RC - 3395 - Sessão: 19/05/2016 às 17:00

RELATÓRIO

Trata-se de recursos criminais interpostos por ARNILDO HANATZKI e por IOLANDA ISABEL SEIBEL LUDWIG contra decisão do Juízo Eleitoral da 166ª Zona – Campina das Missões, que os condenou à pena de 4 anos de reclusão e 200 dias-multa, à razão de 1/30 do salário mínimo nacional cada dia-multa, substituída a privativa de liberdade por duas restritivas de direitos, por prática de transporte ilegal de eleitores, delito tipificado no art. 11, inc. III, c/c art. 5º, ambos da Lei n. 6.091/74, na forma do art. 29 do Código Penal, em razão do seguinte fato narrado na denúncia (fls. 02-03):

No dia 05 de outubro de 2014, por volta das 09h40min, na Linha Godói Centro, interior de Campina das Missões/RS, os denunciados ARNILDO HANATZKI e IOLANDA ISABEL SEIBEL LUDWIG, em comunhão de esforços e unidade de desígnios, descumpriram a proibição do art. 10 da Lei n. 6.091/1977 e forneceram transporte para duas eleitoras.

Na ocasião, o denunciado ARNILDO HANATZKI, sob ordens da denunciada IOLANDA ISABEL SEIBEL LUDWIG, buscou o automóvel Fiat/Palio ELX, placa IIX2988, na residência desta e deslocou-se até o Terminal Rodoviário de Candido Godói para buscar as eleitoras Tereza Dresch e Cleusa Claudete Dresch. Em seguida, transportou-as até a seção eleitoral localizada na Linha Godói Centro, para elas votarem. No retorno, o veículo foi abordado pela guarnição da Brigada Militar, que prendeu em flagrante o denunciado Arnildo Hanatzki.

Na data do fato, o recorrente Arnildo Hanatzki foi preso em flagrante e o veículo Fiat Palio verde, emprestado pela ré Iolanda Isabel Seibel Ludwig, que é vereadora de Cândido Godói pelo PP e servidora pública municipal, foi recolhido pela Polícia Civil de Campina das Missões, tendo a autoridade policial instaurado inquérito para apuração de prática do tipo penal previsto no art. 11, inc. III, c/c art. 10, ambos da Lei n. 6.091/74 (fls. 4-49).

Relatado o inquérito policial com conclusão pelo indiciamento de Arnildo Hanatzki (fls. 50-51), foi oferecida denúncia contra os ora recorrentes, imputando-lhes o cometimento do delito previsto no art. 11, inc. III, c/c art. 10, da Lei n. 6.091/74 (fls. 2-3).

A denúncia foi recebida em 04 de dezembro de 2014 (fl. 100).

Citados, os réus ofereceram respostas, suscitando as preliminares de ausência de justa causa por atipicidade delitiva, de ilegitimidade da ré Iolanda Isabel Seibel Ludwig e de inépcia da denúncia, por ser genérica. No mérito, sustentaram a ausência do dolo específico e de provas aptas à condenação (fls. 105-115 e fls. 116-128).

As preliminares foram afastadas (fls. 133-134v.), tendo sido inquiridas as testemunhas arroladas por carta precatória (fls. 150-152), e na audiência de instrução, ocasião em que foi tomado o depoimento pessoal dos réus (fls. 195-196).

Em alegações finais, o Ministério Público Eleitoral requereu a emendatio libelli, afirmando que, embora a denúncia tenha imputado a prática da infração prevista no art. 10 da Lei n. 6.091/74, dispositivo que veda o fornecimento de transporte ou refeições aos eleitores da zona urbana, os fatos narrados contrariam a expressa vedação prevista no caput do art. 5º da mesma lei, que de forma geral proíbe a realização de transporte de eleitores desde o dia anterior até o posterior à eleição. Requereu a condenação dos acusados nas penas do delito capitulado no art. 11, inc. III, c/c caput do art. 5º, ambos da Lei n. 6.091/74, na forma do art. 29 do Código Penal (fls. 198-202).

