RC - 35140 - Sessão: 10/05/2016 às 17:00

 

A questão em debate no presente recurso criminal diz respeito à autoria do delito de boca de urna, previsto no art. 39, parágrafo 5º, inciso II, da Lei n. 9.504/97, pelo réu PAULO ARAÚJO DE MEDEIROS.

A relatora, Dra. Gisele Anne Vieira de Azambuja, entendeu comprovadas a materialidade e a autoria do delito e manteve a decisão condenatória, bem como as penas cominadas na sentença.

Pedi vista dos autos para melhor manifestar o meu entendimento acerca do caso, mais especificamente com relação à prova da própria existência do delito, considerando que o réu foi condenado com base em um único testemunho, bem como pelo fato de que o crime em questão exige, para sua configuração, a efetiva distribuição dos chamados "santinhos", o que, a meu sentir, não restou demonstrado.

E, efetivamente, após uma minudente análise do caso e do conjunto probatório existente, entendo que o réu PAULO ARAÚJO DE MEDEIROS deve ser absolvido do ilícito que lhe foi imputado, uma vez que a prova que consta dos autos é extremamente frágil, quase inexistente.

Em primeiro lugar, importa referir que a denúncia, em nenhum momento, descreve a ocorrência da distribuição de panfletos no Município de Viamão. Destaco trecho da mesma, no qual vem descrita a conduta do réu:

No dia 07 de outubro de 2012, data da realização das eleições para Prefeito, por volta das 10h30min, na Avenida Liberdade, nesta Cidade, em via pública, o denunciado Paulo Araújo de Medeiros realizou propaganda de boca de urna.

Na ocasião, o denunciado estava na via pública, portando 40 folhetos do candidato a vereador Pedro Azevedo, com o intuito de influenciar a escolha das pessoas que ali estavam, interferindo em suas vontades.

O membro da Justiça Eleitoral, procedeu a abordagem constatando a ocorrência dos fatos, razão pela qual conduziu o denunciado para a tomada das medidas pertinentes.

Há a descrição de que o réu portava 40 "santinhos". No entanto, embora não tenha negado a existência e o porte do material, o acusado afirma que os volantes estavam guardados em seus bolsos e que não teria ocorrido sua distribuição.

A meu sentir, a prova nos presentes autos é muito fraca. E sem a prova de que tenham sido distribuídos os panfletos, não é possível manter a condenação do réu, uma vez que tão somente portar "santinhos" não ofende o bem jurídico tutelado pela norma eleitoral. Existe apenas um boletim de ocorrência, em que é referida a apreensão dos volantes que estavam com o réu, e uma testemunha de acusação. Os brigadianos que efetuaram a abordagem policial não prestaram depoimento. E a versão do fato dada pelo promotor eleitoral vem amparada apenas nesse boletim e na testemunha de acusação.

Referida testemunha, aliás, é a base de toda acusação. O Sr. Mario Fernando de Oliveira D'Ávila, serventuário da Justiça, que refere ter trabalhado com os brigadianos no dia da eleição, prestou depoimento relatando que, naquela ocasião, foram feitas várias prisões por boca de urna. Conforme suas próprias palavras: “andava num ônibus, com a Brigada, aonde ia passando havia gente panfletando, né, a gente recolhia”.

A sentença de primeiro grau condenou o réu com a seguinte fundamentação: “Frente a este contexto, apreendidos diversos panfletos em poder do denunciado e não havendo razões para desmerecer ou desacreditar as declarações prestadas pela testemunha Mário Fernando, entendo suficientemente demonstrada a existência do crime descrito na denúncia [...]".

Com todo o respeito a entendimento diverso, não é possível manter a condenação com base num único testemunho vago e impreciso, mesmo que provenha de um serventuário da Justiça que mereça credibilidade em razão do cargo que ocupa.

