PET - 17311 - Sessão: 15/03/2016 às 17:00

Eminentes colegas:

Os momentos posteriores à edição da Resolução TSE 22.610/07 foram conturbados do ponto de vista jurídico. Havia certa dúvida nas Cortes Eleitorais, assim como em parcela da doutrina, se tal diploma normativo estaria amparado pela Constituição Federal.

Na época, a especialista em Direito Eleitoral Eneida Desiree Salgado (Princípios constitucionais eleitorais. Belo Horizonte: Fórum, 2010.) sustentou que a confecção da norma se operou de forma inconstitucional, pois se trata [...] de ruptura inconstitucional que 'quebra' a norma do art. 55 e o princípio da liberdade para o exercício de mandato a fim de estabelecer uma regra de fidelidade partidária com a sanção de perda de mandato.

Segundo a autora, três argumentos principais dão suporte a sua tese. Em primeiro, argumenta que a exigência constitucional de filiação partidária para concorrer a cargo eletivo não se repete para o exercício do mandato; em segundo, aduz que o texto constitucional não possibilita ao legislador a liberalidade de restringir o direito fundamental do exercício do mandato; e em terceiro, conclui que a desfiliação partidária não afronta o princípio da autenticidade eleitoral, pois o eleitor forma seu voto, na maioria dos casos, levando em consideração o candidato.

No TSE, a questão foi levantada, em 24.6.2008, pelo Ministro Eros Grau, que suscitou preliminar de inconstitucionalidade da resolução, no que restou vencido.

Em 05.8.2008, o TSE, respondendo à Consulta n. 1.587, reafirmou a legalidade da Resolução TSE n. 22.610/07 e assentou a competência da Justiça Eleitoral para processar e julgar os pedidos de perda de cargo eletivo.

Por fim, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento conjunto na data de 12.11.2008, declarou improcedentes as Ações Diretas de Inconstitucionalidade de números 3.999 e 4.086, respectivamente ajuizadas pelo Partido Social Cristão (PSC) e pela Procuradoria-Geral da República, considerando constitucional a resolução.

Faço esta digressão não com o objetivo de em controle difuso de constitucionalidade declarar inconstitucional a indigitada resolução – até porque entendo que a matéria já foi exaustivamente debatida pela doutrina e pelos Tribunais Eleitorais, e bem decidida pelo Supremo Tribunal Federal –, mas, sim, com o intuito de explicitar que retirar o mandato de um parlamentar, que neste foi investido pelo poder soberano do povo dentro de um processo eleitoral autêntico, constitui medida excepcionalíssima, e como tal deve ser analisada por esta Corte, motivo pelo qual peço vênia à eminente relatora para acompanhar o voto divergente proferido pelo Desembargador Paulo Afonso Brum Vaz, pois entendo que a desfiliação do requerido está amparada pela justa causa disposta no art. 1º, § 1º, III, da Resolução TSE n. 22.610/07 e reproduzida no art. 22-A da Lei n. 9.096/97.

Pois bem, a questão se subsume a verificar se o Partido dos Trabalhadores praticou ato comissivo ou omissivo que pudesse ser interpretado como mudança substancial ou desvio reiterado de seu programa partidário, justificando, com isto, o desligamento do parlamentar da referida sigla.

No sistema democrático representativo vigente neste país, o partido é utilizado como meio para se atingir a democracia, portanto, deve ser coerente com sua ideologia para, assim, respeitar seu eleitor, que nele, por meio de seus respectivos candidatos, confiou a sua representação.

Este sistema vem recebendo diversas críticas ao longo dos últimos anos. O que se deve às inúmeras denúncias a respeito da má administração exercida pelos representantes do poder público, que ao invés de gerirem a coisa pública em favor do povo, acabam dirigindo-a em benefício próprio.

Há quem pense que a imoralidade reinante em diversas siglas decorre do sistema pluripartidário, ou multipartidário, o qual estaria vulgarizando as ideologias, sendo praticamente impossível nos dias de hoje averiguar, ao menos em primeira análise, qual a direção política seguida por cada partido.

Todavia, discordo deste ponto de vista. Entendo que a questão está ligada mais à índole dos dirigentes partidários, do que ao número de siglas.

