RC - 3395 - Sessão: 19/05/2016 às 17:00

(Voto divergente)

Inicialmente, registro que compactuo com o eminente relator quanto ao conhecimento dos recursos, bem como quanto à rejeição das preliminares aventadas.

Todavia, peço redobradas vênias ao caro colega para divergir quanto à absolvição dos réus, porque, após minucioso exame dos autos, estou convencida do acerto da sentença.

Sob o entendimento de que o dolo específico não restou caracterizado, o nobre relator votou pelo provimento dos recursos dos réus.

Cumpre ressaltar, todavia, que o próprio relator reconheceu ser fato incontroverso a ocorrência do transporte. Assim referiu em seu voto: “Ora, o cometimento do transporte é fato incontroverso, e a lei não pune o dolo de transportar, e sim o dolo de aliciar eleitores com o fornecimento de transporte”.

Portanto, a questão aqui cinge-se a verificar se a prática delituosa tinha como finalidade (elemento subjetivo do tipo ou dolo específico) a obtenção de vantagem eleitoral, requisito indispensável para a consumação do crime sob análise.

Adianto que entendo que sim. Estou convicta de que o dolo específico restou configurado.

E estou convencida não apenas do acerto da sentença, mas da existência de provas e da tipicidade da conduta.

E indago aos eminentes pares: Qual é a intenção do candidato ou do cabo eleitoral ao transportar eleitor na data das eleições a não ser obter o voto? E mais, quem busca um eleitor para votar ou dá a indigitada carona a alguém que não peça votos ou em seu candidato no dia das eleições? Desculpem, mas nem mesmo a alegada amizade, aliás, não suficientemente comprovada, justifica a dita carona.

E apenas para exercício da dialética, pois entendo que o dolo específico restou comprovado, julgo importante referir que não desconheço a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral em sentido diverso, mas penso que a norma legal é clara e precisa, qual seja, transportar eleitor na data das eleições é crime eleitoral, e a finalidade de exigência do voto não está inserida na norma.

Com efeito, a conduta prevista no art. 11, inc. III, c/c o art. 5º, ambos da Lei n. 6.091/74, imputa como delito eleitoral o descumprimento da vedação de “fazer transporte” de eleitores desde o dia anterior até o dia posterior à eleição.

Destaco ainda que a norma é expressa e não permite interpretação. Além do mais, o tipo não dispõe a exigência do voto.

Vejamos o art. 5º da Lei n. 6.091/74:

Art. 5º Nenhum veículo ou embarcação poderá fazer transporte de eleitores desde o dia anterior até o posterior à eleição, salvo:

I - a serviço da justiça eleitoral,

II - coletivos de linhas regulares e não fretados;

III - de uso individual do proprietário, para o exercício do próprio voto e dos membros da sua família;

IV - o serviço normal, sem finalidade eleitoral, de veículos de aluguel não atingidos pela requisição de que trata o artigo 2º.

E o art. 11, inc. III, da mesma lei:

Art. 11. Constitui crime eleitoral:

[...]

III - descumprir a proibição dos artigos 5º, 8º e 10º.

Aliás, acredito que seja de uma certa ingenuidade acreditar que o candidato, por livre e espontânea vontade, coloca gasolina no seu carro, busca o eleitor para votar, e o leva de volta para casa, sem interesse no voto, talvez apenas por ser um bom cristão.

Desculpem, mas com toda a vênia, divirjo da posição adotada pelo eminente relator, e que não está só, porque lastreada em jurisprudência do TSE. Não pactuo da tese.

E mais, acredito que a interpretação, a bem da verdade, visa afastar o tipo penal, pois jamais alguém será punido pelo crime de transporte de eleitores, porque a prova de que efetivamente exigiu o voto é bem difícil de produzir, posto que o referido eleitor, como sói acontecer, nega o fato.

Em que pese o exposto, no caso, a afirmação das eleitoras de que encontraram Arnildo próximo à rodoviária, e este lhes ofereceu carona, é risível.

Em dia de eleição, com todo o movimento do pleito, Arnildo estava ali, próximo à rodoviária, parado. Quem sabe apenas olhando o movimento – já que provavelmente não tinha o que fazer –, quando, então, alguém passou e pediu uma carona para votar. Além do fato de que reside no centro da cidade e a ocorrência se deu no interior do município. Isso, se não tivesse ele dito que pediu o carro emprestado para a outra ré, Iolanda, que é vereadora, porque pretendia, no dia da eleição, alugar um salão para uma festa. Ora, se precisava ir até o balneário e por isso pediu o carro, o que estava fazendo na rodoviária?

E não é demais referir que Iolanda, a proprietária do carro, é vereadora.

Então, no dia da eleição, quando a vereadora teria muitos afazeres, quem sabe ao menos acompanhar as eleições, a fiscalização nas mesas, etc., emprestou o veículo de seu irmão para seu amigo, para que este fosse alugar um salão não sei aonde, amigo este que foi preso em flagrante por transporte de eleitores, com farto material de propaganda política, no referido veículo do irmão da vereadora, ora também ré.

