RE - 4604 - Sessão: 19/04/2016 às 17:00

RELATÓRIO

JULIETA MARIA PALOMBO SANDRI interpõe recurso contra decisão do Juízo da 23ª Zona Eleitoral, que julgou procedente a representação por doação acima do limite estabelecido no art. 23 da Lei n. 9.504/97 e condenou a recorrente ao pagamento de multa no valor de R$ 46.015,25.

Em suas razões recursais (fls. 190-197), a recorrente sustenta equívoco do sentenciante ao não considerar os rendimentos auferidos no ano de 2014 e o saldo médio em conta-corrente. Afirma, ainda, que em face da não conclusão de inventário dos bens deixados pelo esposo, pelo filho e pela sogra da recorrente, ocorreu confusão patrimonial entre doadora e donatária. Diz que apenas repassou para a conta de campanha da candidata valores que já lhe pertenciam, referente à quota-parte de imóvel obtido através de herança, tudo registrado na sua declaração de imposto de renda. Invoca o direito constitucional de disposição do seu patrimônio.

Requer seja prequestionada a aplicação do art. 23, § 1º, da Lei n. 9.504/97 ao caso concreto, por alegada afronta ao disposto no art. 5º, inc. XXII, da Constituição Federal.

Por fim, postula a reforma da sentença para o fim de julgar regular a doação e afastar a sanção de inelegibilidade por oito anos.

Apresentadas contrarrazões (fls. 201-203), nesta instância, os autos foram encaminhados com vista ao Ministério Público Eleitoral, que se manifestou pelo provimento parcial do recurso para o fim de afastar a inelegibilidade (fls. 212-219).

É o relatório.

 

VOTO

Eminentes colegas:

O recurso é tempestivo.

A recorrente foi intimada da sentença em 18 de novembro de 2015 (fl. 189) e interpôs o recurso no dia 23 do mesmo mês, observando, portanto, o tríduo legal previsto no art. 34 da Resolução TSE n. 23.398/13.

No mérito, cuida-se de doação realizada por pessoa física acima do limite legalmente estabelecido, previsto, à época da doação, no art. 23, § 1º, inc. I, da Lei n. 9.504/97:

Art. 23. [...]

§ 1º. As doações e contribuições de que trata este artigo ficam limitadas:

I – no caso de pessoa física, a dez por cento dos rendimentos brutos auferidos no ano anterior à eleição.

Registre-se que a recente Lei n. 13.165, de 29 de setembro de 2015, empreendeu mudanças na redação do art. 23 em comento, mas manteve, na substância, a regra da doação por pessoa física limitada até 10% dos seus rendimentos.

Pelo que se infere dos autos, a recorrente doou à campanha de sua filha, candidata Giovana Palombo Sandri, a quantia de R$ 22.550,00 (fls. 06-07), tendo auferido no ano anterior rendimentos brutos de R$ 132.969,50 (fl. 25), excedendo em R$ 9.253,50 o limite legal, o que acarretou sentença de procedência do pedido, com condenação ao pagamento de multa no valor de R$ 46.015,25.

Alega que, além dos rendimentos brutos constantes na Declaração de Imposto de Renda (IR) 2013, no montante citado, obteve empréstimos pessoais junto ao Banco do Brasil no valor de R$ 32.502,62, manteve um saldo médio em 2013 de R$ 6.608,83 e, em 2014, de R$ 17.089,92, ainda, recebeu recurso proveniente da venda de um imóvel, tudo no ano de 2014. Sustenta que apenas teria repassado à candidata a parte do imóvel que a esta cabia por herança, por meio de depósito para a campanha eleitoral.

Sem razão a recorrente.

A lei é clara ao limitar a doação à campanha eleitoral em 10% dos rendimentos brutos auferidos no ano anterior ao pleito (art. 19, parágrafo único, da Resolução TSE n. 23.406/14).

Assim, tanto os empréstimos obtidos, quanto o saldo médio em conta-corrente e o recurso proveniente de venda de imóvel, além de não possuírem natureza jurídica de rendimentos, foram obtidos no ano da eleição, motivos pelos quais não podem ser considerados para fins de limite de doação eleitoral.