Ao assistir o depoimento do Sr. Mário, fica evidente que o serventuário da Justiça não se recorda do caso específico do réu, pois em nenhum momento se refere com clareza e precisão sobre o acontecido. Como ele mesmo relata, foram feitas várias prisões naquele dia em que acompanhou a Brigada Militar e “todos estavam entregando", “todos tinham", “todas as minhas prisões foram feitas . . .é . . . entregando”.

Quando questionado pelo juiz se lembrava do réu e de sua prisão, respondeu (1min 10seg do testemunho):

Mário: Dele? É que foram feitas várias prisões naquele dia, é, porque a gente andava num ônibus com a brigada, a gente ia passando, onde tinha gente panfleteando a agente recolhia.

Quando questionado acerca do local onde o fato delituoso teria ocorrido, a testemunha de acusação referiu: “Na Escola Setembrina não foi. Ou foi na Escola Municipal Farroupilha ou foi na Escola Municipal Santa Isabel”. Ocorre que o próprio boletim de ocorrência refere que a abordagem policial ocorreu na Av. Liberdade, sendo que não há nenhuma escola com local de votação nesta via. Assim, seu depoimento se revela pouco esclarecedor, incapaz de precisar detalhes do ocorrido. Destaco trecho em que a referida testemunha de acusação é questionada pela Promotora de Justiça:

Promotora: O senhor sabe no caso dele, onde estavam esses panfletos? Na mão, no bolso, na bolsa?

Mário: Tava na mão, mas muitos a gente abordava e eles colocavam no bolso, mas todas as prisões que foram feitas foi com panfleto. Todos tinham. Não tinha prisão que eles... que a pessoa não portasse e todas foram feitas... entregando... não foi assim, ah, deixa eu te revistar. Não, tavam fazendo boca de urna e entregando.

Promotora: O senhor viu ele entregando panfleto?

Mário: sim, com certeza... com certeza! Todas as minhas prisões que foram feitas foram... é... entregando.

Promotora: O senhor está trabalhando como testemunha eu preciso que isso fique bem claro na... no processo se o senhor fala que todos foram isso era uma coisa genérica ou o senhor se lembra especificamente dele porque é ele que está respondendo neste processo.

Mário: Não, eu me lembro dele mas eu estou dizendo, na função que eu tava, né, pra fiscalizar boca de urna, todos... todos que eu peguei tavam entregando.

Promotora: O senhor tá querendo dizer que ele estava.

Mário: Mas evidente que tava. Não teve nenhuma prisão que fosse feita em que a pessoa não estivesse entregando o panfleto.

Em sua versão dos fatos, o réu afirmou que se deslocava de sua casa ao supermercado Guarapari quando foi abordado por dois policiais. Esclareceu que portava uma bandeira do partido PPL e acredita que por esse motivo tenha sido abordado pelos policiais militares, que o revistaram e encontraram referidos "santinhos" em seu bolso.

Destaco trecho da defesa:

No dia em questão . . . caminhava em via pública, na Avenida Liberdade, n. 2184, e não no número 1000 como consta na ocorrência da brigada militar, carregando uma bandeira do partido PPL e trazendo consigo dentro dos bolsos da calça os 'santinhos' de candidato de sua preferência, documento incluso n. 04, foi alvo de truculenta abordagem policial, cujos executores, de pistola em punho, apontando-as para o denunciado, enfiaram as mãos em seus bolsos, de onde tiraram os santinhos do candidato de sua preferência, e passaram a acusá-lo de propaganda de 'boca de urna', e por isso o prenderam.

Em seu depoimento, o réu alega que foi alvo de truculenta abordagem policial e que um dos brigadianos teria se aproximado já com a arma apontada para a sua cabeça, enquanto o outro o revistou, enfiando a mão nos bolsos de suas calças, onde encontrou os "santinhos" que foram apreendidos.

Em face da contradição entre as versões de defesa e de acusação, assisti ao vídeo feito durante o testemunho da defesa.