E a polícia? Imagina-se que tem também o hábito de prender as pessoas que simplesmente estão dando uma carona? É claro que não, porque a abordagem apenas acontece após as denúncias, e reiteradas denúncias e até acompanhamento de perto pela autoridade policial da situação. Absolutamente, o policial não age assim, abordando e prendendo inocentes, sem uma prova mínima, ou indícios seguros da prática delitiva. No caso, foi exatamente isso que afirmou o policial militar ao ser ouvido na fase pré-processual, ou seja, que receberam denúncia de transporte ilegal de eleitores no interior do município, inclusive com descrição do carro da ré.

Em relação a isso, prezados colegas, cabe observar que há três situações recorrentes nesses processos envolvendo o crime de transporte ilegal de eleitores que temos julgado nesta Corte: (1) quando ouvidas em juízo, as testemunhas mudam substancialmente os depoimentos prestados em sede policial; (2) as autoridades policiais – membros da Brigada Militar e da Polícia Civil – são constantemente acusadas de realizar os flagrantes de forma despropositada e sem base legal; e (3) os membros do Ministério Público que oferecem a denúncia são colocados sob suspeita de estarem “perseguindo” os réus e os candidatos a estes relacionados.

Importante destacar que o policial militar Rene Knapp, ao ser ouvido pela Delegada de Polícia por ocasião da prisão em flagrante (fls. 09 e 23-24 dos autos) afirmou: “Quanto ao veículo o condutor afirmou que não é de sua propriedade e que o mesmo pertence à vereadora de Cândido Godói, Iolanda Seibel Ludwig, e que a mesma havia solicitado que o indiciado pegasse o veículo nesta data, pela manhã, para levar as eleitoras até o local de votação. [...] No porta-malas do veículo foi localizado farto material de campanha dos candidatos do PP e PSDB”.

No mesmo sentido, o policial militar Valdemar Bourschei (fl. 25) confirmou ter recebido a denúncia anônima de transporte de eleitores na Linha Godói Centro, com a descrição do veículo da ré, motivo pelo qual dirigiu-se ao local indicado, acompanhado do soldado Rene, e lá chegando abordaram o veículo, momento no qual foi “dito por Amarildo, o condutor do veículo, que estava transportando eleitores, pegando na cidade e levando votar e trazendo de volta e ele também informou que o veículo não era dele, que tinha pego na frente da casa da Iolanda”.

Tereza Dresch e Cleusa Claudete Dresch, mãe e filha, quando ouvidas pela autoridade policial (fls. 26-27), embora tenham negado o transporte para votar, não alegaram carona e amizade, disseram até que pagariam uma quantia ao acusado Arnildo pelo transporte, tese, aliás, sequer ventilada pelo réu. Em juízo, contudo, como era de se esperar, veio a alegação de carona a fim de corroborar a tese dos réus.

E cabe ressaltar que não merece acolhimento o argumento de que a condenação foi efetivada tendo por base depoimentos prestados na esfera policial, o que feriria os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, do devido processo legal, da presunção de inocência, da dignidade da pessoa humana, do Estado Democrático de Direito.

A respeito, o STF, guardião da Constituição Federal, já se pronunciou no sentido de que é válida a condenação criminal que se fundamenta também na prova policial amparada por outros indícios e provas trazidas na instrução judicial, que passaram pelo crivo do contraditório e da ampla defesa:

EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. FALSIDADE IDEOLÓGICA. ALEGAÇÕES DE NULIDADE EM AÇÃO PENAL MILITAR. IMPROCEDÊNCIA. PRECEDENTES. ORDEM DENEGADA.

[...]

5. Os elementos do inquérito podem influir na formação do livre convencimento do juiz para a decisão da causa quando complementam outros indícios e provas que passam pelo crivo do contraditório em juízo. 6. Para afastar a premissa de que a condenação não se fundamentou apenas em provas produzidas na fase de inquérito e decidir pela anulação do acórdão condenatório, seria imprescindível o reexame dos fatos e das provas que permeiam a lide. 7. O art. 93, inc. IX, da Constituição Federal exige que o acórdão ou decisão sejam fundamentados, sem determinar, contudo, o exame pormenorizado de cada uma das alegações ou provas, nem que seja correta a fundamentação expendida. 8. Ordem denegada.

(HC 119315, Relatora: Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, julgado em 04.11.2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-223 DIVULG 12.11.2014 PUBLIC 13.11.2014.) (Grifei.)

Quanto a presença do dolo específico, em outros processos julgados por esta Corte manifestei que no ato da “carona” está implícito o pedido de voto ao grupo político que está “agraciando o eleitor” com o transporte.

Assim referi no julgamento do Recurso Criminal n. 52-13.2013.6.21.0142, julgado em 07.10.2015:

É sabido que nas manobras criminosas eleitorais os candidatos costumam utilizar-se de pessoas interpostas, deixando de atuar de forma direta na prática das condutas delituosas, o que torna muito difícil a individualização correta dos reais autores e partícipes.

Assim, o postulante ao cargo político pode elaborar, organizar e dirigir a conduta criminosa sem, contudo, executá-la propriamente.

Assim, nos crimes eleitorais, em especial nos de boca de urna e transporte de eleitores, depois de elaborar, organizar e dirigir as condutas, o criminoso pode verificar a execução destas confortavelmente na poltrona de sua casa, em pleno domingo de eleição, aguardando o transcorrer do dia no qual poderá sagrar-se eleito.

E é justamente o que o conjunto probatório dos autos demonstra.

Trata-se, sim, de crime comprovadamente premeditado e organizado de forma a ser executado de forma amplamente eficaz.