O pagamento da quota-parte de herança à filha deveria ter sido feito à pessoa física da candidata, a qual só poderia dispor do recurso se obedecesse aos limites legais, ou seja, de 50% do patrimônio declarado quando do registro de candidatura (art. 19, parágrafo único, da Resolução TSE n. 23.406/14).

O procedimento adotado pela recorrente, de transferir o valor de herança a título de “doação eleitoral”, não encontra guarida na legislação, cujas regras disciplinam com clareza não só os limites de doação, mas especificam a natureza dos recursos: rendimentos brutos; e o período de auferimento: ano anterior ao pleito.

Sobre o direito constitucional de dispor do próprio patrimônio, invocado pela recorrente, convém esclarecer que não se confunde com a garantia do direito de propriedade, insculpido no art. 5º, inc. XXII, da Constituição Federal.

Com efeito, o Código Civil disciplina o direito de propriedade como a "faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha" (art. 1.228). Esse direito foi exercido livremente pela recorrente quando da alienação do imóvel. A utilização do recurso proveniente da venda, porém, encontra limites na legislação infraconstitucional, mais especificamente, para o que interessa no caso concreto, na Lei das Eleições.

É certo que a Lei Eleitoral não traz o conceito de rendimento bruto, devendo-se buscar no ordenamento jurídico, especificamente na legislação tributária, as rubricas que devem ser compreendidas para formá-lo.

No § 1º do art. 3º da Lei n. 7.713, de 22 de dezembro de 1988, é possível cotejar o conceito legal de rendimento bruto, alinhado aos princípios constitucionais que informam os impostos em geral, especialmente o da capacidade contributiva do sujeito passivo:

§ 1º Constituem rendimento bruto todo o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, os alimentos e pensões percebidos em dinheiro, e ainda os proventos de qualquer natureza, assim também entendidos os acréscimos patrimoniais não correspondentes aos rendimentos declarados.

A Lei das Eleições limita as doações ao percentual de 10% dos rendimentos, não fazendo menção a bens e direitos do doador.

Por rendimento bruto se entende a quantia auferida ao longo de certo tempo e sem qualquer dedução, ao passo que patrimônio é o conjunto de bens e direitos da pessoa física ou jurídica.

Nesse sentido, colaciono elucidativo acórdão do Superior Tribunal de Justiça, da relatoria do Ministro Luiz Fux (Embargos de Divergência em RESP n. 1.057.912 – SP, julgado em 23 de fevereiro de 2011), no qual é produzida longa análise acerca da natureza jurídica do conceito de rendimento bruto:

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. ADESÃO DE EMPREGADO (INICIATIVA PRIVADA) À PROGRAMA DE DEMISSÃO VOLUNTÁRIA - PDV. NÃO INCIDÊNCIA. LIBERALIDADE DO EMPREGADOR. INOCORRÊNCIA. MONTANTE PAGO PARA GARANTIR O MÍNIMO EXISTENCIAL DO ADERENTE. A VERBA INDENIZATÓRIA DECORRENTE DO PDV NÃO TEM NATUREZA JURÍDICA DE RENDA. INTELIGÊNCIA DOS ARTIGOS 153, III, § 2º, I, E 145, § 1º, DA CF/88, C/C ARTIGO 43, DO CTN. PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA. ACÓRDÃO REGIONAL QUE PUGNA PELA EXISTÊNCIA DE ADESÃO A PDV. JULGAMENTO, PELA PRIMEIRA SEÇÃO, DE RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA (RESP 1.112.745/SP).

1. O imposto de renda não incide sobre o montante decorrente da adesão de empregado de iniciativa privada a programa de demissão voluntária - PDV, uma vez não configurada hipótese de incidência do tributo (Precedente da Primeira Seção submetido ao rito do artigo 543-C, do CPC: REsp 1.112.745/SP, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, julgado em 23.09.2009, DJe 01.10.2009).

2. O imposto de renda, em sua configuração constitucional, incide sobre renda e proventos de qualquer natureza (artigo 153, III, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988).