O juízo de origem abriu prazo para alegações finais (fls. 205-222 e 223-238) e prolatou sentença acolhendo o pedido de emenda à denúncia para o fim de condenar os recorrentes por prática de transporte ilegal de eleitores (art. 11, inciso III, c/c caput do art. 5º, da Lei n. 6.091/74), entendendo estarem suficientemente demonstradas a autoria e a materialidade delitivas em relação a ambos os réus (fls. 240-249).

Irresignado, Arnildo Hanatzki interpõe recurso arguindo, preliminarmente, a ausência de justa causa por atipicidade delitiva, ao argumento de que não houve prática do delito previsto no art. 10 da Lei n. 6.091/74, tipo que se refere especificamente aos eleitores de zona urbana, uma vez que as pessoas supostamente transportadas são eleitoras de zona rural. No mérito, alega que o fato não caracterizou crime, uma vez que se tratou de simples carona, estando ausente o dolo específico para a condenação. Assevera que a sentença foi baseada em presunções, não havendo provas suficientes para a condenação. Afirma que a penalidade é desproporcional, incorrendo o legislador em excesso na fixação da pena mínima de quatro anos de reclusão, razão pela qual o tipo penal descrito no art. 11, inc. III da Lei n. 6.091/74 não teria sido recepcionado pela Constituição Federal. Invoca o princípio in dubio pro reo. Requer a reforma da sentença para o fim de ser absolvido ou, alternativamente, para que seja considerado o apenamento mínimo previsto no art. 284 do Código Eleitoral (fls. 260-269).

Iolanda Isabel Seibel Ludwig também interpõe recurso sustentando sua inocência, uma vez que não concorreu para a produção do resultado danoso. Afirma que não concorreu para a consumação do transporte de eleitores e que está ausente o elemento subjetivo atinente ao dolo na conduta. Assevera que a sentença se baseou na prova inquisitorial, não submetida ao contraditório, e inverteu o ônus da prova, desrespeitando a vedação da aplicação da responsabilidade objetiva. Invoca o princípio in dubio pro reo e sustenta que a condenação se fundamenta estritamente em prova testemunhal. Insurge-se contra a pena mínima de quatro anos prevista no art. 11, inc. III da Lei n. 6.091/74, alegando que o dispositivo não foi recepcionado pela Constituição Federal. Requer a reforma da sentença para o fim de ser absolvida ou, alternativamente, seja considerado o apenamento mínimo previsto no art. 284 do Código Eleitoral (fls. 272-290v.).

Após apresentadas as contrarrazões pelo Ministério Público Eleitoral (fls. 295-299v.), os autos foram com vista à Procuradoria Regional Eleitoral, que opinou pelo desprovimento dos recursos (fls. 302-315).

Em sessão, o Procurador Regional Eleitoral agregou ao parecer ofertado o pedido de execução provisória da decisão condenatória.

É o relatório.

 

VOTOS

Dr. Leonardo Tricot Saldanha (relator):

Os recursos são regulares, tempestivos, e comportam conhecimento.

Passo ao exame das preliminares de atipicidade delitiva e de não recepção do art. 11, inc. III da Lei n. 6.091/74 pela Constituição Federal, e adianto que não prosperam.

a) Atipicidade delitiva

A alegação de atipicidade fundamenta-se no raciocínio de que os fatos não se amoldam ao delito previsto no art. 10 da Lei n. 6.091/74, dispositivo que foi capitulado no inquérito policial e na denúncia. No entanto, o pedido de emenda ao libelo foi acolhido pela sentença, restando os recorrentes condenados por infração ao art. 11, inc. III, c/c caput do art. 5º da Lei n. 6.091/74, na forma do art. 29 do Código Penal. Transcrevo os dispositivos:

LEI N. 6.091/74

Art. 5º. Nenhum veículo ou embarcação poderá fazer transporte de eleitores desde o dia anterior até o posterior à eleição, salvo:

I - a serviço da Justiça Eleitoral;

II - coletivos de linhas regulares e não fretados;

III - de uso individual do proprietário, para o exercício do próprio voto e dos membros da sua família;

IV - o serviço normal, sem finalidade eleitoral, de veículos de aluguel não atingidos pela requisição de que trata o art. 2º.