PAULO PARERA, juntamente como os demais corréus, executou um esquema criminoso de transporte de eleitores na data do pleito de 2012 com a finalidade de angariar votos para si na campanha ao legislativo municipal.

O crime foi extremamente bem organizado e planejado, com a utilização de tabelas, mapas, itinerários e horários previamente definidos, de modo a aproveitar ao máximo o período de duração da votação, compreendido entre as oito horas da manhã e as dezessete horas da tarde do domingo eleitoral.

Foram cooptadas como participantes servidoras do programa Primeira Infância Melhor (PIM), uma ação municipal de promoção do desenvolvimento integral na primeira infância, desenvolvida através de visitas domiciliares e comunitárias realizadas semanalmente a famílias em situação de risco e vulnerabilidade social, visando o fortalecimento de suas competências para educar e cuidar de suas crianças. Servidoras estas, contratadas em regime de convênio, percebendo baixos rendimentos – pouco mais que um salário-mínimo – mas que deste dependem para sustentar a si e as suas famílias.

Estas servidoras, previamente instruídas por SIDENIR e PAULO PARERA, utilizaram de sua condição de assistentes sociais para fazer propaganda eleitoral do candidato PAULO PARERA, por meio da distribuição de impressos e pedido para que as famílias afixassem cartazes do referido candidato na fachada de suas casas.

Por meio desta conduta, funcionavam como um elo, criando um vínculo entre o candidato e as famílias de potenciais eleitores. Criado o vínculo, oferecia-se a “carona” para o dia da eleição. Os nomes daqueles que aceitavam a proposta eram anotados, assim como seus endereços, locais de votação e o horário no qual o transporte seria realizado. E, criado o vínculo, desnecessário era fazer qualquer pedido de voto durante o transporte, pois os eleitores já tinham conhecimento de que quem os estava transportando eram os apoiadores de PAULO PARERA.

Na obstante isso, no veículo, durante o trajeto até o local de votação, não haveria sequer necessidade do pedido expresso de voto, pois tal pedido já havia sido feito anteriormente, quando da combinação do transporte, assim como estava sendo ratificado e perfectibilizado implicitamente por meio da propaganda existente no automóvel.

[…]

Ou seja, na busca da consecução de um projeto político houve uma miscigenação entre as políticas sociais, o ato criminoso e o direito ao sufrágio, causando confusão mental no eleitor, o qual, em sua situação de vulnerabilidade, apresentou dificuldade em diferenciar o certo do errado, entendendo o transporte como um benefício, de cuja gratidão o candidato torna-se merecedor. E o eleitor agradece como? Pelo voto. Sempre pelo voto. Pelo direito constitucional do voto. (Grifei.)

E no mesmo sentido firmei minha compreensão no Recurso Criminal n. 4-77.2015.6.21.0047:

Nota-se, portanto, que por meio desta conduta de oferecimento de “carona”, Lucas e Florentina funcionavam como um elo, criando vínculo entre os candidatos e os transportados. E, criado o vínculo, desnecessário era fazer qualquer pedido de voto durante o trajeto, pois os eleitores já tinham conhecimento de que quem os estava conduzindo eram os apoiadores dos candidatos Aécio Neves, Ana Amélia Lemos e Frederico Antunes.

Configurada, pois, a presença do elemento subjetivo do tipo ou dolo específico, qual seja, a finalidade de obtenção de vantagem eleitoral, requisito indispensável para a consumação do crime sob análise. (Grifei.)

Consequentemente, caros colegas, não sejamos ingênuos, o que estavam fazendo era transporte de eleitores, e não de forma gratuita ou amiga, mas em troca de voto, e é isso que os cabos eleitorais fazem no dia das eleições, caso não sejam coibidos pela Justiça, Ministério Público e autoridades policiais.

E no mesmo sentido concluiu o magistrado sentenciante (fl. 246):

Não é preciso ser expert em matemática para descartar a coincidência sustentada pelos requeridos: a probabilidade de, em um dia de eleição, um carro de terceiro, com material político-partidário no porta-malas, transportando duas eleitoras, ter sido casualmente emprestado para o condutor ir solicitar vagas de camping para a virada do ano e ser abordado após denúncia de transporte irregular?

Com a devida vênia, é evidente que o veículo foi utilizado com a finalidade precípua de transportar eleitores, tanto que mantinha, no porta-malas, material político-partidário que os réus negam ter conhecimento.

Nessa mesma linha de raciocínio, cabe trazer manifestação do Ministro do STF, Luiz Fux, ao receber a denúncia na Ação Penal 470:

O critério de que a condenação tenha que provir de uma convicção formada para “além da dúvida razoável” não impõe que qualquer mínima ou remota possibilidade aventada pelo acusado já impeça que se chegue a um juízo condenatório. Toda vez que as dúvidas que surjam das alegações de defesa e das provas favoráveis à versão dos acusados não forem razoáveis, não forem críveis diante das demais provas, pode haver condenação. Lembremos que a presunção de não culpabilidade não transforma o critério da “dúvida razoável” em “certeza absoluta”. (Grifei.)

Assim, com toda a certeza, eminentes colegas, tal como afirmado pelo magistrado sentenciante, parafraseando Shakespeare: “Há algo de podre no reino da Dinamarca”. Esta frase, cunhada por Shakespeare, se referia a traições, homicídios, fatos obscuros que ocorriam na estória da tragédia contada em Hamlet.

