RE - 1434 - Sessão: 15/08/2016 às 17:00

RELATÓRIO

Trata-se de agravo de instrumento interposto pela UNIÃO contra a decisão que, em fase de cumprimento de sentença em ação de prestação de contas do PARTIDO DEMOCRÁTICO TRABALHISTA – PDT de Santo Ângelo, indeferiu pedido de redirecionamento da execução para os responsáveis do partido e omitiu-se de analisar pedido de conversão do valor penhorado em renda.

Em suas razões recursais (fls. 02-13), a agravante argumenta que a decisão negou o redirecionamento da ação, deixando de analisar a legislação eleitoral, a qual determina que a ausência de recolhimento dos valores devidos ao Fundo Partidário implicará a notificação dos responsáveis pelas contas para fazê-lo, nos termos do art. 34, § 1º, da Resolução n. 21.841/04. Da mesma forma, argumenta que o art. 34, II, da Lei n. 9096/95 estabelece a responsabilidade dos dirigentes partidários pelas irregularidades apuradas nas contas. Sustenta não ser possível equiparar o partido político a uma empresa. Requer a reforma da decisão para redirecionar o cumprimento da sentença contra o dirigente partidário e converter o depósito em renda.

Diante da ausência de perigo na demora, foi indeferido o requerimento de tutela antecipada recursal (fl. 15 e verso).

Intimada (fl. 17), a agremiação deixou de apresentar contrarrazões (fl. 18).

Em seu parecer, o Procurador Regional Eleitoral manifestou-se pelo não conhecimento do agravo quanto ao pedido de conversão do depósito em renda e por conhecer e prover o recurso no tocante ao pedido de redirecionamento da cobrança para os responsáveis partidários (fls. 23-28v.).

É o relatório.

 

VOTO

1. PRELIMINAR

1.1. Cabimento do recurso

Preliminarmente, destaco ser cabível o agravo de instrumento. A jurisprudência já se firmou no sentido de que, em sede de execução fiscal oriunda de dívida eleitoral, cabe a interposição de agravo de instrumento fundado na legislação processual civil, em face da aplicação subsidiária do CPC à execução fiscal, conforme prevê o art. 1º da Lei n. 6.830/80.

Entendo que igual compreensão deve ser adotada na fase de cumprimento de sentença dos feitos eleitorais, basicamente por dois fundamentos distintos.

Primeiro, porque esta fase é etapa do processo judicial alheia à matéria eleitoral propriamente dita. Nela não se discute o direito eleitoral, mas as técnicas de expropriação, as quais, por inexistirem regras específicas no direito eleitoral, são tomadas de empréstimo do Código de Processo Civil.

Segundo, porque em fase de cumprimento de sentença não se fala em decisão definitiva, que ponha fim ao processo, mas em procedimento voltado à cobrança de valores e expropriação de bens da agremiação. A técnica recursal de admitir insurgências somente após a decisão definitiva, adotada no direito eleitoral, é incompatível com as características do cumprimento de sentença, cujas decisões são preclusivas e somente admitem recursos por instrumento, a fim de viabilizar o seguimento do processo.

Assim, adequado o agravo de instrumento, o qual, ademais, foi manejado dentro do prazo recursal.

1.2. Conhecimento do pedido de conversão da penhora em renda

Ainda em matéria preliminar, o Ministério Público manifestou-se pelo não conhecimento do recurso quanto ao pedido de conversão do valor bloqueado em renda, tendo em vista que o juízo de primeiro grau não se manifestou a respeito desse pedido.

De fato, a União formulou requerimento de conversão do depósito em renda, mas o juízo de primeiro grau silenciou quanto a este pedido. Opostos embargos de declaração, nos quais foi suscitada a omissão, novamente o juízo manteve-se silente quanto ao ponto.

Todavia, entendo que deva ser conhecido o recurso também quanto a este pedido, tendo em vista o disposto no art. 1.013, § 3º, III, do novo CPC, o qual determina que, mesmo sendo omissa a decisão recorrida, deverá o Tribunal realizar o julgamento do pedido. Reproduzo o dispositivo em questão:

Art. 1.013. A apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada.

§ 3º Se o processo estiver em condições de imediato julgamento, o tribunal deve decidir desde logo o mérito quando:

III - constatar a omissão no exame de um dos pedidos, hipótese em que poderá julgá-lo.