 

Art. 10. É vedado aos candidatos ou órgãos partidários, ou a qualquer pessoa, o fornecimento de transporte ou refeições aos eleitores da zona urbana.

 

Art. 11. Constitui crime eleitoral:

[...]

III - descumprir a proibição dos artigos 5º, 8º e 10º;

Pena - reclusão de quatro a seis anos e pagamento de 200 a 300 dias-multa (art. 302 do Código Eleitoral).

 

CÓDIGO PENAL

Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

§ 1º - Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

§ 2º - Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Consoante se verifica, o art. 5º da Lei n. 6.091/74 proíbe, de forma geral, o transporte de eleitores desde o dia anterior até o posterior ao da eleição, incriminação que não se restringe à zona rural. Segundo Luiz Carlos dos Santos Gonçalves: “O art. 10 proíbe qualquer pessoa, além de candidatos e partidos, de fornecer transporte ou refeições aos eleitores da zona urbana. Se interpretado ao lado do art. 5º, tem-se que a proibição é a mais ampla, na zona rural ou urbana. Em ambos os casos, nos termos do art. 11, há crime” (Crimes eleitorais e processo penal eleitoral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 152).

Dessa forma, a circunstância de serem as pessoas transportadas eleitoras de zona urbana ou rural é de todo irrelevante para o caso, pois tanto o art. 5º quanto o art. 10 estão presentes no art. 11, III da Lei n. 6.091/74.

Então, considerando que a peça acusatória descreve suficientemente o fato imputado aos réus, permitindo o pleno exercício da defesa, não prospera a alegação de inépcia da denúncia ou de falta de justa causa por atipicidade delitiva.

b) Não recepção do art. 11, inc. III da Lei n. 6.091/74 pela Constituição Federal

Em diversos julgados desta Corte envolvendo a imputação de cometimento do crime eleitoral de transporte irregular de eleitores este relator já expressou a compreensão de que a pena prevista para o tipo é demasiado severa, assistindo razão à defesa ao considerar a pena mínima de 4 anos um período de tempo desproporcional em comparação com os demais delitos eleitorais.

Basta levar em consideração que o crime de corrupção eleitoral previsto no art. 299 do Código Eleitoral, que também tutela o livre exercício do sufrágio dos eleitores, prevê o apenamento de reclusão de um a quatro anos e pagamento de cinco a quinze dias-multa, valendo citar a lição de Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, que assinala ser “das penas mais severas previstas no ordenamento eleitoral, tanto em relação à privação da liberdade, de quatro a seis anos, quanto em relação à multa, de 200 a 300 dias” (Op. Cit., p. 59).

Mas essa circunstância não invalida a norma, já tendo o STF assentado que a Lei n. 6.091/74 é de caráter permanente, com aplicação para as eleições gerais e municipais (STF, RE n. 92728, rel. Min. Cordeiro Guerra, Tribunal Pleno, DJ 15.10.1982) e, de igual modo, orienta-se a jurisprudência do STJ:

ADMINISTRATIVO. CONTRATAÇÃO. PERÍODO ELEITORAL. DEFICIÊNCIA FUNDAMENTAÇÃO. SÚMULA 284/STF. LEI 6.091/74. CARÁTER GERAL E PERMANENTE. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRADO. I. O recurso especial não deve ser conhecido quanto à questão da litispendência, porquanto deixou de especificar qual o dispositivo legal considerou violado pela r. decisão recorrida (Súmula nº 284/STF). II. É firme a jurisprudência do STF e desta Corte no sentido de que a Lei nº 6.091/74 é de caráter geral e permanente, tendo induvidosa incidência nas eleições municipais. III. A Lei nº 8.214/91, dirigida a regular exclusivamente a realização das eleições municipais de 3 de outubro de 1992, é de eficácia temporária, o que lhe exclui a incidência após o termo final da sua vigência formal. Precedente. IV. O dissenso pretoriano não restou demonstrado, porquanto não realizado o necessário cotejo analítico, com demonstração da identidade fática e da divergente interpretação de lei federal. Recurso não conhecido.