Na atualidade, tal expressão é utilizada para referir fatos ocultos, que se escondem além do que se pode ver, mas que podem ser percebidos, constatados, identificados por outros sentidos. Ou seja, por trás do que se vê há outros fatos não revelados, mas que, pelas suas características de verossimilhança, inundam o olfato com odor fétido. Cheiram mal. Cheiram a podre. E é isso que sinto quanto aos fatos analisados nestes autos.

Portanto, concluo que a prova produzida é suficiente para a condenação, motivo pelo qual a sentença do magistrado merece confirmação, inclusive pelos próprios fundamentos.

 

Ainda, a fim de integrar o julgamento, registro que Procuradoria Regional Eleitoral requer, caso seja mantida a condenação de primeiro grau, a imediata execução provisória da pena, nos termos da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no HC 126.292.

Como é do conhecimento de todos, no dia 17 de fevereiro deste ano o Supremo Tribunal Federal denegou a ordem ao Habeas Corpus n. 126.292 (publicado no DJE do STF em 17.5.2016), no qual discutia-se a legitimidade de ato do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP) que, ao negar provimento a recurso exclusivo da defesa, determinou o imediato início da execução da pena.

No caso que deu origem ao habeas, um indivíduo havia sido condenado à pena de 5 anos e 4 meses de reclusão, em regime inicial fechado, pela prática do crime de roubo qualificado (artigo 157, parágrafo 2º, incisos I e II, do CP). A sentença condenatória possibilitou ao réu o direito de recorrer em liberdade. A defesa recorreu ao TJ/SP, que negou provimento ao apelo e determinou a expedição de mandado de prisão contra o réu. Ao interpor o habeas junto ao STF, a defesa alegou que o Tribunal de São Paulo teria decretado a prisão sem qualquer motivação, constituindo flagrante constrangimento ilegal, visto que o magistrado de primeiro grau permitiu que o réu recorresse em liberdade.

Ao denegar a ordem, o STF entendeu que o início imediato da execução da pena, após a confirmação da sentença condenatória em segundo grau, não ofende o princípio constitucional da presunção da inocência.

O precedente retoma o entendimento anterior do Supremo, modificado em fevereiro de 2009, quando, no julgamento do HC 84.078, de relatoria do então ministro Eros Grau, a Corte passou a condicionar a execução da pena ao trânsito em julgado da condenação, ressalvando, por óbvio, a possibilidade de prisão preventiva ou temporária, modalidades de prisão cautelar. O HC 84.078 restou assim ementado:

HABEAS CORPUS. INCONSTITUCIONALIDADE DA CHAMADA "EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA". ART. 5º, LVII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ART. 1º, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. O art. 637 do CPP estabelece que "[o] recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância para a execução da sentença". A Lei de Execução Penal condicionou a execução da pena privativa de liberdade ao trânsito em julgado da sentença condenatória. A Constituição do Brasil de 1988 definiu, em seu art. 5º, inciso LVII, que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". 2. Daí que os preceitos veiculados pela Lei n. 7.210/84, além de adequados à ordem constitucional vigente, sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP. 3. A prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar. 4. A ampla defesa, não se a pode visualizar de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária. Por isso a execução da sentença após o julgamento do recurso de apelação significa, também, restrição do direito de defesa, caracterizando desequilíbrio entre a pretensão estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão. 5. Prisão temporária, restrição dos efeitos da interposição de recursos em matéria penal e punição exemplar, sem qualquer contemplação, nos "crimes hediondos" exprimem muito bem o sentimento que EVANDRO LINS sintetizou na seguinte assertiva: "Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinqüente". 6. A antecipação da execução penal, ademais de incompatível com o texto da Constituição, apenas poderia ser justificada em nome da conveniência dos magistrados --- não do processo penal. A prestigiar-se o princípio constitucional, dizem, os tribunais [leia-se STJ e STF] serão inundados por recursos especiais e extraordinários e subseqüentes agravos e embargos, além do que "ninguém mais será preso". Eis o que poderia ser apontado como incitação à "jurisprudência defensiva", que, no extremo, reduz a amplitude ou mesmo amputa garantias constitucionais. A comodidade, a melhor operacionalidade de funcionamento do STF não pode ser lograda a esse preço. 7. No RE 482.006, relator o Ministro Lewandowski, quando foi debatida a constitucionalidade de preceito de lei estadual mineira que impõe a redução de vencimentos de servidores públicos afastados de suas funções por responderem a processo penal em razão da suposta prática de crime funcional , o STF afirmou, por unanimidade, que o preceito implica flagrante viola[art. 2º da Lei n. 2.364/61, que deu nova redação à Lei n. 869/52]ção do disposto no inciso LVII do art. 5º da Constituição do Brasil. Isso porque --- disse o relator --- "a se admitir a redução da remuneração dos servidores em tais hipóteses, estar-se-ia validando verdadeira antecipação de pena, sem que esta tenha sido precedida do devido processo legal, e antes mesmo de qualquer condenação, nada importando que haja previsão de devolução das diferenças, em caso de absolvição". Daí porque a Corte decidiu, por unanimidade, sonoramente, no sentido do não recebimento do preceito da lei estadual pela Constituição de 1.988, afirmando de modo unânime a impossibilidade de antecipação de qualquer efeito afeto à propriedade anteriormente ao seu trânsito em julgado. A Corte que vigorosamente prestigia o disposto no preceito constitucional em nome da garantia da propriedade não a deve negar quando se trate da garantia da liberdade, mesmo porque a propriedade tem mais a ver com as elites; a ameaça às liberdades alcança de modo efetivo as classes subalternas. 8. Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade (art. 1º, III, da Constituição do Brasil). É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar plenamente quando transitada em julgado a condenação de cada qual Ordem concedida.