[…]

12. O imposto sobre a renda incide sobre o produto da atividade de auferir renda ou proventos de qualquer natureza, que constitua riqueza nova agregada ao patrimônio do contribuinte e deve se pautar pelos princípios da progressividade, generalidade, universalidade e capacidade contributiva, nos termos dos artigos 153, III, § 2º, I, e 145, § 1º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Sob o viés da matriz constitucional, foi recepcionado o conceito do artigo 43, do CTN, de renda e proventos, que contém em si uma conotação de contraprestação pela atividade exercida pelo contribuinte.

13. O conceito doutrinário de renda tributável é, assim, cediço:

"Estamos notando, assim, que para o Direito, os conceitos de renda e proventos não coincidem com os da Economia, que considera qualquer acréscimo patrimonial passível de sofrer a tributação em pauta. Nas hostes jurídicas tais conceitos tem uma extensão bem mais restrita: acréscimo patrimonial, experimentado durante certo lapso de tempo, que só pode ser levado à tributação quando atende aos princípios da isonomia, da capacidade contributiva e da não confiscatoriedade - e, portanto, prestigia a vida, a dignidade da pessoa humana e a propriedade, preservando 'o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos' valores supremos que levaram os representantes do Povo Brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte, a inscrevê-los já no Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil. [...]

Deveras, parece-nos que dentre os diversos conceitos de renda e proventos de qualquer natureza, fornecido pelas Ciência Econômica, pode o legislador ordinário apenas optar por um deles, e, ainda assim, desde que sua escolha permita compatibilizar a incidência com os princípios constitucionais que norteiam tal tributação, máxime o da capacidade contributiva. É que, de acordo com a Constituição, renda e proventos de qualquer natureza devem representar ganhos ou riquezas novas. Do contrário, não será atendido o princípio da capacidade contributiva. Realmente, os conceitos de renda e proventos de qualquer natureza precisam levar em conta, dentre outros princípios, o da capacidade contributiva do sujeito passivo tributário. [...] Porque o princípio da capacidade contributiva informa a tributação por via de impostos (art. 145, § 1º, da CF).

Nesse sentido a lição escorreita de Antonia Agulló Agüero: 'Uma definição fiscal de renda há de ser apta a medir a capacidade contributiva e esta característica é precisamente o que a diferencia de outras definições que, como a contábil ou a estritamente econômica, perseguem fins tais como a comparação entre os resultados de vários exercícios econômicos ou o cômputo de valor agregado num processo de produção. [...]

Mesmo cientes disto, observamos, de bom grado, que o próprio Código Tributário Nacional, desde que interpretado de modo adequado, não ultrapassou os limites constitucionais. "(Carrazza, Roque Antônio, in "Imposto sobre a renda (perfil constitucional e temas específicos)", São Paulo: Malheiros, 2005, p. 48, 52/53 e 55).

[...]

18. Embargos de divergência providos. (Grifei.)

 

Entendimento semelhante foi adotado por esta Justiça Especializada, consoante ementas a seguir (com grifos meus):

EMENTA - REPRESENTAÇÃO. MINISTÉRIO PÚBLICO. PESSOA FÍSICA. CAMPANHA POLÍTICA. DOAÇÃO. ART. 23, § 1.°, INCISO I, DA LEI N.° 9.4504/97. 10% DOS RENDIMENTOS BRUTOS AUFERIDOS NO ANO ANTERIOR AO PLEITO. PRELIMINAR DE AJUIZAMENTO DA REPRESENTAÇÃO SEM O DOCUMENTO COMPROBATÓRIO DA DOAÇÃO REALIZADA. REJEITADA. DOAÇÃO ACIMA DO LIMITE LEGAL. RENDIMENTOS INFORMADOS À RECEITA. EXCESSO COMPROVADO. PROCEDENTE. PENALIDADE DE MULTA NO MÍNIMO LEGAL.

[...]