Segundo o filósofo político francês André Malraux (L'Espoir – A esperança – publicado em 1937) não se faz política com a moral, mas também não se faz sem ela.

Não desconheço, no entanto, que a multiplicação de agremiações partidárias tem contribuído para que líderes desprovidos de ideologias utilizem-se da criação de partidos em benefício da concretização de projetos pessoais.

No entanto, o pluripartidarismo derivou de importante momento histórico, motivo pelo qual não podemos desconhecer seu benefício para a abertura democrática ocorrida nos últimos 30 anos no Brasil.

Ao final da década de 70, já desgastado em virtude da recessão econômica pela qual passava o país, o regime de exceção passou a possibilitar gradualmente uma participação política dentro de suas regras. Naquele momento, colocou-se fim ao bipartidarismo, ao dualismo ARENA-MDB.

Eneida Salgado (Constituição e democracia. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 90.) explicita:

[...] a reforma partidária foi objeto do Pacote de Abril, editado pelo Governo Militar em 1977. Receosos do crescimento do Movimento Democrático Brasileiro e de sua possível vitória nas eleições de 1978, os militares decidiram extinguir as organizações políticas então existentes (o próprio MDB e a ARENA – Aliança Renovadora Nacional) e possibilitaram a criação de partidos políticos visando dividir e enfraquecer a oposição. A base do governo se reúne no Partido Democrático Social e os militantes do MDB formam o Partido do Movimento Democrático Brasileiro. É criado o Partido Progressista e em 1980 são registrados o Partido Trabalhista Brasileiro, o Partido Democrático Trabalhista e o Partido dos Trabalhadores.

Começou, naquele momento, a referida multiplicação de partidos, resultando nos 35 hoje registrados no TSE, cada qual com suas lideranças – indivíduos que personificam as instituições, que humanizam a ideologia partidária, possibilitando que o eleitor se identifique, por meio dos respectivos interlocutores, com as propostas de cada sigla.

Assim, o partido é uma instituição composta de indivíduos. E na gênese partidária é comum que a instituição seja personificada em um ou mais líderes. Como exemplos desta situação temos, dentre outros, o Partido Verde, personificado no jornalista Fernando Gabeira; o extinto PRN, personificado no então Governador de Alagoas Fernando Collor de Melo; o PSDB, personificado em seus criadores Fernando Henrique Cardoso e Mário Covas; o PDT, personificado até os dias de hoje na figura histórica do gaúcho Leonel Brizola; o recentemente criado REDE, personificado na ambientalista acriana Marina Silva; o PT criado em 1980 pelo sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva.

Ainda, em virtude da multiplicidade de partidos hoje existente, a maioria sem clara proposta de modelo de Estado, verifica-se no Brasil um personalismo excessivo na escolha dos candidatos. É corrente a visão de que “vota-se em pessoas, não em partidos”. Mas por óbvio tal entendimento não é tão rígido, o que leva os eleitores a buscarem candidatos filiados a partidos de cuja ideologia compartilhem. No processo de escolha do eleitor há uma conjugação entre a ideologia partidária, que faz com que o eleitor escolha o partido, e a afeição pessoal, que faz com que escolha o candidato. A quebra, posteriormente à eleição, de um desses pressupostos, faz com que o eleitor desvincule-se ou do partido, ou do candidato, ou de ambos.

No caso sob exame, nota-se que houve uma mudança na ideologia partidária da sigla representante, o que possivelmente fez, faz, ou fará com que o eleitorado quebre a confiança nela depositada.

Por outro lado, a confiança conferida ao candidato somente será prejudicada se este omitir-se quanto aos novos rumos tomados pela agremiação. E, pelo que vejo, a desfiliação do parlamentar busca justamente evitar que ocorra esta quebra de confiança entre ele e seu eleitorado.

Assim, fazendo um contraponto ao célebre pensamento de Jean-François Paul de Gondi, o Cardeal de Retz, político e escritor francês que viveu entre os anos de 1613 e 1679, segundo o qual muitas vezes é preciso mudar de opinião para permanecer no mesmo partido, entendo que algumas vezes é necessário mudar de partido para manter a opinião. É preciso mudar de partido para manter convicções, ideologias, valores, enfim, o conjunto de qualidades que faz com que o eleitorado deposite no candidato sua confiança.