(STF - HC 84.078 MG, Relator: Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, Data de Julgamento: 05.02.2009.)

Ao emitir juízo denegatório à ordem do Habeas Corpus n. 126.292, o relator do processo, ministro Teori Zavascki, votou pela mudança do entendimento consolidado a partir do HC 84.078, no que foi seguido pelos ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. A ministra Rosa Weber abriu a divergência, defendendo a manutenção da jurisprudência pacificada naquela Corte.

A seguir, os ministros Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes acompanharam o relator.

Por sua vez, o ministro Marco Aurélio, lamentando a decisão que naquele momento já havia sido tomada pelo Supremo, seguiu a divergência para manter entendimento de que sentença só pode ser executada após o trânsito em julgado da condenação.

Após, acompanharam a divergência os ministros Celso de Mello, decano da Corte, e Ricardo Lewandowski, atual presidente do Supremo.

Portanto, por maioria de sete votos a quatro, o Pleno retornou ao entendimento anterior daquela Corte, afirmando ser possível a execução imediata da pena aplicada em decisão condenatória confirmada em segunda instância.

E essa é a questão com a qual nos deparamos agora: aplicar (ou não) a recente decisão do STF e determinar a execução imediata da pena.

Pois bem, adianto que me inclino pela não aplicação. Pedindo redobradas vênias à maioria dos ministros e ministras da Suprema Corte, entendo que determinar a imediata execução da pena, antes do trânsito em julgado da persecução criminal, é violar a cláusula constitucional consagradora da presunção de inocência disposta no art. 5º, inciso LVII, de nossa Constituição Federal, o qual preceitua que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

Segundo sintetizado no voto do ministro Teori:

[...] o tema relacionado com a execução provisória de sentenças penais condenatórias envolve reflexão sobre (a) o alcance do princípio da presunção da inocência aliado à (b) busca de um necessário equilíbrio entre esse princípio e a efetividade da função jurisdicional penal, que deve atender a valores caros não apenas aos acusados, mas também à sociedade, diante da realidade de nosso intricado e complexo sistema de justiça criminal.

Assim, após muito refletir sobre o tema, entendi por acompanhar a tese que restou vencida no julgamento do HC 126.292.

Em minha compreensão, não podemos afastar o princípio da presunção de inocência, positivado no inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal de 1988, sob pena de retroagirmos a um sistema de desrespeito dos direitos fundamentais insculpidos na Carta Magna.

E, nesse ponto, compactuo com a inteligência do ministro Celso de Mello, ao afirmar que:

[...] a Constituição brasileira promulgada em 1988 e destinada a reger uma sociedade fundada em bases genuinamente democráticas é bem o símbolo representativo da antítese ao absolutismo do Estado e à força opressiva do poder, considerado o contexto histórico que justificou, em nosso processo político, a ruptura com paradigmas autocráticos do passado e o banimento, por isso mesmo, no plano das liberdades públicas, de qualquer ensaio autoritário de uma inaceitável hermenêutica de submissão, somente justificável numa perspectiva “ex parte principis”, cujo efeito mais conspícuo, em face daqueles que presumem a culpabilidade do réu, será a virtual (e gravíssima) esterilização de uma das mais expressivas conquistas históricas da cidadania: o direito do indivíduo de jamais ser tratado, pelo Poder Público, como se culpado fosse (HC 126.292).

Ao defender a redação constitucional do princípio da presunção de inocência, o decano da mais alta Corte do nosso Poder Judiciário traz doutrina do eminente professor LUIZ FLÁVIO GOMES, em obra escrita com o professor VALÉRIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI, (Direito Penal – Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos/Pacto de San José da Costa Rica”, vol. 4/85-91, 2008, RT). Assim advertem os notáveis doutrinadores:

O correto é mesmo falar em princípio da presunção de inocência (tal como descrito na Convenção Americana), não em princípio da não-culpabilidade (…).

Trata-se de princípio consagrado não só no art. 8º, 2, da Convenção Americana senão também (em parte) no art. 5º, LVII, da Constituição Federal, segundo o qual toda pessoa se presume inocente até que tenha sido declarada culpada por sentença transitada em julgado. Tem previsão normativa desde 1789, posto que já constava da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Do princípio da presunção de inocência (‘todo acusado é presumido inocente até que se comprove sua culpabilidade’) emanam duas regras: (a) regra de tratamento e (b) regra probatória. ‘Regra de tratamento’: o acusado não pode ser tratado como condenado antes do trânsito em julgado final da sentença condenatória (CF, art. 5º, LVII).