A única testemunha de defesa, o Sr. Éderson Trintade, cozinheiro que, durante o ocorrido, passava pelo local com sua esposa, confirma o inteiro teor da versão dada pelo réu em seu depoimento. Ele explicitou que passava pela Av. Liberdade, próximo ao mesmo posto de gasolina referido pelo acusado, quando presenciou a aproximação de dois brigadianos, sendo que um deles estava com sua arma em punho. Abordaram o acusado, que portava uma pequena bandeira na mão, sendo que a testemunha não lembra de qual partido era.

Tanscrevo trecho do testemunho em que o Sr. Éderson é questionado pelo defensor do acusado:

Defensor: Somente o réu foi abordado, ou havia mais pessoas?

Éderson: Somente o réu.

Defensor: Com relação à abordagem, o senhor viu se ele foi abordado somente pelos Brigadianos ou se tinha mais alguém junto, algum civil junto?

Éderson: Eu só vi os Brigadianos.

Defensor: O senhor viu ele distribuindo panfleto para alguém?

Éderson: Não. Eu só vi ele sendo abordado, achei até um abuso, 1 Brigadiano com a arma na mão, o outro mandando por a arma na cabeça.

Defensor: O que mais o senhor viu?

Éderson: depois disso não vi mais nada, eu fui embora.

A toda evidência, as provas apresentadas pela acusação, que se resumem a um Boletim de Ocorrência e apenas uma testemunha, não são suficientes para a imposição de um juízo condenatório, sob pena de malferimento do princípio in dubio pro reo, máxima que se reflete como um dos pilares do Estado Democrático de Direito.

E mesmo que se argumentasse ser presumível que o recorrente iria distribuir o material, tal fato não foi comprovado. O tipo penal do art. 39, § 5º, da Lei n. 9.504/97, é bastante específico ao dizer que configura crime, no dia da eleição, a realização de propaganda eleitoral. Como é cediço, o iter criminis é composto de 4 elementos, a saber: a cogitação, a preparação, a execução e a consumação. A cogitação e a preparação não são puníveis, como regra geral, salvo quando a preparação já corresponder a um crime autônomo. No caso em estudo, não é crime portar material de propaganda eleitoral, mas, sim, a realização de propaganda eleitoral. O ato de portar material é, em verdade, um iter criminis, um ato preparatório, que não é punido pela legislação, sendo, portanto, atípico.

A exigência da efetiva distribuição de panfletos para um juízo de reprovação é entendimento pacificado na jurisprudência. Destaco ementas neste sentido:

Ementa: RECURSO CRIMINAL. PROPAGANDA ELEITORAL NO DIA DA ELEIÇÃO. ART. 39, 5°, H, DA LEI 9.504/97. PORTAR PROPAGANDA ELEITORAL NA VESTIMENTAL. PREPARATORIO IMPUNIVEL. ATIPICIDADE DA CONDUTA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

1. Para configurar o crime previsto no artigo 39, § 5°, II, da Lei n. 9.504/97, necessário é a prática de propaganda eleitoral.

2. 0 simples ato de portar impressos de propaganda eleitoral na vestimenta, bolso da calça, não configure o tipo penal. Constituindo, em verdade, mero ato preparatório.

3.Não havendo provas de que o réu distribuiu material de propaganda eleitoral no dia da eleição, não há como ver configurada a figura típica do artigo 39, 5°, II, da Lei n. 9.504/97.

4. Recurso conhecido e provido.

(TRE/GO. Recurso Criminal n. 6459-66.2010.6.09.0112, relator Juiz Sérgio Mendonça de Araújo; 18.01.2012.)

 

RECURSO CRIMINAL. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. CRIME DE "BOCA DE URNA". ART. 39, § 5º, INCISO III, DA LEI 9.504/97. RECURSO DESPROVIDO.