(STJ, REsp 570594, rel. Min. Felix Fischer, T5 - Quinta Turma, DJ 01.7.2005, p. 596.)

Corroborando a conclusão pela validade da disposição, cumpre ressaltar o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral no sentido de que o art. 11, inc. III, da Lei n. 6.091/74, revogou a parte final do art. 302 do Código Eleitoral, que permaneceu aplicável tão somente em relação ao verbo típico “promover a concentração de eleitores” (TSE, Recurso Especial Eleitoral n. 21.401, rel. Min. Fernando Neves da Silva, DJ 21.5.2004, p. 132).

Além disso, embora a gravidade da pena, o TSE já se posicionou pela impossibilidade de condenação por prazo inferior ao mínimo legal: “O repúdio à aplicação de penalidade em quantitativo inferior ao mínimo legal encontra-se respaldado pela melhor interpretação da legislação federal e do próprio texto constitucional. Leia-se o teor da Súmula n. 231/STJ: a incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal.” (TSE, RESPE n. 28374, rel. Min. José Augusto Delgado, DJ 20.02.2008, p. 16.)

Assim, muito embora os limites mínimo e máximo da pena abstratamente cominada denotem que a infração é de maior potencial ofensivo, não prospera a alegação de não recepção da disposição pela Constituição Federal, merecendo rejeição a preliminar suscitada.

No mérito, cumpre mencionar importante questão relativa ao tipo penal de transporte irregular de eleitores previsto na Lei n. 6.091, de 15 de agosto de 1974.

O Tribunal Superior Eleitoral, em 1992, nos autos do Recurso Especial Eleitoral n. 9418, primeiro julgado de que se tem notícia a partir da consulta a sua jurisprudência eletrônica, assentou que a conduta, desacompanhada da intenção de influir no ânimo do eleitor no exercício do voto, não configura o delito:

RECURSO ESPECIAL. SUPOSTA OFENSA AOS ARTIGOS 5 E 11, INCISO III, DA LEI N. 6.091/74. TRANSPORTE DE ELEITORES.

PARA A CONFIGURAÇÃO DO DELITO DESCRITO NO ART. 5, DA LEI 6.091/74, É INDISPENSÁVEL A PRESENÇA DO DOLO ESPECÍFICO, EXPRESSO NO ALICIAMENTO DE ELEITORES EM FAVOR DE DETERMINADO PARTIDO OU CANDIDATO. HIPÓTESE EM QUE ISSO NÃO OCORREU.

RECURSO DE QUE NÃO SE CONHECE.

(RECURSO ESPECIAL ELEITORAL n. 9418, rel. Min. José Cândido de Carvalho Filho, DJ 11.02.1993, Revista de Jurisprudência do TSE, Volume 5, Tomo 2, Página 320.)  (Grifei.)

No acórdão restou sedimentado que “sem o deliberado propósito de ofender o livre exercício do voto, não se tem a figura do art. 5º da Lei n. 6.091/74, que trata de proibição de transporte de eleitores com o fim de contribuir para o êxito eleitoral de determinado partido ou candidato”.

Consta da decisão a conclusão de que inexiste crime quando não houver propósito de aliciamento, que é o elemento subjetivo do tipo, porque “o simples dolo genérico, a simples compreensão do proibitivo de lei eleitoral, não basta para a incriminação”.

Em 1996, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC n. 73.424 (Informativo n. 31), orientou-se de igual forma, entendendo que o delito de transporte irregular de eleitores é tipo especial que descreve uma modalidade específica de aliciamento que tem, como instrumento de sua realização, o fornecimento indevido de transporte gratuito de eleitores.