O acusado, por força da regra que estamos estudando, tem o direito de receber a devida ‘consideração’ bem como o direito de ser tratado como não participante do fato imputado. Como ‘regra de tratamento’, a presunção de inocência impede qualquer antecipação de juízo condenatório ou de reconhecimento da culpabilidade do imputado, seja por situações, práticas, palavras, gestos etc., podendo-se exemplificar: a impropriedade de se manter o acusado em exposição humilhante no banco dos réus, o uso de algemas quando desnecessário, a divulgação abusiva de fatos e nomes de pessoas pelos meios de comunicação, a decretação ou manutenção de prisão cautelar desnecessária, a exigência de se recolher à prisão para apelar em razão da existência de condenação em primeira instância etc. É contrária à presunção de inocência a exibição de uma pessoa aos meios de comunicação vestida com traje infamante (Corte Interamericana, Caso Cantoral Benavides, Sentença de 18.08.2000, parágrafo 119).

Por esse motivo, o ministro Celso de Mello entende que:

[...]a consagração constitucional da presunção de inocência como direito fundamental de qualquer pessoa – independentemente da gravidade ou da hediondez do delito que lhe haja sido imputado – há de viabilizar, sob a perspectiva da liberdade, uma hermenêutica essencialmente emancipatória dos direitos básicos da pessoa humana, cuja prerrogativa de ser sempre considerada inocente, para todos e quaisquer efeitos, deve prevalecer, até o superveniente trânsito em julgado da condenação criminal, como uma cláusula de insuperável bloqueio à imposição prematura de quaisquer medidas que afetem ou restrinjam a esfera jurídica das pessoas em geral (HC 126.292).

Ou seja, ninguém pode ser considerado como culpado antes que sobrevenha contra ele condenação penal transitada em julgado. E esse tem sido o entendimento pacificado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

O POSTULADO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA IMPEDE QUE O ESTADO TRATE, COMO SE CULPADO FOSSE, AQUELE QUE AINDA NÃO SOFREU CONDENAÇÃO PENAL IRRECORRÍVEL.

– A prerrogativa jurídica da liberdade – que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) – não pode ser ofendida por interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais que culminem por consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos e garantias fundamentais proclamados pela Constituição da República, a ideologia da lei e da ordem. Mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, e até que sobrevenha sentença penal condenatória irrecorrível, não se revela possível – por efeito de insuperável vedação constitucional (CF, art. 5º, LVII) – presumir-lhe a culpabilidade. Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio constitucional da presunção de inocência, em nosso sistema jurídico, consagra, além de outras relevantes consequências, uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, por sentença do Poder Judiciário. Precedentes.

(HC 96.095/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO.)

Aqui, cumpre fazer uma ressalva. A tese vencedora exposta pelo ministro Teori no julgamento do HC 126.292, embora extremamente bem fundamentada – aliás, como costumam ser os votos daquele eminente julgador –, constitui precedente isolado naquela Corte constitucional. Precedente, diga-se, sem caráter vinculante. Precedente que se constitui em orientação, tal como sugeriu o ministro Teori em sua manifestação: "Essas são razões suficientes para justificar a proposta de orientação, que ora apresento, restaurando o tradicional entendimento desta Suprema Corte, no seguinte sentido: a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência". Precedente que não constitui súmula vinculante daquela Corte. Lembro que a súmula vinculante, instituída a partir da inclusão do artigo 103-A na Constituição Federal por meio da EC 45/2004, confere ao STF, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, a possibilidade de editar verbetes com efeito vinculante que contêm, de forma concisa, a jurisprudência consolidada daquela Corte sobre determinada matéria. A edição, o cancelamento e a revisão de súmulas vinculantes têm de ser aprovados por, no mínimo, oito ministros do STF, o equivalente a dois terços da composição daquele Tribunal, após manifestação do procurador-geral da República. A propósito, ressalto: como acima referido, a edição de súmula vinculante tem que ser aprovada por no mínimo oito, dos onze ministros do STF. O resultado da votação do HC 126.292, como já apontado, foi por sete votos a quatro. Assim, na atual composição do Supremo, tendo em vista a posição dos ministros exposta no HC 126.292, não se mostraria viável a edição de súmula vinculante dispondo que "a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência".

Por essas razões, entendo que devemos encarar o precedente com a devida cautela, visto que a numerosa e consolidada jurisprudência da Suprema Corte traz compreensão diversa.

Cabe igualmente registrar que, em minha compreensão, o preceito constitucional disposto no art. 5º, inciso LVII, não permite interpretações.

Segundo o ministro Marco Aurélio "há uma máxima, em termos de noção de interpretação, de hermenêutica, segundo a qual, onde o texto é claro e preciso, cessa a interpretação, sob pena de se reescrever a norma jurídica, e, no caso, o preceito constitucional. Há de vingar o princípio da autocontenção" (HC 126.292).

E esse também é o entendimento do ministro Ricardo Lewandowski (HC 126.292):

Assim como fiz, ao proferir um longo voto no HC 84.078, relatado pelo eminente Ministro Eros Grau, eu quero reafirmar que não consigo, assim como expressou o Ministro Marco Aurélio, ultrapassar a taxatividade desse dispositivo constitucional, que diz que a presunção de inocência se mantém até o trânsito em julgado. Isso é absolutamente taxativo, categórico; não vejo como se possa interpretar esse dispositivo. Voltando a, talvez, um ultrapassadíssimo preceito da antiga escola da exegese, eu diria que in claris cessat interpretatio. E aqui nós estamos, evidentemente, in claris, e aí não podemos interpretar, data venia.