Destaco que a interposição do recurso sob a vigência do CPC de 1973 não impede a aplicação da referida regra. Embora o caput do art. 1.013 refira-se ao efeito devolutivo do recurso e, portanto, somente deva incidir sobre insurgências interpostas após a vigência do novo código, entendo que o § 3º do referido artigo traz verdadeira regra de julgamento, incidindo, assim, imediatamente nos julgamentos realizados a contar da vigência no novo código, independentemente da data de interposição do recurso, conforme estabelece o art. 14 do CPC/15.

Dessa forma, entendo que deva ser integralmente conhecido o recurso, afastando a preliminar suscitada pelo douto Procurador Regional Eleitoral.

 

2. MÉRITO

No mérito, a União formulou pedido ao juízo de primeiro grau para que fosse (a) redirecionado o cumprimento de sentença aos responsáveis pelas contas partidárias e (b) convertido em renda o valor de R$ 500,22, penhorado na conta da agremiação pelo sistema BACENJUD.

Passo à análise individualizada dos requerimentos.

2.1. Redirecionamento da obrigação

O pedido de redirecionamento da obrigação para os responsáveis das contas partidárias foi indeferido pelo juízo de primeiro grau, sob o fundamento de que a desconsideração da personalidade jurídica exige a demonstração do uso fraudulento da pessoa jurídica por seus dirigentes, não bastando para tanto o mero inadimplemento da obrigação.

A recorrente insurge-se, alegando que as regras do Direito Civil não se aplicam ao caso, tendo em vista a existência de normas específicas no Direito Eleitoral  que o regulamentam. Defende a incidência do art. 34, § 1º, da Resolução n. 21.841/04 e art. 34, II, da Lei n. 9.096/95.

Entendo não assistir razão à recorrente.

Inicialmente, cumpre destacar que o art. 34, § 1º, da Resolução n. 21.841/04 não tem aplicação ao caso concreto. Reproduzo o aludido artigo:

Art. 34. Diante da omissão no dever de prestar contas ou de irregularidade na aplicação dos recursos do Fundo Partidário, o juiz eleitoral ou o presidente do Tribunal Eleitoral, conforme o caso, por meio de notificação, assinará prazo improrrogável de 60 dias, a contar do trânsito em julgado da decisão que considerou as contas desaprovadas ou não prestadas, para que o partido providencie o recolhimento integral ao erário dos valores referentes ao Fundo Partidário dos quais não tenha prestado contas ou do montante cuja aplicação tenha sido julgada irregular.

§ 1º À falta do recolhimento de que trata o caput, os dirigentes partidários responsáveis pelas contas em exame são notificados para, em igual prazo, proceder ao recolhimento. (Grifei.)

Conforme se depreende, a norma em comento refere-se exclusivamente à ausência de prestação de contas ou aplicação irregular de recursos do Fundo Partidário.

Diversa é a situação dos autos, que tratam de valores a serem recolhidos porque não tiveram sua origem identificada, conforme expressamente mencionam os documentos das folhas 406 a 409.

A obrigação ora exigida possui fundamento na origem não identificada dos valores recebidos pela agremiação, e o art. 34 acima transcrito disciplina o recolhimento de montantes do Fundo Partidário irregularmente aplicados, não havendo, portanto, que se falar da sua incidência no caso em tela.

Relativamente ao disposto no art. 34, II, da Lei n. 9.096/95 merece ser transcrita a norma:

Art. 34. A Justiça Eleitoral exerce a fiscalização sobre a escrituração contábil e a prestação de contas do partido e das despesas de campanha eleitoral, devendo atestar se elas refletem adequadamente a real movimentação financeira, os dispêndios e recursos aplicados nas campanhas eleitorais, exigindo a observação das seguintes normas:

II - caracterização da responsabilidade dos dirigentes do partido e comitês, inclusive do tesoureiro, que responderão, civil e criminalmente, por quaisquer irregularidades.

De fato, o aludido artigo estabelece a responsabilidade dos dirigentes partidários e tesoureiro pelas irregularidades nas contas da agremiação. Todavia, trata-se de regra genérica de responsabilização, da qual não se pode extrair que os dirigentes serão chamados a adimplir as obrigações não cumpridas pelo partido.