Segundo o STF, a referência contida no mencionado dispositivo ao art. 302 do Código Eleitoral (“Promover, no dia da eleição, com o fim de impedir, embaraçar ou fraudar o exercício do voto a concentração de eleitores, sob qualquer forma, inclusive o fornecimento gratuito de alimento e transporte coletivo...”) exige, para a configuração do delito, a presença de dolo específico - consistente no propósito de impedir, embaraçar ou fraudar o exercício do voto:

EMENTA: HABEAS CORPUS. CRIME ELEITORAL. ART. 11, III, DA LEI Nº 6.091, DE 15.08.74, COMBINADO COM OS ARTS. 8º E 10º DA MESMA LEI E COM O ART. 302 DO CÓDIGO ELEITORAL. Figura delituosa que não se perfaz tão-somente com o elemento - “fornecimento de transporte” - exigindo, por igual, "a promoção de concentração de eleitores, para o fim de impedir, embaraçar ou fraudar o exercício do voto", aspecto que constitui elementar do ilícito descrito no art. 302 do Código Eleitoral, ao qual faz remissão o referido art. 11 da Lei nº 6.091/74. Decisão que se afastou dessa orientação. Habeas corpus deferido.

(HC 73424, rel. orig. Min. Celso de Mello; rel. p/ ac. Min. Ilmar Galvão Tribunal Pleno, DJ 20.6.1997.) (Grifei.)

Essa orientação jurisprudencial, firmada pelas Cortes Superiores há pelo menos 20 anos, é até hoje observada pela jurisprudência, que considera cometido o delito apenas com a prova do elemento subjetivo específico de que o transporte foi concedido com o fim explícito de aliciar eleitores:

AÇÃO PENAL. CRIME ELEITORAL. TRANSPORTE DE ELEITORES. ART. 11, III, DA LEI Nº 6.091/74. CANDIDATO A PREFEITO E VEREADOR. PLEITO DE 2008.

1. Na linha da jurisprudência desta Corte Superior "a prova do elemento subjetivo, da intenção de obter votos, pode ser revelada mediante o contexto verificado" (HC nº 432-93, rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 22.3.2013). Tal assertiva não afasta a firme orientação no sentido de que o tipo do art. 11, III, da Lei nº 6.091/74 tem como elemento subjetivo específico a exigência de o transporte ser concedido com o fim explícito de aliciar eleitores. Precedente: AgR-REspe nº 28.517, rel. Min. Marcelo Ribeiro, DJe de 5.9.2008; AgR-REspe nº 21.641, rel. Min. Luiz Carlos Madeira, DJ de 5.8.2005.

2. De acordo com as premissas do acórdão regional, que reformou a sentença de improcedência da denúncia, verifica-se ser incontroverso que houve apenas o transporte de quatro eleitores de uma mesma família, no dia da eleição, não restando evidenciadas outras circunstâncias que comprovassem o dolo específico de interferir na vontade dos eleitores mediante o fornecimento de transporte no dia da eleição.

Recurso especial provido.

(TSE, Recurso Especial Eleitoral nº 305, Acórdão de 4.8.2015, Relator Min. HENRIQUE NEVES DA SILVA, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 201, Data 22.10.2015, Páginas 25-26.) (Grifei.)

A partir dessa importante premissa, constata-se o equívoco da sentença ao considerar que a instrução logrou comprovar “o dolo de transportar as eleitoras ao local de votação” (fl. 243).

Ora, o cometimento do transporte é fato incontroverso, mas a lei não pune o dolo de transportar, e sim o dolo de aliciar eleitores com o fornecimento de transporte.

Se não há demonstração da intenção de obter vantagem eleitoral, não há crime.

Além disso, não se afigura determinante, para a demonstração desse elemento anímico e consequente descaracterização da alegada carona, o fato de ter ou não ocorrido acerto prévio, sendo insuficiente à comprovação do dolo o mero indício de que havia uma anterior combinação.

Indo aos fatos propriamente ditos, por tudo o que consta dos autos, seja pelo auto de prisão em flagrante (fls. 91-93), seja pela prova produzida durante a instrução, não há dúvidas de que Arnildo Hanatzki, no dia da eleição de 2014, dirigia o veículo Palio que estava na casa de Iolanda e estava alugado pelo irmão de Iolanda, e efetuou o transporte de duas eleitoras, Tereza e Cleusa, para irem ao seu local de votação, situado na cidade de Cândido Godói.