E no mesmo norte segue a compreensão do ministro Celso de Mello (HC 126.292):

Veja-se, pois, que esta Corte, no caso em exame, está a expor e a interpretar o sentido da cláusula constitucional consagradora da presunção de inocência, tal como esta se acha definida pela nossa Constituição, cujo art. 5º, inciso LVII (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”), estabelece, de modo inequívoco, que a presunção de inocência somente perderá a sua eficácia e a sua força normativa após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

É por isso que se mostra inadequado invocar-se a prática e a experiência registradas nos Estados Unidos da América e na França, entre outros Estados democráticos, cujas Constituições, ao contrário da nossa, não impõem a necessária observância do trânsito em julgado da condenação criminal.

Mais intensa, portanto, no modelo constitucional brasileiro, a proteção à presunção de inocência.

Desse modo, infere-se que a norma disposta no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, é de evidente clareza. Não há, portanto, o que nela ser interpretado.

Vale lembrar que esta foi a intenção do constituinte originário. Intenção baseada em componentes de índole histórica, política e sociológica prevalentes naquele momento pelo qual atravessava o País, ao final da década de oitenta do século passado. E não vejo, na época contemporânea, elementos que justifiquem a alteração de tal preceito constitucional.

E, neste ponto, faço minhas as palavras do ministro Marco Aurélio (HC 126.292):

Reconheço que a Justiça é morosa, que o Estado, em termos de persecução criminal, é moroso. Reconheço, ainda, que, no campo do Direito Penal, o tempo é precioso, e o é para o Estado-acusador e para o próprio acusado, implicando a prescrição da pretensão punitiva, muito embora existam diversos fatores interruptivos do prazo prescricional. Reconheço que a época é de crise. Crise maior. Mas justamente, em quadra de crise maior, é que devem ser guardados parâmetros, princípios e valores, não se gerando instabilidade, porque a sociedade não pode viver aos sobressaltos, sendo surpreendida.

Portanto, devemos respeitar o princípio da presunção de inocência tal como insculpido na Carta Magna, pois aquela é a redação derivada do constituinte originário. Redação inspirada na realidade de nosso país, e não na experiência vivenciada em nações como a Inglaterra, França ou Estados Unidos.

E atento para a realidade nacional, o ministro Lewandowski assim mostrou sua perplexidade diante da guinada jurisprudencial da Corte Suprema (HC 126.292):

Eu também, respeitosamente, queria manifestar a minha perplexidade desta guinada da Corte com relação a esta decisão paradigmática, minha perplexidade diante do fato de ela ser tomada logo depois de nós termos assentado, na ADPF 347 e no RE 592.581, que o sistema penitenciário brasileiro está absolutamente falido. E mais, nós afirmamos, e essas são as palavras do eminente Relator naquele caso, que o sistema penitenciário brasileiro se encontra num estado de coisas inconstitucional. Então, agora, nós vamos facilitar a entrada de pessoas neste verdadeiro inferno de Dante, que é o nosso sistema prisional? Ou seja, abrandando esse princípio maior da nossa Carta Magna, uma verdadeira cláusula pétrea. Então isto, com todo o respeito, data venia, me causa a maior estranheza.

Apenas para relembrar, na ADPF 347, interposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), o STF decretou o “estado de coisas inconstitucional” e determinou medidas de intervenção orçamentária e estrutural no sistema prisional pátrio, resultando na exigência de que juízes realizem a audiência de custódia, bem como na liberação da verba do Fundo Penitenciário para a sua finalidade precípua, sem qualquer tipo de contingenciamento. Naquela oportunidade, o presidente da Corte, Ricardo Lewandowski, esclareceu que “o estado de coisas inconstitucional (…) foi uma medida desenvolvida pela Corte Nacional da Colômbia, a qual identificou um quadro insuportável e permanente de violação de direitos fundamentais a exigir intervenção do Poder judiciário de caráter estrutural e orçamentário”.

Nesse cenário, cumpre igualmente trazer as considerações do ministro Lewandowski a respeito do sistema prisional pátrio (HC 216.292):

Eu queria, também, finalizar e dizer o seguinte: eu tenho trazido sempre a esta egrégia Corte alguns números que são muito impressionantes relativos ao nosso sistema prisional, dizendo que nós temos hoje no Brasil a quarta população de presos, em termos mundiais, logo depois dos Estados Unidos, da China e da Rússia, nós temos seiscentos mil presos. Desses seiscentos mil presos, 40%, ou seja, duzentos e quarenta mil presos são presos provisórios. Com essa nossa decisão, ou seja, na medida que nós agora autorizamos, depois de uma decisão de segundo grau, que as pessoas sejam presas, certamente, a esses duzentos e quarenta mil presos provisórios, nós vamos acrescer dezenas ou centenas de milhares de novos presos.

As estatísticas trazidas pelo eminente ministro encontram consonância com levantamento realizado pela Fundação Getúlio Vargas com o objetivo de analisar dados detalhados da quantidade, espécie, origem, resultado e fundamento dos processos de habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal entre os anos de 2006 e 2014.

O objetivo específico da referida pesquisa foi a apresentação de medidas concretas capazes de aperfeiçoar o sistema de prestação jurisdicional, sem que se inviabilize o acesso à jurisdição nem se limitem direitos e garantias fundamentais.

