RP - 265126 - Sessão: 24/02/2015 às 14:00

Sr. Presidente, as questões que o presente caso oferece foram motivos de redobrada atenção dos integrantes deste colegiado, como bem demonstrado nos votos que me antecederam.

Não fosse o fato de envolver a Casa do parlamento gaúcho, recai sobre o seu expoente maior, na oportunidade em que os fatos ocorreram, a atribuição de responsabilidade direta e indireta em relação a diferentes figuras contempladas na Lei das Eleições e na Lei de Inelegibilidade, delitos que denotariam a abusividade daquele que detinha o cargo máximo no legislativo estadual.

Por se tratar do Presidente da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul no transcorrer de 2014, GILMAR SOSSELLA, assim como de outras pessoas diretamente a ele vinculadas, importa a averiguação dos atos ilícitos eleitorais apontados nas ações oferecidas pelo agente ministerial, tudo em benefício da proteção dos bens juridicamente tutelados pelo Direito Eleitoral, seja a igualdade de oportunidades entre os concorrentes ao pleito, seja a preservação da vontade livre e desimpedida dos eleitores, tudo a ferir a normalidade e legitimidade das eleições.

Do voto proferido pelo ilustre relator deriva o ponto fundamental que a discussão encerra, qual seja, o julgamento dos fatos diante do conceito contido na “gravidade das circunstâncias” trazida no inciso XVI do art. 22 da Lei Complementar n. 64/90 para a configuração do ato abusivo, que assim dispõe:

XVI - para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam.

Adianto que vislumbro configurada, com a vênia do eminente relator, a gravidade das circunstâncias nos atos abusivos perpetrados pelo demandado GILMAR SOSSELLA. Adianto, também, que não vou me deter na análise individualizada das provas, pois como se depreende do voto do digno relator, posição referendada no voto divergente que me antecedeu, diferentes fatos restaram sobejamente comprovados, os quais, a meu sentir, denotam a inequívoca abusividade de poder que a lei busca refrear naqueles que detêm a força do mando.

Procuro aqui reforçar a tese de que a gravidade das circunstâncias encontra-se no caso sob exame com a força que o legislador procurou emprestar mediante a inclusão do dispositivo legal antes citado, visto que não mais se exige a potencialidade de a ação lesiva vir a influenciar no resultado do pleito como forma de caracterizar o abuso de poder, mas, isto sim, que o ato abusivo possua contornos importantes a autorizar a medida extrema da cassação do diploma outorgado ao infrator. Com isso, entendo que se encontram presentes as hipóteses autorizadoras de cabimento da AIJE mediante a concretização de atos de abuso de poder perpetrados por SOSSELLA.

O vocábulo “poder” significa o direito de agir e mandar, o exercício da autoridade como forma de influenciar ou demonstrar força. No dizer do renomado José Jairo Gomes (Direito Eleitoral. 8ª. ed., São Paulo: Atlas, 2012, pág. 220), “poder” deve ser compreendido no seu sentido comum, expressando a força bastante, a energia transformadora, a faculdade, a capacidade, a possibilidade, enfim, o domínio e o controle de situações, recursos ou meios que possibilitem a concretização ou a transformação de algo. (…) Implica a capacidade de transformar uma dada realidade ou a faculdade de colocar em movimento novas energias ou procedimentos tendentes a modificar um estado de coisas ou uma dada situação. Poder é também vontade: vontade de potência.

O “abuso”, por outro lado, consiste no uso inadequado ou impróprio desse poder. De acordo com Rodrigo López Zilio (Direito Eleitoral. 4ª ed., Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2014. pág. 505), O abuso de poder é conceituado como qualquer ato, doloso ou culposo, de inobservância das regras de legalidade, com consequências jurídicas negativas na esfera do direito. O que a lei proscreve e taxa de ilícito é o abuso de poder, ou seja, a utilização excessiva – seja quantitativa ou qualitativa – do poder, já que, consagrado o Estado Democrático de Direito, possível o uso de parcela do poder, desde que observado o fim público e não obtida vantagem ilícita.