Em juízo, as eleitoras Tereza Dresch e Cleusa Claudete Dresch, respectivamente mãe e filha, disseram que votam no interior de Campina das Missões, mas que moram em Santa Rosa. No dia da eleição, foram de ônibus de Santa Rosa para Campina das Missões e encontraram Arnildo próximo à rodoviária, que lhes deu carona por ser amigo de Ernesto, que é irmão de Tereza. Ambas afirmaram que nas eleições anteriores também receberam carona para votar, uma vez que não há transporte entre o centro da cidade e a localidade de Linha Godói, e negaram que a carona tenha sido dada com intenção eleitoral, afirmando que votaram no candidato de sua preferência. Além disso, afirmaram que não conheciam a ré Iolanda ou a circunstância de que ela é vereadora, e que Arnildo em momento algum afirmou que ofereceu o transporte por ordem de Iolanda (fls. 151-152).

O irmão de Tereza, Ernesto Zydeck, confirmou em juízo a versão das eleitoras (mídia da fl. 196).

Ouvidos pelo magistrado a quo, Arnildo e Iolanda disseram que Arnildo foi até a casa de Iolanda e pediu o automóvel emprestado para reservar um lugar para as festas de fim de ano em um balneário. Lá chegando, Arnildo foi recebido pelo marido de Iolanda, Gilberto Vogel, que emprestou o carro, situação que havia ocorrido em outras ocasiões, uma vez que Iolanda e Arnildo são amigos e trabalham na prefeitura municipal de Cândido Godói. O balneário ficava perto do local de votação e Arnildo passou pelas eleitoras quando estava próximo à rodoviária, oferecendo a carona porque são suas conhecidas (mídia da fl. 196).

O marido de Iolanda, Gilberto Vogel, confirmou essa versão dos fatos (mídia da fl. 196).

Importa considerar que Iolanda é vereadora de Cândido Godói pelo PP, mas que se tratava de eleição geral, e não municipal e que, além disso, as mulheres transportadas não são eleitoras de Cândido Godói, pois votam em Campina das Missões, no interior do município.

Quanto à existência de propaganda eleitoral no automóvel, cumpre levar em conta que não há nenhum tipo de publicidade acostada aos autos, havendo apenas mera referência no boletim de ocorrência lavrado pela Polícia Civil, de que dentro do porta-malas do veículo havia propaganda de candidatos do PP (fl. 11).

Apesar de o propósito eleitoral poder ser demonstrado pela existência de propaganda no interior do veículo, nos termos dos precedentes sobre a matéria, a mesma conclusão não pode ser alcançada pelo fato de haver propaganda eleitoral dentro do porta-malas, local inacessível ao carona.

A propaganda eleitoral foi considerada circunstância tão de menor importância pela autoridade policial e pelo juízo a quo que nenhum exemplar foi juntado aos autos e a sua existência mal foi mencionada no curso da instrução, sendo absolutamente notório o fato de que as eleitoras ignoravam a existência do material de campanha que estava no porta-malas, e que sequer foram indagadas sobre eventual fornecimento de propaganda eleitoral por parte de Arnildo.

Arnildo afirmou que desconhecia a existência de publicidade no porta-malas do veículo (mídia da fl. 196).

Também não se pode extrair do depoimento dos policiais que procederam à ocorrência no dia do fato a existência da intenção do recorrente Arnildo em obter vantagem eleitoral, pois tanto o policial Rene Knapp quanto o seu colega Valdemar Bourscheid apenas afirmaram que o veículo abordado estava “puxando eleitores” (mídia à fl. 196).

Esses depoimentos são frágeis na comprovação do aliciamento de eleitores.

Apesar de ter restado provado que o recorrente Arnildo transportou as eleitoras, em nenhum momento houve comprovação de que o fez com o fim de impedir, embaraçar ou fraudar o exercício do voto.

Ademais, a recorrente Iolanda nem sequer era candidata no pleito, pois é vereadora e o fato refere-se à eleição geral.

Se houvesse intenção de aliciamento, o material de campanha, referido pela polícia no inquérito, estaria no interior do veículo, e não no porta-malas, distante das passageiras. A verdade é simples: quem deseja interferir no voto entrega a propaganda ao eleitor e deixa clara a intenção do transporte. Não se trata, de modo algum, de pedir o voto, e sim, de forma explícita, de interferir na vontade, demonstrando o que se objetiva com o transporte.