E foi justamente isso que fez o ora representado. Desligou-se voluntariamente da grei pela qual foi eleito, pois esta vem, por meio de seus líderes históricos, gradualmente se envolvendo em um número crescente de escândalos políticos.

Como bem referiu o Ministro Ayres Brito, no julgamento da Consulta TSE n. 1.398, o candidato não desertou de seus ideais, quem desertou foi o partido. E diria ainda que não se trata de um caso de infidelidade partidária, mais, sim, de infidelidade do partido.

E tal situação restou plenamente analisada no voto divergente do ilustre Desembargador Paulo Afonso, em especial os fatos decorrentes da denominada Operação Lava-Jato, a qual apura sucessivas imputações de corrupção e lavagem de dinheiro perpetradas por diversos membros do partido requerente, em diversos estados da Federação, ainda pendentes de julgamento definitivo pelo Poder Judiciário, passando a ter ampla divulgação da mídia no ano de 2014.

De extrema propriedade também as conclusões do Desembargador Paulo Afonso no sentido de que os recentes acontecimentos da Lava-Jato não apenas sinalizam a ocorrência de crimes graves, mas são indícios bem razoáveis de 'desvio reiterado do programa partidário', notadamente quando se consumaram as pressões da alta cúpula do PT para a substituição do Ministro de Estado da Justiça, que era acusado por membros do partido de não exercer qualquer ingerência sobre as investigações levadas a efeito pela Polícia Federal, uma semana após a prisão do 'marqueteiro' responsável pela campanha de reeleição da atual Presidente da República.

Compactuo igualmente com a conclusão de que o 'desvio do programa partidário' também deve abranger qualquer grave inobservância factual, de natureza prática e efetiva, resultante da atuação daqueles que conduzem os desígnios do partido, ainda que não declarada e cuja publicidade não seja desejada por esses.

Por fim, ao fazer o cotejo do Código de Ética do Partido dos Trabalhadores com as alegações do vereador requerido, apresentadas em sua defesa, o redator do voto divergente, cujo excerto transcrevo, foi extremamente eficaz ao concluir que as justificativas do parlamentar são convincentes:

[...] demonstram que aquele partido de esquerda, fundado há 36 anos, extremamente preocupado com ética do trato da coisa pública, efetivamente sofreu expressiva mutação substancial do seu programa partidário, seja no que se refere aos aspectos éticos, seja no que tange aos elementos de natureza ideológica, haja vista a inegável dissociação dos temas tradicionalmente defendidos pela agremiação partidária, porquanto vem sendo suprimidos diversos direitos sociais (v.g. reforma previdenciária iniciada pela Lei n. 13.135/15, modificações do seguro-desemprego consolidadas na Lei n. 13.134/15, ajuste fiscal estabelecido por diversas leis, entre elas a Lei n. 13.169/15).

Registro que mais do que respeitar a fidelidade dos mandatários em relação aos partidos, é necessário respeitar a soberania popular.

Conforme pregava o advogado e político alemão Konrad Adenauer (1876-1967) todo o partido existe para o povo e não para si mesmo. E não é o que se vê na situação política atual, onde os interesses pessoais dos dirigentes partidários acabam por pautar a atuação das siglas.

Por esse motivo, não posso compactuar com a possibilidade de retirar o mandato de um parlamentar que nada mais quer do que manter a bandeira ideológica que o atraiu à agremiação, retirando-se, agora, em virtude do desvio reiterado do programa partidário por esta realizado através de atos ilícitos praticados por seus expoentes máximos, líderes históricos do partido, como bem consignou o Desembargador Paulo Afonso.

Ante o exposto, com a devida vênia da nobre relatora, por entender que restou configurada a mudança substancial e desvio reiterado de programa partidário pela agremiação requerente, acompanho o voto do nobre Desembargador Paulo Afonso, julgando improcedente a ação por reconhecer a justa causa prevista no art. 1º, § 1º, III, da Resolução TSE n. 22.610/07, reprisada no artigo 22-A, parágrafo único, inciso I, da Lei dos Partidos Políticos, com a redação dada pela Lei n. 13.165/15.

É como voto, Senhor Presidente.