de inverter a situação, buscando passar de agente do delito à vítima.

Portanto, demonstradas de forma suficiente a autoria e materialidade do delito, mediante prova coerente e segura, deve ser mantida a sentença condenatória, nos termos da jurisprudência desta Corte:

Recurso criminal. Ação penal. Crime eleitoral. Corrupção eleitoral e coação eleitoral. Arts. 299 e 300 do Código Eleitoral.

Utilização, por funcionário público da Assistência Social, de coação e compra de votos em benefício de seu pai, candidato a vereador nas eleições 2012. Ameaça de corte ao Bolsa Família para conseguir votos. Sentença condenatória. Conjunto probatório suficiente para firmar a conclusão pela ocorrência dos crimes. Testemunhos consistentes e convergentes, oriundos de depoentes isentos e sem envolvimento político. Evidenciada a autoria, a materialidade dos delitos de corrupção e coação eleitoral, devendo ser mantido o decreto condenatório.

Aplicação de penas restritivas de direitos e multa.

Negaram provimento ao recurso.

(Recurso Criminal n. RC 1-52.2013.6.21.0093, Rel. DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS, julgado em 28.8.2014).

 

3. Dosimetria da pena

Passo a analisar o recurso do réu no que diz respeito à aplicação da pena no patamar mínimo.

O juiz eleitoral a quo estipulou a pena ao réu do seguinte modo:

1) Réu Adair José Trott. À luz dos vetores insculpidos no art. 59, Código Penal, consigno preambularmente, que a culpabilidade é valorada negativamente, porquanto dada a condição do agente no seio político, extrapolado restou o limite do razoável. Trata-se de réu que não porta antecedentes. Sua personalidade se apresenta sem traços desfavoráveis. A conduta social, a míngua de maiores elementos, não lhe desfavorece. Os motivos que circundam os fatos são comuns à espécie, bem como as circunstâncias executórias e as consequências. As vítimas, por seu obrar, não contribuíram para o evento. Fixo a pena-base, por tudo, em 01 (hum) ano e 02 (dois) meses de reclusão (art. 301 c/c art. 284 do Código Eleitoral), a qual, diante da ausência de agravantes e atenuantes, bem como causas de aumento e diminuição da pena, torno definitiva neste patamar. O regime de cumprimento da pena será o aberto (art. 33, CP), a ser executada no Presídio Estadual de Cerro Largo/RS. Por preencher os requisitos objetivos e subjetivos do art. 44, do CP, substituo a pena privativa de liberdade por duas penas restritivas de direitos, a saber: uma prestação pecuniária no valor de dez salários mínimos, destinados ao Conselho da Cidadania desta cidade, e prestação de serviços à comunidade, à razão de uma hora de serviço por dia de condenação, com, no mínimo, 08 horas semanais, a ser executada em local destinado pelo Juízo da Execução Criminal. De outra banda, a pena de multa vai fixada em oito dias-multa, cada um na razão de um trigésimo do salário mínimo, vigente à época dos fatos, devidamente corrigidos quando do pagamento (art. 60 do Código Penal).

 

Do cotejo da pena fixada e da reprovabilidade da conduta do réu, entendo pelo acerto da sentença, também nesse ponto.

Com efeito, o magistrado analisou de modo individualizado todas as circunstâncias para fixação da pena do art. 59 (culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade, motivos, circunstâncias, consequências do crime e comportamento da vítima) e os critérios para o seu cálculo, previstos no art. 68, ambos do Código Penal, restando plenamente atendida a garantia prevista no art. 5º, inc. XLVI, da Constituição Federal.

Ademais, a pena privativa de liberdade foi substituída por penas restritivas de direito, nas modalidades pecuniária e de prestação de serviços à comunidade, dando amparo ao caráter socializador da sanção.

Por sua vez, a pena de multa foi fixada em apenas oito dias-multa, cada um na razão de um trigésimo do salário mínimo.

Assim, inexiste razão que justifique a modificação do apenamento aplicado, lembrando que o art. 301 do Código Eleitoral prevê pena de reclusão de um (conforme art. 284) a quatro anos e pagamento de 5 a 15 dias-multa.

Por fim, em relação ao pedido de execução provisória da pena proposto pela Procuradoria Regional Eleitoral (fl. 784v.), reitero posição por mim já adotada no julgamento do RC 33-95, na sessão de 15.6.2016, quando explicitei que considero que a execução da sentença penal condenatória, antes de consumado o seu trânsito em julgado, mostra-se evidentemente incompatível com o direito fundamental da presunção de inocência assegurado aos réus pela Constituição da República, em seu art. 5º, inc. LVII, motivo pelo qual entendo pela improcedência do pedido formulado pelo órgão ministerial.

 

Ante o exposto, afastadas as prefaciais, VOTO por:

a) cindir o feito em relação aos corréus TÂNIA ROSANE PORSCH e RENZO THOMAS, tendo em vista que aceitaram a proposta de suspensão condicional do processo realizada no juízo de primeiro grau, devendo a Secretaria Judiciária deste TRE-RS formar autos suplementares do presente expediente, encaminhando-os à 96ª Zona Eleitoral – Cerro Largo-RS; e

b) desprover o recurso interposto por ADAIR JOSÉ TROTT, mantendo íntegra a sentença condenatória de primeiro grau, podendo o réu apelar em liberdade.

É como voto, Senhora Presidente.