Essa regra genérica de responsabilização dos dirigentes e tesoureiros depende de outras normas que a torne mais concreta. Nesse sentido, a Resolução n. 21.841/04 estabelecia a instauração de Tomada de Contas Especial, caso não fosse promovida a recomposição do erário (arts. 35 a 38), e a Resolução n. 23.464/15, ao suprimir esse procedimento, estabeleceu que os responsáveis serão citados para defesa dentro do processo de prestação de contas (art. 38).

Essa responsabilidade dos dirigentes e tesoureiros, portanto, somente é concretizada por meio de procedimentos que permitam a sua manifestação prévia e apurem as suas condutas para, somente então, responsabilizá-los pessoalmente pelas irregularidades da agremiação.

Distinta é a situação pretendida pela recorrente, na qual busca redirecionar o cumprimento de sentença para os dirigentes partidários tão somente porque a agremiação não possui bens, sem permitir-lhes prévia manifestação nem apurar sua contribuição para a irregularidade que gerou o débito.

Dessa forma, os dispositivos legais suscitados pela recorrente não determinam o redirecionamento da obrigação para os responsáveis partidários, restando analisar o pleito da União à luz da legislação civil, como procedeu o juízo de primeiro grau.

Nessa linha, o redirecionamento da obrigação é possível nas hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, disciplinada no art. 50 do Código Civil, não bastando para tanto o mero inadimplemento da dívida pela agremiação, exigindo-se a demonstração de atos de abuso da pessoa jurídica, conforme pacífica jurisprudência:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL.

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INVIABILIDADE.

INTELIGÊNCIA DO ART. 50 DO CC/2002. APLICAÇÃO DA TEORIA MAIOR DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INEXISTÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO DESVIO DE FINALIDADE OU DE CONFUSÃO PATRIMONIAL.

PRECEDENTES. AGRAVO NÃO PROVIDO.

[...]

3. No caso, em que se trata de relações jurídicas de natureza civil-empresarial, o legislador pátrio, no art. 50 do CC de 2002, adotou a teoria maior da desconsideração, que exige a demonstração da ocorrência de elemento objetivo relativo a qualquer um dos requisitos previstos na norma, caracterizadores de abuso da personalidade jurídica, como excesso de mandato, demonstração do desvio de finalidade (ato intencional dos sócios em fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica) ou a demonstração de confusão patrimonial (caracterizada pela inexistência, no campo dos fatos, de separação patrimonial entre o patrimônio da pessoa jurídica e dos sócios ou, ainda, dos haveres de diversas pessoas jurídicas).

4. A mera demonstração de inexistência de patrimônio da pessoa jurídica ou de dissolução irregular da empresa sem a devida baixa na junta comercial, por si só, não ensejam a desconsideração da personalidade jurídica. Precedentes.

[...]

7. Agravo interno não provido.

(STJ, AgRg no AREsp 347.476/DF, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 05.5.2016, DJE 17.5.2016.)

A mesma linha seguiu o egrégio Tribunal Superior Eleitoral no julgamento do RESPE 27918, cuja ementa transcrevo:

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. REDIRECIONAMENTO CONTRA PRESIDENTE DE PARTIDO. MULTA ELEITORAL. CARÁTER NÃO TRIBUTÁRIO. IMPOSSIBILIDADE. INAPLICABILIDADE DO ART. 135, INCISO III, DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. SÚMULA 83 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DESPROVIMENTO.

1. Conforme jurisprudência desta Corte, "O art. 135, III, do Código Tributário Nacional é inaplicável às execuções de dívidas decorrentes de multa que não possua natureza tributária, o que obsta a inclusão do dirigente na condição de responsável no polo passivo da demanda executiva. Precedentes do STJ: AgRg no Ag nº 1.208.897, rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe de 22.2.2011; REsp nº 1.038.922, rel. Min. Eliana Calmon, DJe de 4.11.2008. (REspe nº 26.242 [34731-09]/AC, rel. Min. HENRIQUE NEVES DA SILVA, DJe de 3.2.2014).

2. Análise do feito sob a ótica do art. 50 do Código Civil - desconsideração da personalidade jurídica - não foi objeto da decisão agravada. Neste contexto, é inviável o agravo que não ataca especificamente os fundamentos da decisão agravada. Incidência da Súmula 182 do STJ.

3. Agravo regimental desprovido.

(TSE, Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 27918, Acórdão de 14.5.2015, Relatora Min. MARIA THEREZA ROCHA DE ASSIS MOURA, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 108, Data 10.6.2015, Página 48-49.)