O relatório final do trabalho apresenta propostas com base nos dados coligidos pela equipe de pesquisa e derivam tanto da análise quantitativa como da análise qualitativa (acesso pelo link: http://direitorio.fgv.br/sites/direitorio.fgv.br/files/u100/relatorio_final_pesquisa_hc_ipea-mj_-_junho_-_2014_-_para_publicacao.pdf).

No mesmo sentido, cabe trazer o alerta registrado pelo ministro Lewandowski em seu voto na ADPF 144/DF, demonstrando, por meio de dados estatísticos, a importância de aguardar-se o trânsito em julgado da condenação criminal para, em respeito ao princípio da presunção de inocência, determinar a execução da pena. Vejamos:

(...) trago, finalmente, nessa minha breve intervenção, à consideração dos eminentes pares, um dado estatístico, elaborado a partir de informações veiculadas no portal de informações gerenciais da Secretaria de Tecnologia de Informação do Supremo Tribunal Federal (...). De 2006, ano em que ingressei no Supremo Tribunal Federal, até a presente data, 25,2% dos recursos extraordinários criminais foram providos por esta Corte, e 3,3% providos parcialmente. Somando-se os parcialmente providos com os integralmente providos, teremos o significativo porcentual de 28,5% de recursos. Quer dizer, quase um terço das decisões criminais oriundas das instâncias inferiores foi total ou parcialmente reformado pelo Supremo Tribunal Federal nesse período.

E o alerta é de extrema importância, pois, segundo afirmou o ministro, 28,5% dos recursos criminais analisados pelo Supremo foram parcial ou integralmente providos. Ou seja, cerca de um terço das decisões criminais proferidas por instâncias inferiores foram total ou parcialmente reformadas pelo STF.

E é por esse motivo que o ministro Celso de Mello sustenta que "o Supremo Tribunal Federal tem repelido, por incompatíveis com esse direito fundamental (da presunção de inocência), restrições de ordem jurídica somente justificáveis em face da irrecorribilidade de decisões judiciais" (HC 126.292).

E, por oportuno, peço vênia para tomar como minhas as palavras de lástima proferidas pelo ilustre decano da nossa mais alta Corte judiciária:

Lamento (...) registrar-se, em tema tão caro e sensível às liberdades fundamentais dos cidadãos da República, essa preocupante inflexão hermenêutica, de perfil nitidamente conservador e regressista, revelada em julgamento que perigosamente parece desconsiderar que a majestade da Constituição jamais poderá subordinar-se à potestade do Estado.

E ainda que, eminentes colegas, desconsiderássemos o argumento constitucional alicerçado na presunção de inocência, do mesmo modo a execução antecipada da condenação estaria em dissonância com nosso ordenamento positivo. Isso porque a Lei n. 210/84, denominada Lei de Execução Penal (LEP), estabelece o trânsito em julgado como pressuposto inarredável de legitimação da execução de sentença condenatória.

Note-se que a regra disposta no art. 105 do referido ordenamento condiciona a execução da pena à ocorrência do trânsito em julgado da decisão penal condenatória:

Art. 105. Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução. (Grifei.)

No mesmo sentido é a exigência ditada pelo art. 147 da LEP no tocante à execução de penas restritivas de direitos:

Art. 147. Transitada em julgado a sentença que aplicou a pena restritiva de direitos, o Juiz da execução, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, promoverá a execução, podendo, para tanto, requisitar, quando necessário, a colaboração de entidades públicas ou solicitá-la a particulares. (Grifei.)

Somado a isso, cumpre observar que a decisão tomada pelo STF no HC 126.292, ao menos pelo que se tem notícia, não abordou a (in)constitucionalidade do art. 283 do CPP, com a redação dada pela Lei n. 12.403/2011. Tal norma penal assim dispõe:

Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (Grifei.)

À vista disso, conclui-se que tal normativa encontra-se em plena vigência, mostrando consonância com o princípio da presunção de inocência, pois estabelece que ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado.

Nota-se que a norma possibilita a prisão antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória apenas em duas hipóteses: prisão temporária ou prisão preventiva – e nenhuma dessas situações enquadra-se ao caso sob análise.

Infere-se, portanto, que independente do caráter do fundamento jurídico adotado (seja de ordem legal, seja de cunho constitucional), nosso sistema penal inadmite que qualquer pena seja executada (seja ela de prisão, seja restritiva de direitos) sem a existência do título condenatório definitivo, o qual, na minha compreensão, decorre do trânsito em julgado da decisão penal condenatória.

 

POR TODO O EXPOSTO, eminentes colegas, considero que a execução da sentença penal condenatória, antes de consumado o seu trânsito em julgado, mostra-se evidentemente incompatível com o direito fundamental da presunção de inocência assegurado aos réus pela Constituição da República, em seu art. 5º, inciso LVII, motivo pelo qual VOTO pela improcedência do pedido de execução provisória da pena formulado pela Procuradoria Regional Eleitoral.

 

 

 

Ante o exposto, VOTO por afastar as preliminares suscitadas pela recorrente e, no mérito, confirmar a sentença e negar provimento ao recurso.

 

(Após votar o relator, afastando as preliminares e dando provimento ao recurso, lançou voto divergente a Dra. Gisele Azambuja, que nega provimento, e pediu vista o Dr. Jamil Bannura. Aguardam o voto-vista a Dra. Maria de Lourdes Gonzalez e o Des. Fed. Paulo Afonso Vaz. Julgamento suspenso.)