Este Tribunal nem conseguirá realizar maior juízo de valor sobre a publicidade, pois ela não está retratada nos autos nem há menção à sua quantidade, dado que a sua existência está apontada apenas nos elementos colhidos na fase inquisitorial, momento em que não é oportunizado o contraditório.

O que se tem de concreto, além da indubitável carona, que foi de fato fornecida para votarem, é a condição de vereadora da corré Iolanda.

Vigorasse no Brasil o direito penal do autor, a equação que levaria à condenação poderia considerar, para a culpabilidade de Iolanda, a mera condição pessoal de ser a acusada uma vereadora municipal: “Iolanda é vereadora, logo, há intenção eleitoral”. “Arnildo e Iolanda são amigos, logo, Arnildo tinha o propósito de aliciamento”.

Isso porque o direito penal do autor pune o indivíduo pelo que ele é, e não pelo que ele fez, pois leva em conta o modo de ser do agente (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: RT, 1997, p. 119-120).

Como resultado de uma longa e árdua conquista e, enquanto expressão do princípio da dignidade humana, o direito penal moderno alicerça-se sobre o fato do agente. Prevalece a orientação de que se deve avaliar o fato por sua repercussão no mundo exterior, e não pelo que nos revela sobre o interior do autor (GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 17. ed. Rio de Janeiro: lmpetus, 2015, p. 446).

Ou seja, para a responsabilização criminal o sistema penal brasileiro leva em consideração o direito penal do fato ou do ato. Nele, a culpabilidade constitui um juízo sobre a relação do autor para com o fato concretamente realizado, e não em função da sua personalidade ou forma de condução de vida.

Apesar de, na prática, existirem disposições que se amoldam a uma concepção pautada pelo direito penal do autor (tais como as circunstâncias judiciais próprias do agente: antecedentes, conduta social e personalidade, apontadas por Ricardo Schmitt em Sentença penal condenatória: teoria e prática. 9. ed. Salvador: JusPODIVM, 2015, p. 141), o nosso ordenamento não adota uma culpabilidade que não se fundamente no direito penal do fato.

A meu sentir, outras provas mais contundentes poderiam ter sido providenciadas, pois os elementos colhidos em juízo não trouxeram a certeza necessária de que o transporte se deu com finalidade eleitoral de aliciamento.

Não considero relevante, para o deslinde da questão, as contradições invocadas na sentença, no sentido de que Cleusa disse que Arnildo era um conhecido, enquanto que Tereza falou que ele era amigo de seu irmão.

Não vejo perfectibilizada a adequação típica, diante da manifesta ausência de provas do interesse eleitoral no fornecimento de transporte, fato que foi considerado provado exclusivamente porque o veículo foi emprestado pela corré, que é vereadora, e porque havia propaganda eleitoral no porta-malas do carro.

Porém, da leitura das peças que instruíram o inquérito, da prova coligida durante a ação penal e, principalmente, dos depoimentos colhidos em juízo, percebe-se que toda a persecução foi voltada à comprovação da existência do transporte e da descaracterização de carona de maneira fortuita ou imprevista.

Descuidou a acusação da necessidade de colher provas sobre o proveito eleitoral que seria obtido com o transporte.

O próprio depoimento pessoal dos acusados não conferiu maior atenção à perquirição sobre o elemento subjetivo do tipo, demonstrada que está, pelo vídeo acostado na mídia da fl. 196, a preocupação sobre ter havido carona casual ou programada.

Aliás, registre-se que, ao assistir as imagens, percebe-se que ambos os réus estavam tranquilos e passaram firmeza ao responderem as perguntas do julgador monocrático.

Mas, em vez de aprofundar-se na perquirição sobre a intenção política do transporte, em busca do elemento essencial do tipo, a instrução ocupou-se de refutar a alegação defensiva de que a carona não estava planejada.