Na oportunidade, aquela egrégia Corte afastou a incidência do art. 135, III, do CTN, reconhecendo que a norma se aplica apenas às dívidas de natureza tributária; e embora tenha deixado de julgar o caso sob a ótica do art. 50 do Código Civil, admitiu, em tese, a sua incidência nas execuções processadas perante a Justiça Eleitoral, como se extrai do voto da Ministra Maria Thereza de Assis Moura:

Ainda que fosse o caso de aplicação do art. 50 do referido Código, a execução só poderia ser redirecionada em face do agravado, na qualidade de representante legal do partido executado, caso a UNIÃO comprovasse a existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. Porém, o acórdão regional nada disse sobre qualquer destes requisitos.

Assim, afigura-se correta a decisão recorrida, pois não foram demonstrados atos fraudulentos voltados a frustrar o cumprimento da obrigação, mas mero inadimplemento.

O douto procurador entendeu estar caracterizado o desvio patrimonial do partido, pois a agremiação justificou que as verbas de origem não identificada se referiam ao pagamento de empréstimo realizado pelo partido ao evento “1º Festival Canto Missioneiro da Música”, coordenado pela Secretaria Municipal da Cultura. Entendeu, assim, caracterizado o desvio de finalidade e a confusão patrimonial entre a prefeitura e o ente partidário.

Todavia, o evento não se presta a justificar a desconsideração, pois o emprego irregular apontado pelo órgão ministerial ocorreu em 2008 (fls. 310-312), ainda antes da formação do título executivo judicial cujo cumprimento está agora sendo efetivado.

Ademais, o alegado empréstimo realizado ao município, ao que tudo indica, cuidou-se de fato isolado e foi imediatamente devolvido à agremiação no mesmo exercício financeiro, conforme alegou o partido.

Diferente é a confusão patrimonial exigida para a desconsideração, a qual exige que os sócios ou administradores utilizem recursos da empresa para financiar gastos particulares, sem qualquer relação com a atividade empresarial, justificando o alcance dos patrimônios pessoais para pagamento das dívidas da pessoa jurídica, pois, em última análise, não há divisão precisa entre os patrimônios da pessoa jurídica e da pessoa física.

Como se percebe, portanto, o instituto exige situação bastante distinta da verificada nos autos, em que houve ingresso de recurso na conta do partido cuja origem não foi demonstrada. Ademais, se houvesse confusão patrimonial no caso concreto, esta se daria entre as contas do partido e do município, e não com o patrimônio dos dirigentes partidários.

Dessa forma, não se verificam razões que justifiquem o redirecionamento da obrigação para os dirigentes partidários.

2.2. Conversão do depósito em renda

O juízo realizou a penhora do valor de R$ 500,22, identificado na conta bancária da agremiação por meio do sistema BACENJUD, pretendendo a recorrente que este valor seja liberado ao credor.

Deve ser deferida a conversão do valor penhorado em renda.

A parte devedora foi devidamente intimada, por meio de seu procurador, para efetuar o pagamento (fl. 442) e apresentou impugnação (fls. 445-447), a qual foi julgada improcedente (fl. 511v.).

Após, o juízo procedeu à penhora do valor existente na conta bancária da agremiação (fls. 515-517v.) e a parte foi intimada desse ato (fl. 527), deixando transcorrer in albis o prazo para manifestação (fl. 529).

Dessa forma, verifica-se que foi observado o procedimento legal e oferecidas à parte condições de impugnar a penhora, sem que tenha aportado aos autos qualquer razão impeditiva à conversão pretendida.

Nesse sentido é a manifestação ministerial:

Ad argumentandum. Caso, entretanto, essa Corte se veja apta a conferir seguimento e a analisar o mérito do pedido, opina-se por dar provimento à questão específica. Quer dizer, considerando a liquidez do bem penhorado, em condições de satisfazer, ainda que minimamente, o crédito, e inexistindo comprovação pelo agravado de que o valor bloqueado está revestido de alguma exceção que o torne impenhorável, não há razão para que não seja deferida a transformação da penhora em renda da União, a fim de resguardar o interesse público inerente à satisfação do crédito.

Deve-se deferir, portanto, a pretensão da recorrente neste ponto.

 

DIANTE DO EXPOSTO, afastada a preliminar, voto pelo parcial provimento do agravo para determinar a conversão em renda para a União dos valores bloqueados pelo juízo, mantendo a decisão que indeferiu o redirecionamento da obrigação para os responsáveis.