1 - Apreensão de "santinhos" no dia da eleição, próximo a local de votação. 2 - Ausência de provas quanto a distribuição do material. 3 - Tipo penal que exige a efetiva divulgação da propaganda. 4 - Depoimentos contraditórios dos policiais militares que participaram da diligência. 5 - Ausência de provas contundentes acerca da prática delitiva. Aplicação do princípio da presunção de inocência. 6 - Reconhecimento da atipicidade da conduta, com a consequente manutenção da sentença. Pelo desprovimento do recurso.

(TRE/RJ. Recurso Criminal n. 665-66.2012.6.19.0031, relator juiz Alexandre Mesquita; 22.01.2014.)

 

RECURSO CRIMINAL. DELITO DE BOCA DE URNA. ART. 39, § 5º, II, DA LEI N. 9.504/97. ELEIÇÕES 2012.

A simples posse de propaganda eleitoral no dia da eleição, por si só, não é suficiente para caracterizar o crime de boca de urna. Para sua caracterização é necessário que o conjunto probatório seja robusto para demonstrar a materialidade e a autoria delitivas. No caso, ausente a comprovação de que o recorrido estava distribuindo o material, impõe-se a manutenção da sentença absolutória. Provimento negado.

(TRE/RS. Recurso Criminal n. 30-26.2014.6.21.0107, relatora Desa. Liselena Schifino Robles Ribeiro; 27.08.2015.)

No presente caso, aplicar a reprimenda legal pelo simples fato de o indivíduo estar portando material de propaganda eleitoral seria ofensivo aos princípios basilares da democracia, como o já referido in dubio pro reo, além dos princípios da tipicidade e da taxatividade penal.

Afora a ofensa aos citados princípios, uma eventual condenação seria uma afronta direta ao princípio da lesividade, definido como a inexistência de crime que não represente lesão, ou, ao menos, perigo de lesão a um bem jurídico. Significa, também, ser vedada a incriminação de condutas que, mesmo consideradas antissociais ou imorais, não venham a lesar bens jurídicos, uma vez que, especialmente no direito penal, não pode ser incriminada a conduta que não saia da esfera do próprio autor. Na verdade, o princípio da lesividade é um corolário dos princípios da liberdade e da igualdade. Assim, a partir do momento em que é assegurado, a cada ser humano, o direito à liberdade, como princípio básico do Estado Democrático de Direito, não se pode incriminar condutas que representem mera expressão dessa liberdade e que não interfiram em qualquer bem jurídico alheio.

O Direito Penal deve ser, em um Estado Democrático de Direito, mínimo, eficiente e voltado a grandes violações de bens tutelados pela sociedade.

No caso, há incertezas quanto ao próprio cometimento do delito e quanto à agressão ao bem jurídico tutelado (liberdade eleitoral e isonomia), sendo que a dúvida é sempre interpretada em favor do réu, pois mais vale absolver um culpado do que condenar um inocente.

Não podemos ver o direito penal como inimigo daquele a quem se imputa um crime, pois em uma democracia o conjunto de regras que disciplina essa matéria deve ser liberal e garantista. Descabe pensar-se em condenação fundada na gravidade abstrata do delito ou, ainda, nas circunstâncias pessoais dos acusados, aqui consideradas pelo fato de o réu estar portando uma bandeira no dia da eleição. No Estado Democrático de Direito deve haver espaço tão somente para o direto penal do fato, em desprestígio ao odioso direito penal do inimigo.

Finalizando, entendo não haver prova de que o recorrente tenha praticado o crime previsto no art. 39, § 5°, inc. II, da Lei n. 9.504/97, visto que ausente a comprovação da efetiva distribuição dos "santinhos", conduta necessária para caracterizar lesão ao bem jurídico que o tipo penal visa proteger.

Diante do exposto, acompanho a relatora quanto à matéria preliminar e, no mérito, dou provimento ao recurso para reformar a sentença e absolver o recorrente, com base no art. 386, inc. III, do Código de Processo Penal.