Assim, no âmbito eleitoral, O abuso de poder constitui conceito jurídico indeterminado, fluído e aberto, cuja delimitação semântica só pode ser feita na prática, diante das circunstâncias que o evento apresente. Portanto, em geral, somente as peculiaridades do caso concreto é que permitem ao intérprete afirmar se esta ou aquela situação real configura ou não abuso. (J. J. Gomes. Ob cit. pág. 221)

Nessa linha, a apuração do abuso de poder encontra respaldo, a par das ações específicas contempladas na Lei das Eleições, no art. 22 da Lei Complementar n. 64/90, mediante a qual se procura apurar a realização de atos tendentes a macular a normalidade e legitimidade do pleito. A comprovação do ilícito eleitoral, como antes referido, prescinde da potencialidade de o fato alterar o resultado das eleições, buscando-se na gravidade das circunstâncias que envolvem o caso concreto a caracterização do delito.

O conceito de “gravidade das circunstâncias”, como se nota, é aberto, impreciso, devendo o intérprete buscar no caso sob exame as razões que autorizem o enquadramento do ato tido como abusivo. Como já mencionado, a mudança legislativa forçou a alteração hermenêutica por parte do Tribunal Superior Eleitoral, mostrando-se prescindível a necessidade da comprovação da potencialidade lesiva no resultado provindo das urnas, em conformidade com julgados proferidos em momento anterior à edição da nova regra.

Desse modo, mostrando-se casuística a aferição da gravidade dos atos perpetrados, verifico que o abuso de poder cometido pelo Presidente da Assembleia Legislativa do Estado, nas diversas ações apontadas como incontroversas nos autos, teve, sim, o condão de macular a paridade de forças entre os contendores, pois SOSSELLA se valeu da condição de expoente maior do órgão legislativo para, seja diretamente, seja mediante seu braço direito e representante ARTUR, coagir e intimidar servidores daquela Casa e, com isso, beneficiar sua candidatura à reeleição para Deputado Estadual.

Vejo nessa quebra de simetria de forças entre os postulantes aos cargos proporcionais o ferimento da legitimidade e normalidade do pleito em razão do abuso do poder de autoridade e político verificado, pois as condutas consubstanciadas na “coação para compra de ingresso”, “entrega de caderneta para anotação de dados de eleitores” e “usar de serviços de servidor público para campanha eleitoral durante o horário de expediente normal” bem denotam que vieram a ser maculados pressupostos básicos das eleições, garantias constitucionais inarredáveis.

Os autos colacionam provas que evidenciam ações incontroversas de abuso de poder, as quais foram bem delineadas no voto do eminente relator, e também consignadas nas manifestações que me antecederam.

Meu dissentir vem direcionado em relação ao entendimento alcançado naquele voto, posto que a gravidade das circunstâncias permeia os fatos ocorridos. Entendo que exigir que os eventos apontados possuam potencialidade para desequilibrar o pleito e seu resultado, como bem ensina José Jairo Gomes, é acrescentar requisito não previsto pelo legislador (…) (ob. cit. pág. 534), não se podendo compactuar com a compreensão de que os fatos comprovadamente ilegais não repercutiram sobre a normalidade e legitimidade do pleito, visto que não teriam potencial ofensivo a deslustrar as eleições.

Ainda que se possa considerar a Assembleia Legislativa como um microcosmo, mesmo que se possa entender que o número de servidores coagidos à compra de ingressos para um jantar seja diminuto, os quais possuíam pleno entendimento da imposição a que estavam submetidos, ainda que se possa ter como pouca expressiva a quantidade de estagiários a quem foram entregues os “caderninhos do compromisso”, resplandece que esses atos tiveram como elemento propulsor justamente o presidente do órgão legislativo e seu superintendente, visto que as ações estavam voltadas a angariar recursos financeiros e possíveis eleitores em prol de sua candidatura.

Note-se que os fatos se desenvolveram em período próximo ao pleito, entre julho e setembro, somente cessando os atos abusivos com o afastamento do superintendente ARTUR por ordem provinda deste Tribunal e diante da grande repercussão nos meios de comunicação.