O inciso I do § 1.° do art. 23 da Lei das Eleições estabelece, que o limite legal de doações para campanhas eleitorais, por pessoa física, é de 10% (dez por cento) dos rendimentos brutos auferidos no ano anterior à eleição, sendo certo que esta Corte Regional já decidiu serem irrelevantes, para fins de fixação do limite de doação a campanhas eleitorais, os bens e direitos declarados pelo representado. Desse modo, devidamente comprovada a doação, não tendo o representado logrado êxito em descaracterizar o excesso apontado na inicial, e ainda, sendo irrelevante para esta finalidade, o patrimônio (bens e direitos) declarado, forçoso reconhecer que houve violação ao disposto no art. 23, § 1.°, inciso I, da Lei n. 9.504/97, configurando-se o excesso da doação.

A venda de um estabelecimento comercial que daria lastro para realizar a doação não é prova suficiente para os fins devidos, pois da declaração retificadora trazida aos autos pelo representado depreende-se que o valor declarado em Rendimentos Tributáveis equivale a zero, exatamente o mesmo valor informado pela Receita Federal e que serviu de base para o ajuizamento da presente representação. A inserção no campo destinado à Declaração de Bens e Direitos, de forma tardia, só justifica o claro intuito de livrar-se da aplicação de penalidade. Representação procedente para aplicar a penalidade de multa em seu mínimo legal.

(TRE/MS, Acórdão n. 6.488, Representação n. 747, Relator Desembargador Rêmolo Letteriello, julgado em 06 de abril de 2010.)

 

Doação. Limite. Lei n. 9.504, de 1997, art. 23, § 1º. As doações para campanhas eleitorais estão limitadas, quando feitas por pessoas físicas, a dez por cento dos rendimentos brutos auferidos pelo doador no ano anterior à eleição, sendo irrelevante o valor de seu patrimônio.

(TSE, Acórdão n. 16.385, Relator Ministro Fernando Neves, julgado em 05.12.2000.)

Acrescento que o conceito jurídico de rendimento bruto deve ser um só, quer para efeito de incidência de sanção eleitoral, quer para efeitos fiscais, sob pena de se estabelecer uma incongruência sistêmica. Ou seja, alargar o conceito de rendimento bruto para suportar doação dentro do limite legal e restringir o mesmo conceito para não incidência de tributação.

Assim, ainda que a obtenção de recursos mediante empréstimo e em face da venda de imóvel tivessem ocorrido no ano anterior ao pleito, seriam irrelevantes para a composição do que se possa entender rendimento bruto. Pelas mesmas razões, o saldo médio em conta-corrente no ano do pleito não pode ser computado para esse fim.

Dessa forma, a doação de R$ 22.550,00 excedeu em R$ 9.253,50 o limite legal, devendo ser mantida a multa pecuniária aplicada pelo juízo a quo em seu patamar mínimo (cinco vezes o excesso), prevista no art. 23, § 3º, da Lei n. 9.504/97.

Anoto que, neste ponto, verifica-se a existência de pequeno erro material na sentença, uma vez que a penalidade corresponderia a R$ 46.267,50, porém foi fixada em R$ 46.015,25. Como trata-se apenas de erro material,  permanecendo a aplicação no grau mínimo cominado na sentença, o valor a ser pago passa a ser R$ 46.267,50.

Entretanto, cabe acolhimento parcial do recurso para afastar a declaração de inelegibilidade da recorrente pelo período de oito anos.

Explico.

A suspensão dos direitos políticos transcende – em muito – ao sancionamento econômico que já se estabeleceu. Por isso, a declaração judicial de inelegibilidade não pode ser considerada sem relação jurídica processual própria, assegurada defesa ampla e irrestrita sobre o tema, sendo seu reconhecimento de competência do juízo do registro de candidatura, se eventualmente a pessoa vier a se candidatar.

Assim prescreve o § 11 do art. 10 da Lei n. 9.504/97:

As condições de elegibilidade e as causas de inelegibilidade devem ser aferidas no momento da formalização do pedido de registro da candidatura, ressalvadas as alterações, fáticas ou jurídicas, supervenientes ao registro que afastem a inelegibilidade.

Ante o exposto, VOTO pelo provimento parcial do recurso, para afastar a declaração de inelegibilidade da recorrente, condenando a requerente ao pagamento de  R$ 46.015,25 e dando por prequestionados os dispositivos legal e constitucional invocados.

É como voto, Senhor Presidente.