Assim, do conteúdo dos autos, não se extrai a conclusão de que, no dia da eleição geral de 2014, a recorrente Iolanda, vereadora de Cândido Godói, e o recorrente Arnildo tenham interferido no sufrágio livre e consciente das duas eleitoras que foram transportadas e votam no interior de outro município.

Na realidade, o raciocínio utilizado para respaldar a condenação está todo baseado na existência de dúvidas. Como houve incerteza sobre a carona ter sido oferecida pelo motorista Arnildo, ou solicitada pelas eleitoras, e sobre elas serem ou não conhecidas de Arnildo, concluiu-se pela condenação.

A maior evidência de que as provas não são conclusivas e definitivas para o decreto condenatório é o manifesto de dúvida invocado pelo juízo a quo em duas passagens da sentença, ao apontar as incertezas quanto à elementar subjetiva do delito e invocar a famosa frase de Hamlet: “Há algo de podre no reino da Dinamarca.”

Essa citação literária foi referida para, não obstante a falta de convicção sobre o dolo, concluir-se pela condenação.

A circunstância, no entanto, desautoriza a condenação, pois o Direito Penal exige que o “algo” esteja bem definido e comprovado nos autos, sob pena de malferimento do princípio in dubio pro reo, máxima que se reflete como um dos pilares do Estado Democrático de Direito.

Conforme ensinamentos de Nelson Hungria, “a verossimilhança, por maior que seja, não é jamais a verdade ou a certeza, e somente esta autoriza uma sentença condenatória. Condenar um possível delinquente é condenar um possível inocente” (Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1981, volume V, p. 65).

Assim, não interessa se há ou não “algo de podre no reino da Dinamarca”. Interessa sim é ter a exata compreensão de que o procedimento articulado contra os recorrentes não demonstrou que o transporte tenha sido realizado com a finalidade de interferir no voto das duas eleitoras.

 Colaciono julgados deste Tribunal nesse sentido:

Recurso criminal. Decisão que julgou procedente a denúncia, condenando a recorrente pela prática do delito de transporte irregular de eleitores.

Presença de indícios frágeis para a configuração do delito tipificado no art. 11, inc. III, c/c art. 5º, ambos da Lei n. 6.091/74. Ausência de elementos suficientes a embasar a condenação criminal.

A existência de dúvida a respeito da ocorrência dos fatos imputados na denúncia impõe um juízo de absolvição por insuficiência de provas.

Provimento.

(Recurso Criminal nº 838914, Acórdão de 7.8.2012, Relator DR. HAMILTON LANGARO DIPP, Publicação: DEJERS - Diário de Justiça Eletrônico do TRE-RS, Tomo 145, Data 9.8.2012, Página 3.)

 

Recurso criminal. Decisão que julgou improcedente denúncia pela prática do crime tipificado no artigo 11, inciso III, da Lei n. 6.091/74, combinado com o artigo 5º do mesmo diploma legal.

Não comprovadas a finalidade específica de aliciamento e a potencialidade de afronta à igualdade dos concorrentes no pleito eleitoral - requisitos indispensáveis à configuração do delito de transporte irregular de eleitores.

Provimento negado.

(RECURSO CRIMINAL n. 51, Acórdão de 16.12.2009, Relatora DES. FEDERAL MARGA INGE BARTH TESSLER, Publicação: DEJERS - Diário de Justiça Eletrônico do TRE-RS, Tomo 211, Data 18.12.2009, Página 12.)

Concluindo, o acervo probatório não comprovou que o transporte das eleitoras foi realizado com o firme propósito de aliciar-lhes a vontade, ou seja, não ficou demonstrado o fim específico de embaraçar ou fraudar o exercício do voto, necessário para a tipificação da conduta.

Entendo ausente não apenas o dolo específico necessário à caracterização do delito, mas a lesão ao bem jurídico que o tipo penal visa proteger.

Conclui-se que a acusação está desamparada de força convincente e, sob esse olhar, considero que os recorrentes merecem ser absolvidos.

Com tais considerações, afasto as preliminares e VOTO pelo provimento dos recursos, absolvendo os recorrentes da pena imposta, com base no art. 386, incs. III e VII, do Código de Processo Penal, considerando a ausência de provas do dolo específico.