Se é certo que não há nos fatos lesivos como atribuir potencialidade para afetar o resultado de um pleito de âmbito estadual, visto que circunscritos a servidores da Assembleia, também é certo que esse requisito se encontra afastado pelo legislador, como já mencionado.

Assim, entendo, em consonância com os votos divergentes, que os atos de abuso perpetrados em virtude da ascendência hierárquica que os envolvidos possuíam em relação aos servidores e estagiários consubstancia, sim, a “gravidade das circunstâncias” preconizada no inc. XVI do art. 22 da LC n. 64/90. Os demandados SOSSELLA e ARTUR agiram, com desenvoltura e sem impedimento, enquanto puderam, no universo de atuação que dispunham, utilizando-se de meios reprováveis para coagir e subjugar subordinados a aderirem à campanha eleitoral do Presidente da Assembleia Legislativa do Estado.

Permito-me destacar um acontecimento emblemático do modo como agiram os demandados, referente à exoneração do servidor Nelson Delavald Júnior da função de coordenador do Departamento de Comissões Parlamentares da Superintendência Legislativa, o qual havia se recusado a adquirir o ingresso para o churrasco de campanha, e que o voto do eminente relator consigna com precisão, passagem que abaixo transcrevo:

A exoneração de Nelson manteve “ares” de legalidade, observando os parâmetros atinentes a esse tipo de ato. No contexto amplo da venda de convites orquestrada por ARTUR, a mando de SOSSELLA, os elementos constantes dos autos permitem concluir que dita exoneração foi efetivamente usada para punir o servidor dada sua recusa em comprar o convite, e, via de consequência, intimidar os demais servidores, tendo em conta que ocorreu em momento estratégico, próximo ao ápice do esquema de venda forçada de ingressos para o “churrasco salgado”. (Grifei.)

O fato da exoneração e os consectários dele advindos espelham o agir dos demandados, demonstrando a gravidade com que se revestiram as circunstâncias do caso concreto a ferir a normalidade e legitimidade do pleito diante do abuso de poder político e de autoridade praticado, pois, mediante a posição hierárquica que detinha, SOSSELLA forçou seus subordinados, com a participação de ARTUR, a contribuírem com sua campanha, auferindo recursos financeiros por intermédio de meios escusos.

A quebra de paridade de forças entre os postulantes aos cargos proporcionais em disputa é evidente, pois recursos financeiros foram injetados na campanha de SOSSELLA mediante espúrios expedientes, não se podendo ter como normal a contenda quando o presidente do órgão máximo do legislativo estadual utiliza do poder que detém para auferir aqueles valores e, com isso, não bastasse a posição que ostentava, ainda mais se distanciar da igualdade de condições com os demais candidatos, evidenciando-se a “gravidade da conduta perpetrada pelo recorrente em relação à isonomia no pleito” (AgR-REspe n. 34.915/TO, Rel. Ministro DIAS TOFFOLI, DJe 27.3.2014).

À vista dessas considerações, tenho que restou caracterizado o abuso de poder perpetrado por SOSSELLA e ARTUR, configurando-se a gravidade das circunstâncias requerida no inc. XVI do art. 22 da LC n. 64/90.

Ademais, como bem analisado no voto divergente da Desa. Labarrère, resta também caracterizada a captação ilícita de recursos por parte de SOSSELLA, capitulada no art. 30-A da Lei das Eleições, porquanto os valores foram auferidos mediante coação de servidores diante da imposição da compra de ingressos, quantia que alimentou a campanha eleitoral do representado. Como bem salientado naquele voto, mostra-se ferido o princípio constitucional da moralidade, pois não se pode ter como lícito o alcance de recursos alicerçados na extorsão.

Desse modo, o bem jurídico protegido pelo dispositivo legal, pertinente à higidez das normas relativas à arrecadação e gastos eleitorais, também foi abalado, posto que a doação não pode prescindir da vontade livre por parte do doador, o que não ocorreu no presente caso, como se extrai dos fatos incontroversos elencados.

Ante o exposto, acompanho a divergência em todos os seus termos.

É como voto.